22 Dezembro 2021
"De pensador de estatura mundial, crítico do neoliberalismo, a guru de complotistas, no vax e da extrema-direita. A filosofa escreve uma 'carta desde longe' a uma referência que decai. Da pior forma possível"
O artigo é da filósofa italiana Donatella Di Cesare, professora de Filosofia Teórica na Universidade “La Sapienza”, de Roma, publicado por L’Expresso e reproduzido por Flanagens, 21-12-2021. A tradução é de Vinícius Nicastro Honesko.
Enquanto o segundo ano da pandemia planetária chega ao fim, não se pode deixar de reconhecer, dentre os tantos efeitos devastadores da imensa catástrofe, um evento trágico que acerta em cheio a filosofia. Gostaria de chamar de o “caso Agamben”, não objetificar o protagonista – a quem, pelo contrário, me dirijo, como que escrevendo uma carta desde longe –, mas para sublinhar sua importância. Giorgio Agamben – goste-se ou não – foi e é o filósofo mais significativo dos últimos decênios, não apenas em cenário europeu, mas em nível mundial. Das salas de aula dos Estados Unidos aos mais periféricos grupos de oposição latino-americanos, o nome de Agamben, de algum modo também para além do filósofo, se tornou a insígnia de um novo pensamento crítico. Para os de minha geração, que viveram os anos 70, seus livros – sobretudo a partir de “Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua”, de 1995 – constituíram a possibilidade não apenas de investigar o fundo inquietante e autoritário do neoliberalismo, mas também de desmascarar a pseudo-esquerda triunfante e aguada, que hoje se autodefine progressismo moderado. Nenhuma crítica do progresso, um inventário filosófico parado, no máximo, nos anos 80, uma prática da política que a reduz a governança administrativa sob o ditado da economia. Nos traços da melhor tradição do século XX – de Foucault a Arendt, de Benjamin a Heidegger – Agamben nos ofereceu o vocabulário e o repertório conceitual para que tentássemos nos orientar no complexo cenário do século XXI. Como esquecer as páginas sobre o “campo”, que, depois de Auschwitz, mais do que desaparecer passa a fazer parte da paisagem política; e também aquelas sobre a vida nua, sobretudo daqueles que são expostos sem direitos; ou sobre a democracia pós-totalitária que mantém uma ligação com o passado?
Ainda mais traumático é o que aconteceu. No blog “Una voce” (Uma voz), hospedado no site da editora Quodlibet, Agamben começou a comentar a irrupção do coronavírus em termos semi-jornalísticos. A primeira postagem, de 26 de fevereiro de 2020, foi intitulada “A invenção de uma pandemia”. Hoje soa como uma funesta profecia. Naquele momento, porém, Agamben não era o único a se iludir que a Covid-19 não fosse algo mais que uma gripe. Faltavam dados e a entidade do mal ainda não havia sido revelada. Em meu pessimismo, que me levava a ver nos primeiros sinais o início de uma nova época, sentia-me circundada por pessoas que preferiam minimizar ou rechaçar o assunto. Durante o lockdown todos fomos afetados pelas medidas tomadas para enfrentar o vírus, tão indispensáveis quanto chocantes. A vida confinada nos muros domésticos, entregue às telas, privada dos outros e da polis, parecia quase insuportável – até a chegada do sofrimento daqueles que, sem respirar, lutavam pela vida nas terapias intensivas. A imagem dos caminhões que em Bergamo transportavam os féretros marcou para todo o mundo o ponto de não-retorno. O vírus soberano, que os regimes soberanistas, de Trump a Bolsonaro, pretendiam ignorar grotescamente ou utilizar para as próprias finalidades, manifestou-se em toda sua terrível potência. A catástrofe era ingovernável. E expunha a mesquinhez e a inépcia da política das fronteiras fechadas. A Europa reagiu.
Para Agamben, era tempo de reconhecer em letras garrafais: “Cometi um erro interpretativo, porque a pandemia não foi uma invenção”. Mas Agamben nunca retificou isso. Suas postagens seguiram até julho de 2020 com o mesmo tom. Enquanto a notícia de seu incipiente negacionismo se difundia no exterior, eu lia aquelas linhas constrangedoras convicta de que o pesadelo logo terminaria. Não foi assim. As postagens se tornaram matéria de dois livros e a “voz” do blog continuou a vaticinar, chegando ao ponto mais baixo com duas intervenções em julho de 2021 – “Cidadãos de segunda classe” e “Carteira verde” – nas quais o green pass é comparado com a estrela amarela. Uma comparação obscena, que deu estofo aos piores movimentos no vax ao legitimá-los. O resto, incluindo a “Comissão pela dúvida e pela precaução”, é história recente.
É motivada a preocupação com uma deriva securitária. A política do medo, a fobocracia que governa e submete o “nós” instilando o temor por aquilo que está fora, fomentando o ódio pelo outro, é o fenômeno político atual que caracteriza as democracias imunitárias e precede a pandemia. De diversas formas os filósofos, sociólogos, economistas e politólogos denunciaram isso. Tão justo quanto é sustentar que o contexto italiano é, nesse quesito, um laboratório político sem igual. No entanto, não se pode confundir o estado de emergência com o estado de exceção. Um terremoto, uma enchente, uma pandemia são eventos inesperados que são enfrentados de acordo com a necessidade. O estado de exceção é ditado por uma vontade soberana. É claro que um pode invadir o outro e, por isso, somos conscientes tanto do perigo de um estado de emergência institucionalizado quanto da ameaça representada por aquelas medidas de controle e vigilância que, uma vez introduzidas, correm o risco de se tornar inapagáveis. É verdade: não há governo que não possa se aproveitar da pandemia. Mantenhamos a suspeita, que é o sal da democracia.
Mas não encampamos o passo ulterior, o da deriva complotística. Por isso, não dizemos nem que a epidemia de Covid-19 é uma invenção nem que foi utilizada como pretexto intencionalmente, como faz Agamben na advertência de seu livro: “Se os poderes que governam o mundo decidiram utilizar-se como pretexto de uma pandemia – neste ponto, não importa se verdadeira ou simulada...”. Personalizar o poder, torná-lo um sujeito com tanta vontade, atribuir a ele uma intenção, significa endossar uma visão complotística. E também quer dizer que não considera o papel da técnica, a engrenagem que, como ensina Heidegger, utiliza-se daqueles que pretenderiam dela se utilizar. Os projetistas se tornam projetados. Hoje não é possível deixar de ver o poder através desse dispositivo. Justamente o vírus soberano mostrou todos os limites de um poder que gira no vazio, injusto, violento, e, no entanto, impotente diante do desastre, incapaz de enfrentar a doença do mundo.
Não, não me associo à vulgata anti-complô daqueles que, certos de possuírem a razão e a verdade, reduzem um fenômeno complexo a um espasmo mental ou a uma mentira. Com muito desprazer digo que as sombrias insinuações de Agamben, suas declarações sobre a “construção de um cenário fictício” e sobre a “organização integral do corpo dos cidadãos”, que remetem a um novo paradigma de biossegurança e a uma espécie de terror sanitário, o inscrevem, infelizmente, no panorama atual do complotismo.
Como é notório, Agamben foi reencontrado na direita, aliás, na ultradireita, com um séquito de no vax e no pass. Ocasionalmente, até chegou a atacar a esquerda que defendia um plano de vacinação. Não sei de nenhuma palavra, pelo contrário, que tenha dito nesses dois anos sobre as revoltas nas prisões, sobre os idosos dizimados nas RSA (Residência Sanitária Assistencial), sobre os sem-teto abandonados nas cidades, sobre aqueles que de repente ficaram sem trabalho, sobre os entregadores, os trabalhadores braçais e os invisíveis. Esperaria do filósofo que nos fez refletir sobre a “vida nua” um apelo pelos imigrantes que nas fronteiras europeias são violentados, rejeitados e deixados à morte. Aliás, uma iniciativa que, com sua autoridade, teria tido certo peso. Nada disso.
Com frequência nos obrigou a elucubrações equivocadas e, sobretudo, ao tomar posições paradoxais, nos levou ao senso comum. Penso que talvez isso tenha sido um dos maiores danos, uma vez que a filosofia requer radicalidade. Mas os danos são ulteriores e dificilmente estimáveis, a partir de um excedente de descrédito lançado contra a filosofia. Para nós, agambenianos, que sobrevivemos a esse trauma, trata-se de repensar categorias, conceitos, termos, alguns – como “estado de exceção” – que já se tornaram quase grotescos. E será necessário salvar Agamben de Agamben, salvar o legado de seu pensamento dessa deriva. Tampouco é possível deixar de lado a questão política, uma vez que falha, da pior forma possível, uma das referências decisivas para uma esquerda que não se rende nem ao neoliberalismo nem à versão do progressismo moderado. O caminho será duro.
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Caro Agamben, te escrevo. Artigo de Donatella di Cesare - Instituto Humanitas Unisinos - IHU