“Ajudar a Deus e ajudar aqueles que sofrem são inseparáveis no legado de Etty. Não é de estranhar que em tempos de “silêncio” e de crise da linguagem religiosa, a escrita de uma vida como a sua, nada “convencional”, continue chamando a atenção”, escreve Felisa Elizondo, teóloga, em artigo publicado por Religión Digital, 01-11-2021. A tradução é do Cepat.
A céu aberto e entre alambrados. Foi assim que Etty Hillesum dever ter passado seus últimos anos. E recentemente sua voz voltou na forma de escrita a lápis, graças à tradução espanhola de suas Obras Completas (Burgos, Monte Carmelo, 2020), que os autores cuidaram para ser o mais fiel possível, até mesmo nas singularidades do holandês original. A editora Narcea também publicou um pequeno livro: Etty Hillesum y la transformación, que mapeia a marca de Rainer Maria Rilke nas anotações de Etty.
Nos últimos anos, já conhecemos dados concretos de sua biografia por meio de trabalhos que analisam o itinerário de “uma vida comovida”, “o coração presente nos “barracões” ou “a garota que não sabia se ajoelhar”. Felizmente, os cadernos do Diário e as várias dezenas de Cartas escritas de Westerbork, em sua língua natal, não pereceram em Auschwitz, onde sua autora morreu com apenas 29 anos, no dia 30 de novembro de 1943. Os manuscritos foram conservados por seus amigos e, a partir de 1981, começaram a circular ao menos parcialmente em várias línguas europeias.
O Diário, que abrange de 1941 a 1943, reúne a transformação que a protagonista experimentou a partir do encontro com Julius Spier, um curioso terapeuta que canalizou sua tumultuosa afetividade e a quem Etty amou e admirou. As anotações refletem a vida entre os alambrados e chegam até a angústia dos últimos meses passados no campo de trânsito, esperando para ser transportada para Auschwitz, onde a morte certa a aguardava. As Cartas, dirigidas a amigos de Westerbork, também publicadas em anos anteriores, complementam a singular narrativa dos acontecimentos.
Etty Hillesum
O surgimento desses textos – após anos de silêncio – teve grande ressonância na Holanda e são considerados documentos valiosos para salvaguardar a memória do tempo de humilhação e terror que milhões de pessoas padeceram e que também foi lembrado por outros nomes conhecidos que sobreviveram à catástrofe.
O interesse que suscitam até hoje é indissociável da atraente personalidade de sua autora: uma jovem judia de notável vitalidade, nascida de mãe russa e pai holandês, no dia 15 de janeiro de 1914, em Hilversum, que após os estudos em Amsterdã, permanecia lendo avidamente Rilke, Dostoiévski, Santo Agostinho e outros autores que encontrava e que, por sua vez, a inspiravam a se dedicar à criação literária.
Contudo, esse projeto de vida tropeçou em um cerco asfixiante pela ocupação alemã, que proibiu o acesso da comunidade judia holandesa aos locais habituais e a negou o uso dos meios de transporte até forçar idosos e doentes a caminhar interminavelmente pelos cais e calçadas da cidade. Mas, ao longo dos textos, escritos em tempos de ameaças e exclusão, entre penúrias e degradação extremas, Etty reitera a recusa em deixar espaço para o ódio e não deixa de afirmar que a vitória será do amor.
Etty (Ester) Hillesum havia nascido em Middelburg, onde seu pai, Louis Hillesum, ensinava línguas clássicas. Mudaram-se para Tiel, Winschoten e, finalmente, em 1924, estabeleceram-se em Deventer, uma pequena cidade da Holanda oriental.
O pai era um homem estudioso, discreto, quase taciturno e, ao contrário, Rebeca, sua mãe, nascida na Rússia e radicada na Holanda, era – conforme destaca sua própria filha – temperamental, apaixonada e passional, caótica (traços que, em alguma medida, reaparecem em Etty). Tinha dois irmãos: Jaap e Misha, sendo o último muito dotado para o piano, mas, às vezes, precisava de tratamento psiquiátrico.
Como antecipávamos, ela própria foi consultar Julius Spier, um terapeuta com quem estabeleceu uma relação discutível do ponto de vista da ética profissional, mas que se tornou uma ajuda importante para que Etty colocasse seus afetos transbordantes em ordem e experimentasse mergulhar em sua própria interioridade.
Assim, aprendeu a dominar seus impulsos e a entrar em seu próprio poço, o lugar secreto, a fonte de sua liberdade e da capacidade de agir seguindo o “ardor elementar”, conforme chamou o amor ao próximo. Um amor estendido, que viveu até limites que impressionam, quando se leva em consideração as circunstâncias nas quais precisou desenvolvê-lo.
Suas anotações no Diário, que iniciou aconselhada por Spier, refletem a situação que teve que enfrentar, exterior e interiormente, assim que a guerra explodiu:
“Sexta-feira (...) E agora parece que os judeus não poderão mais entrar nos comércios de frutas e verduras, terão que entregar suas bicicletas, não poderão mais subir nos bondes, nem sair de casa após as oito da noite. Sim, sinto-me deprimida por essas disposições. Nesta manhã, por um momento, notei-as como uma ameaça sombria, que buscava me sufocar, mas não é pela disposição em si. Sinto-me simplesmente muito triste, e então esta tristeza busca confirmação. Nunca são as circunstâncias exteriores, é sempre o sentimento interior – depressão, insegurança, etc. – que confere a tais circunstâncias uma aparência triste ou ameaçadora. Em meu caso, funciona sempre do interior para o exterior, nunca vice-versa. Muitas vezes, as disposições mais ameaçadoras – e são muitas atualmente – vão se quebrar contra a minha segurança e confiança interior, e uma vez resolvidas dentro de mim, perdoo muito de sua carga de medo” (12 de junho de 1942).
Sob a ocupação alemã, encontrou trabalho em uma das seções do Conselho Hebraico, organização surgida para servir como ponte entre os nazistas e a população judia. Mas logo, ainda que como enviada do Conselho, ofereceu-se como voluntária para trabalhar como assistente e enfermeira no campo de concentração de Westerbork, que era a antessala de Auschwitz para o qual, enfim, os residentes eram deportados. E para o qual pressentia, conforme aconteceu, que ela mesma e sua família também iriam. Graças a uma permissão especial, pôde voltar várias vezes a Amsterdã e servir como correio levando cartas e mensagens dos prisioneiros, além de buscar remédios para eles.
Nos cadernos do Diário – que somam 1.200 páginas manuscritas – e em várias de suas 70 cartas, descreve com toda sinceridade o seu caminho pessoal e, a partir de sua entrada no campo, retrata com realismo o que acontece entre os alambrados, a dureza dos guardas e a miséria dos barracões, estabelecidos em um terreno lamacento, onde diariamente chegavam centenas de crianças, mulheres e homens, judeus que não conseguiam compreender o alcance do que estava acontecendo com eles e menos ainda do que lhes aguardava. Daquele campo, semanalmente, Etty vê partir três lotados de pessoas que só pode consolar e estender os braços quando caem.
Sua dedicação incondicional aos outros entra em choque com a falta de sentido e a crueldade evidentes naquela terra lamacenta e cercada. Basta reler cartas como a que dirige a Han Wegerif o a Maria Tuinzing, e outros tantos parágrafos de seu Diário, para perceber que Etty desejava que seus traços a lápis, em luta com as palavras, trouxessem uma imagem, ainda que pálida, do que acontecia: queria ser “o coração pensante dos barracões”.
“Em Westerbork – escreve a um amigo – não fazemos nada além de nos dar empurrões. É uma autêntica confusão, algo parecido ao que acontece após um naufrágio, com o último pedaço de madeira em que desesperadamente muitas pessoas se agarram, com o risco de se afogarem. Mesmo nessa província perdida, a mais deserdada da Holanda, as pessoas preferem ficar e passar o inverno atrás dos alambrados, em vez de se deixarem arrastar ao último rincão da Europa, para comarcas e destinos desconhecidos, sobre os quais chegam apenas rumores muito estreitos e vagos (...) Alguns dias, dizemos para nós que seria mais simples nos largarmos de uma vez por todas “no comboio”, antes que testemunharmos, semana após semana, as angústias e o desespero de milhares e milhares de homens, mulheres, crianças, aleijados, débeis mentais, doentes e idosos que escapam de nossas compassivas mãos, em um cortejo quase ininterrupto”.
Um grupo de judeus húngaros na chegada a Auschwitz
Surpreendentemente, em meio à violência e a miséria daquele lugar, Etty é capaz de perceber a beleza de um pedaço de céu azul e se surpreender com as pétalas de uma pequena flor que desponta na lama.
É a expressão que aparece em vários trechos de suas obras e que foi mais de mil vezes comentada nos decênios que se seguiram à Shoah. Etty começa a se referir a Deus e a nomeá-lo a partir de sua relação com Spier. E faz isso quando fala em descer à própria interioridade, e em algumas partes de seus escritos a palavra de Deus resulta próxima – e até intercambiável – de vida, força, esplendor, fonte, ao passo que em outros momentos aparece uma relação direta com sua leitura frequente da Bíblia ou de textos de autores cristãos.
Essas referências a Deus, encontrado no íntimo, são inseparáveis daquelas que, cada vez com maior frequência, faz na oração, uma experiência que teve seu início no impulso sentido de se ajoelhar, como ela mesma reconhece, e que foi o seu refúgio e a sua força nas piores circunstâncias:
“As ameaças e o terror crescem dia a dia. Abrigo-me em torno da oração como um muro escuro que oferece reparo, refugio-me na oração como se fosse a cela de um convento. Nem saio, tão recolhida, concentrada e forte estou. Este retirar-me na cela fechada da oração, torna-se para mim uma realidade sempre maior, e também um fato sempre mais objetivo. A concentração interna constrói muros altos entre os quais reencontro eu mesma e minha totalidade, longe de todas as distrações. Eu posso imaginar um tempo em que estarei ajoelhada por dias e dias, até não sentir os muros ao meu redor, o que me impedirá de me destruir, me perder e me arruinar”. (18 de maio de 1942).
No dia 29 de maio de 1942, escreve com franqueza sobre a insuportável desumanidade que a atingiu:
“Às vezes, é duro assimilar e compreender, oh Deus, o que aqueles que foram criados à sua imagem estão fazendo uns aos outros, nesses dias enlouquecidos. Mas não vou me fechar em meu quarto, oh Deus [!]. Tentarei ver as coisas de frente, mesmo os piores delitos, e descobrir o pequeno e despido ser humano em meio aos monstruosos restos provocados pelas absurdas ações do homem... Tento encarar o mundo, oh Deus, não fugir da realidade em meus belos sonhos – embora eu acredite que os belos sonhos podem coexistir com a realidade mais horrível – e continuar louvando sua criação, oh Deus, apesar de tudo...”.
Nos momentos mais duros, sua oração é uma oferenda feita com palavras e gestos simples: “O jasmim atrás da minha casa foi completamente arruinado pelas chuvas e as tempestades dos últimos dias. Suas flores brancas flutuam nas poças enlodadas sobre o telhado da garagem. Mas em alguma parte dentro de mim o jasmim continua florescendo imperturbável e espalha sua fragrância na casa onde você, oh Deus, habita. Note que cuido de você, que trago até você não apenas minhas lágrimas e apreensões, mas também o perfumado jasmim. E trarei para você todas as flores que eu encontrar no meu caminho, que certamente são muitas. Tentarei fazer com que você sempre se sinta em sua casa”.
Interior do bloco 11 do campo de concentração
Algumas linhas escritas no dia 12 de julho do mesmo ano, que vem sendo repetidamente citadas, expressam essa sua maneira de pensar e orar a Deus, que permanece chamando a atenção. Sem que saibamos com precisão onde ou em quem pôde se inspirar. Etty fala de “ajudar a Deus”. Uma atitude que se conjuga, é claro, com a consideração de Deus que encontramos na teologia depois de Auschwitz e que, a seu modo, a garota que não sabia se ajoelhar antecipou:
“Amado Deus, vivemos tempos de inquietação... Mas há uma coisa que cada vez está mais clara para mim: que você não nos pode ajudar, que nós te ajudamos para que ajude a nós mesmos. E tudo o que podemos fazer nesses dias, e o que realmente importa, é proteger esse pouco de ti, oh Deus, em nós. E possivelmente também nos outros. Lamentavelmente, não parece que possa fazer muito em nossas circunstâncias, em nossas vidas. Também não te responsabilizo por isso. Não pode nos ajudar, mas devemos te ajudar a defender sua morada em nosso interior até o final... Acredite em mim. Trabalharei sem descanso para você e serei fiel e nunca vou te afastar de minha presença”.
Finalmente: “O Senhor é meu baluarte”, escreveu em um cartão postal no trem que, assim como a outros que ela havia ajudado, a transportava para Auschwitz, junto com seus pais e irmão.
Ajudar a Deus e ajudar aqueles que sofrem são inseparáveis no legado de Etty. Não é de estranhar que em tempos de “silêncio” e de crise da linguagem religiosa, a escrita de uma vida como a sua, nada “convencional”, continue chamando a atenção.