10 Novembro 2021
"Apesar do seu carácter problemático e provisório [do Covid], os dados que recolhemos e reportamos falam de um choque que as nossas sociedades 'evoluídas' há muito tempo não conheciam e que volta a questioná-las sob um perfil de importância decisiva como é aquele do sentido atribuído no trabalho. Ninguém pode garantir que essa mudança terá um resultado final positivo. Mas algo está se movendo, não apenas nos números, mas nas consciências e na cultura. O suficiente para abrir uma brecha de esperança em um futuro diferente daquele a que, na época do persistente domínio da lógica do mero lucro, nos havíamos resignado", escreve Giuseppe Savagnone, professor de doutrina social da Igreja no departamento de jurisprudência da LUMSA (Libera Università degli Studi Maria SS Assunta de Roma), sede de Palermo, em artigo publicado por Pastoral da Cultura da Arquidiocese de Palermo (www.tuttavia.eu), 09-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Enquanto ainda estamos lutando com a quarta onda da pandemia, as notícias vindas do mundo do trabalho, nas últimas semanas, confirmam que em todo caso não ficará apenas um parêntese doloroso a ser esquecido, deixando-o para trás para voltar à vida de antes e de sempre, mas constituirá uma fratura radical, que já está marcando profundamente os estilos de vida das sociedades ocidentais, incluindo aquela italiana.
Falava-se sobre o problema do trabalho. Muito se tem falado sobre isso em relação à Covid, mas sobretudo para sinalizar o aumento do desemprego ou os problemas relacionados com a obrigatoriedade do passaporte verde. E os protestos, as manifestações e os confrontos de rua também foram nessa direção. Na realidade, porém, os efeitos mais profundos da pandemia são aqueles que estão se verificando não tanto em situações externas, mas dentro da cabeça das pessoas.
Aqueles do primeiro nível, de fato, poderão ser facilmente anulados por uma mudança na tendência econômica e sanitária, enquanto o mesmo será mais difícil acontecer para aqueles que envolvem a maneira de ver a si mesmo e a própria vida. Agora, parece que exatamente aqui algumas novidades singulares estão ocorrendo.
Vou mencionar alguns dados dos jornais. A partir dos Estados Unidos, onde, com a amenização da emergência sanitária, registra-se um aumento do número de demissões do trabalho: “Em agosto 4 milhões de estadunidenses pediram demissão” (C. Benna, “’Eu me demito e mudo de vida’. Os 40.000 em fuga das empresas", no Corriere Torino, 1º de novembro de 2021). Inclusive, "um relatório recente da Microsoft afirma que 40% das pessoas estão pensando em se demitir de seu emprego atual até o final do ano" (R. Zezza, "Fuga do trabalho: porque a pandemia está provocando as Grandes Demissões", Il Sole24ore, 1º de outubro 2021).
Algo semelhante também está acontecendo na Itália, onde “a taxa de demissões mais que dobrou em dois anos: de 1,1% do total de empregado para 2,3% hoje”. O fenômeno tem dimensões impressionantes: “'Eu me demito. E eu mudo minha vida'. Pensaram, falaram e fizeram isso 480.000 italianos, um quarto do total de rescisões das relações de trabalho de abril a junho, dos quais cerca de 30-40.000 no Piemonte, 85% a mais que no ano passado (...). Com a liberação das demissões, muitos previam o apocalipse do trabalho. Aconteceu o contrário. Há mais trabalhadores permanentes que deixam a empresa do que empresas que os despedem” (C. Benna, art. cit.).
As motivações são muitas. Pelas considerações dos analistas, eles parecem não apenas diversas, mas em alguns aspectos contraditórios. Alguns observadores identificam um fator importante no estresse causado pelo smart working, que anulou a distância física e temporal entre as esferas profissional e privada, ampliando a jornada de trabalho e invadindo a vida pessoal e familiar dos trabalhadores. A enxurrada de mensagens e tarefas que os assediaram através dos celulares, tablets e computadores não permitiu mais o afastamento, que antes era fisiológico, entre os locais e as horas de trabalho e os dedicados ao descanso.
Por outro lado, no entanto, existe uma dificuldade para o trabalhador retornar, agora que a diminuição dos contágios o permite, ao antigo ambiente de trabalho “presencial”. Um ambiente muitas vezes marcado por uma frieza desumana, a respeito da qual o smart working, mesmo com seu caráter invasivo, tinha eventualmente constituído a oportunidade de passar os dias de maneira mais autêntica, em contato com a vida "real".
O artigo do Il Sole24ore mostra um simpático vídeo belga em que é retratado um pai voltando ao escritório, segurado pela mão por sua filha que o conforta com as palavras clássicas com as quais os pais costumam encorajar seus filhos a voltar à escola: "Você vai rever seus amigos, você vai ficar bem, não chore" (R. Zezza, art. cit).
Em outros casos, trata-se simplesmente da aspiração por encontrar um emprego melhor, talvez há muito esperado, mas que agora, com o trauma causado pelo Coronavírus, finalmente encontra uma concretização. Sentimo-nos mais livres, tornamo-nos mais ousados.
Na base de todas essas motivações, no entanto, provavelmente está o fato de que "uma grande parte da força de trabalho reagiu à transição pandêmica questionando-se sobre o sentido da sua vida - como as crises levam a fazer - e querendo recuperar o controle" (ibid). A autora do artigo comenta: “Estamos longe de uma visão de ‘recursos’ humanos, entendidos como bens que podem ser adquiridos e mantidos para que não se deteriorem e garantam produtividade” (ibid).
O Covid obrigou todos nós a parar, de certa forma, e refletir. Claro, também teve aqueles que se recusaram a fazê-lo e usaram suas energias para imaginar conspirações destinadas a estabelecer uma ditadura mundial, servindo aos interesses de Bill Gates e das empresas farmacêuticas, ou simplesmente amaldiçoando o governo pelas restrições impostas às suas sagradas liberdades; mas muitos outros encontraram no lockdown, mesmo contra vontade, uma ocasião insólita de se encontrarem sozinhos consigo mesmos e de pensar. E descobriram que não queriam continuar vivendo como vinham fazendo até então, antes da pandemia.
O reflexo disso é a acentuação de uma tendência que já se manifesta há muito tempo nas sociedades pós-industriais: “Hoje o emprego para toda a vida não existe mais: as pessoas deixaram de desejá-lo porque estão percebendo que a mudança é possível, mesmo depois de tantos anos" (C. Benna, art. cit.). Mas, acima de tudo, a Covid destacou a relatividade de certas escolhas materiais - aquela do trabalho era tradicionalmente considerada a base de um "arranjo" humano definitivo – em relação ao grande problema da felicidade pessoal. Não é possível absolutizar um trabalho. Aliás, talvez nem mesmo o trabalho. Primeiro vem o viver, depois o trabalhar.
Outro efeito da pandemia, no que diz respeito à Itália, vai nesse sentido: o surgimento de um contra-êxodo. Segundo uma pesquisa realizada pelo Centro Studi PWC, “a epidemia de Covid induz uma parte consistente dos jovens que emigraram para o exterior por motivos de estudo e trabalho a considerar o regresso para ‘casa’ (…). 1 talento em 5 pensa em retornar à Itália, 1 em 4,3 está prestes a retornar às regiões do sul" (V. Viola, "Cérebros em fuga, contra-êxodo impulsionado pelo Covid e benefícios fiscais", Il Sole24ore, 18 de setembro de 2020).
Um motivo importante é certamente a crise econômica que, após a Covid, atingiu países onde a emigração tinha levado muitos jovens italianos em busca de oportunidades que não encontravam na Itália. Mas, mesmo neste caso, estamos diante de uma mudança que não se deve apenas a razões puramente materiais, mas implica na transformação da maneira de ver as situações pelas pessoas: “Antes da primavera de 2020 - afirma o estudo da PWC – se pensava em voltar às cidades de origem apenas tendo a certeza de poder melhorar remuneração e nível de carreira; hoje esses objetivos de vida estão perdendo atratividade (...). A escala de valores dos nossos jovens mudou" e “o Covid teve um impacto profundo"(ibid).
Recupera-se o valor das relações humanas, principalmente aquelas familiares. Não é por acaso que o contra-êxodo se anuncia maciço principalmente para as regiões meridionais.
Naturalmente, é a partir deles que principalmente aconteceu a migração para o exterior de jovens em busca de trabalho nos últimos anos. Mas as entrevistas também falam do desejo de resgatar relações mais ricas e intensas, como são aquelas habituais no Sul. Não basta ganhar bem, se você estiver sozinho e viver mal.
Não há dúvida de que a Covid foi e continua sendo uma séria ameaça para todos nós. No entanto, pelo que foi dito, emerge que os efeitos que está produzindo não são apenas negativos. Apesar do seu carácter problemático e provisório, os dados que recolhemos e reportamos falam de um choque que as nossas sociedades "evoluídas" há muito tempo não conheciam e que volta a questioná-las sob um perfil de importância decisiva como é aquele do sentido atribuído no trabalho.
Ninguém pode garantir que essa mudança terá um resultado final positivo. Mas algo está se movendo, não apenas nos números, mas nas consciências e na cultura. O suficiente para abrir uma brecha de esperança em um futuro diferente daquele a que, na época do persistente domínio da lógica do mero lucro, nos havíamos resignado.
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Sinais de mudança do mundo do trabalho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU