30 Outubro 2021
"O conselho de Inácio, “ver Deus em todas as coisas”, significa que a vida espiritual não se limita a um momento da semana. Qualquer coisa pode ser o lugar de encontro com Deus", diz o ex-presidente do Centro Sèvres, François Boëdec e que é, desde 2017, o provincial dos jesuítas da Europa Ocidental Francófona.
A entrevista é de Pierre Jova, publicada por La Vie, 27-10-2021. A tradução é de André Langer.
Segundo ele, "São João diz: “Deus amou o mundo de tal maneira”. Queremos abraçar este amor, que acredita mais na humanidade do que, às vezes, a própria humanidade".
"Pedro Arrupe recordou nosso objetivo de “formar homens para os demais” - enfatiza o François Boëdec. Se permitirmos apenas que os jovens tenham uma boa carreira, estaremos nos desviando da nossa vocação. Apesar das lógicas de círculos que dela podem nos desviar, procuramos que as nossas obras continuem neste caminho".
No Dia de Todos os Santos, a família inaciana se reunirá em Marselha para celebrar o ano consagrado a Santo Inácio, desde quando foi ferido nas duas pernas por uma bala de canhão no cerco de Pamplona em 1521 até a canonização em 1622. Qual é a razão deste encontro?
Em primeiro lugar, para recordar essa história extraordinária, desde a bala de canhão do exército francês que feriu gravemente a perna de Inácio e o obrigou, durante a sua convalescença, a pensar no sentido da sua vida, mas não apenas. Quando se reuniu pela primeira vez em Lourdes, em 2006, a família inaciana tomou consciência de si mesma.
A família inaciana inclui, claro, os jesuítas e as várias congregações femininas que vivem da espiritualidade inaciana, mas outros grupos como a Comunidade de Vida Cristã (CVX), o Movimento Cristão de Executivos e Dirigentes (MCC), o Movimento Eucarístico Juvenil (MEJ), o Caminho Novo também faz parte. Sem falar em muitas escolas. É importante fazer um balanço 15 anos depois.
Nestes tempos de pandemia e poucas semanas depois da publicação do relatório da Ciase (Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja), trata-se de ver a que conversões somos chamados hoje. O que pode nos dizer a figura de Inácio sobre o tempo particular que é o nosso, que exige olhar as coisas com coragem e verdade? E tudo isso em Marselha, uma cidade que enfrenta a diversidade cultural, a imigração, às vezes a violência. Isso combina bem com a nossa preocupação com as periferias.
Como você definiria o carisma dos jesuítas?
Para Inácio, ajudar as almas está no centro da nossa missão. Quando escreve os Exercícios Espirituais, o objetivo é identificar em seu próprio itinerário os elementos para ajudar as outras pessoas. Este homem de ação está aprendendo a escutar o que se passa dentro dele. Ele descobre um amor em ação, que exige uma resposta. Isso entranha um combate espiritual para o qual é preciso estar preparado.
Como ele, todos nós temos balas que nos obrigam a pensar de outra forma a nossa vida! A que conversões as nossas balas nos empurram? Não temos a resposta de imediato, e é interessante ver como Inácio caminhou de Loyola a Roma, passando por Manresa, Jerusalém e Paris. Passo a passo, ele descobre o que Deus está lhe pedindo. Inácio nos mostra que o nosso desejo profundo é o desejo de Deus.
Os Exercícios são amplamente praticados além dos círculos inacianos. Como explica essa popularidade?
Ninguém tem o monopólio deste tesouro! Os Exercícios são para quem quer se abrir a Deus, esclarecer sua vida e fazer escolhas. Estou impressionado por ver tantos homens e mulheres, marcados pela espiritualidade inaciana, que se empenham de diferentes maneiras no serviço à Igreja e à sociedade.
Não tentamos guardá-los para nós! Dito isso, sempre fico um pouco desconfiado com aqueles que afirmam ser os únicos a dar bem os Exercícios... E depois, nem todos podem se declarar um acompanhante espiritual. Na família inaciana, procuramos dar uma formação que às vezes faltou em alguns lugares.
A espiritualidade inaciana enfatiza muito o tempo longo e o discernimento. Este é um desafio em nossa cultura dominada pelo imediatismo?
É o que torna a espiritualidade útil. Deus toma seu tempo com o homem. A história de Inácio é testemunha disso e sente-se isso nos 30 dias dos Exercícios. Na vida espiritual, é importante não ficar na superfície das coisas, não concluir muito rapidamente, não ficar na afetividade ou na emoção.
Quando todas as escolhas são possíveis, o longo prazo é uma garantia de autenticidade. Do mesmo que a dinâmica espiritual é um movimento. Jesus disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Descobre-se a verdade ao longo do caminho; a única verdade é caminhar com Cristo.
Isso não é elitista?
Não vejo como. Qualquer pessoa pode experimentar os meios simples que Inácio oferece. Oferecendo o seu dia de manhã, relendo-o à noite, sabendo se decidir... Essas não são coisas reservadas a uma elite! É possível ir a um centro de espiritualidade, mas também podemos, em casa, ler o Evangelho e sentir-nos unidos em torno de algo que nos ajudará. O conselho de Inácio, “ver Deus em todas as coisas”, significa que a vida espiritual não se limita a um momento da semana. Qualquer coisa pode ser o lugar de encontro com Deus.
É assim que nasce a conversação espiritual cara aos jesuítas?
A conversação espiritual não é falar palavras piedosas, mas poder falar sobre tudo o que afeta a vida afetiva, a família, o trabalho, a saúde, as questões políticas ou econômicas, de uma forma espiritual, de tal forma que possamos saborear os frutos do Espírito: a alegria e a paz do coração, a benevolência e a reconciliação...
A partir das conversações que surgem em torno da vida cotidiana, podemos nos unir ao outro no ponto em que ele se encontra, para então avançar gradativamente para o significado espiritual dessas realidades. É bem adequado para os nossos tempos e dá uma visão positiva do mundo. São João diz: “Deus amou o mundo de tal maneira”. Queremos abraçar este amor, que acredita mais na humanidade do que, às vezes, a própria humanidade.
A educação dos jesuítas é coroada por uma reputação de excelência. Como conciliá-la com a preocupação com os pobres?
Os primeiros companheiros tiveram a intuição de se engajar tanto com quem tem a capacidade de mudar a sociedade, como com os mais pobres. Um compromisso reforça o outro. A reputação dos nossos estabelecimentos está aí, mas não deveria se tornar um rótulo vazio.
Em sua época, Pedro Arrupe (Padre Geral da Companhia de 1965 a 1981, nota do editor) recordou nosso objetivo de “formar homens para os demais”. Se permitirmos apenas que os jovens tenham uma boa carreira, estaremos nos desviando da nossa vocação. Apesar das lógicas de círculos que dela podem nos desviar, procuramos que as nossas obras continuem neste caminho.
Hoje é difícil encontrar padres jesuítas em suas obras. Não são lugares onde se deveria reinvestir?
Tenho a preocupação de enviar jovens jesuítas para as nossas obras e capelanias. Não nos enganamos na missão ao querer estar com os jovens e seguimos a tradição da Companhia desde as suas origens. Eu acrescentaria que a nossa rede educacional na França e na Bélgica está bem viva: acabamos de inaugurar o Colégio Matteo Ricci em Bruxelas, em um bairro difícil, e temos um projeto semelhante em Marselha.
Finalmente, o Centro Teilhard de Chardin, no planalto de Saclay, será inaugurado em janeiro de 2022. Oferecerá um espaço de debate entre a ciência e a fé, bem como uma formação cristã para todos aqueles, estudantes e pesquisadores, que se instalarem no planalto. Este projeto nos permitiu trabalhar com as dioceses de Île-de-France, o que é uma grande aventura.
Fazer melhor com menos, é esse o destino dos jesuítas da Europa? Você mesmo foi nomeado para coordenar a fusão das províncias da França e da Bélgica francófona em 2017.
Não acompanho uma província moribunda! Mesmo que a reaproximação esteja ligada à redução do número de jesuítas, é uma oportunidade de experimentar uma profunda renovação apostólica. Há dinamismo e muitos projetos em nossa província, os companheiros estão trabalhando! E realizamos esses projetos com a família inaciana e o restante da Igreja.
Como formar um corpo entre jesuítas de várias nações?
As culturas eclesiais são diferentes. E então existem diferentes histórias e temperamentos. Do lado francês, facilmente temos ideias precisas sobre o que fazer. Entre os belgas, nos situamos mais no nível do compromisso. Mas a Companhia sempre quis agir localmente e pensar globalmente, com uma verdadeira dimensão internacional.
Para onde quer que vamos no mundo, nos sentimos em casa em uma comunidade jesuíta e imediatamente compartilhamos as chaves de compreensão. Quando, à mesa, um companheiro fala do Mali, outro do Chile, outro ainda da Polônia, olhamos para a Igreja e para os povos de maneira diferente!
Os jesuítas são, às vezes, vítimas de estereótipos, especialmente na França. Vocês aceitam ser enquadrados por alguns no clichê do progressivismo e do relativismo doutrinário?
Muitas vezes, algumas pessoas falam sem realmente conhecer a Companhia. A nós que somos reservados, isso deve nos encorajar a nos revelarmos melhor. Além disso, nossa história destila um imaginário que muito raramente corresponde ao que realmente somos. Gosto do que um bispo estrangeiro me disse certa vez: “Os jesuítas são livres, mas fiéis!”.
A liberdade é sempre amedrontadora. A liberdade vem da experiência dos Exercícios, o que significa que, na obediência, há momentos para dizer e fazer o que nos parece importante, para que o Evangelho seja sempre acolhido. Há um passado que deve ser preservado, mas também um futuro que deve ser abraçado, porque Deus fala em cada época. Sempre na fidelidade à Igreja; isso é fundamental na vida de Inácio. E acho que posso dizer honestamente que os jesuítas são fiéis e obedientes!
A Igreja na França busca um novo impulso missionário. Como os jesuítas desejam participar?
Gosto da palavra “impulso” porque, nos últimos anos, temos insistido em ajudar no discernimento e menos na missão. Antes, esse impulso nos levava para a China, para o Japão... Agora é mais difícil para nós manifestá-lo; no entanto, está ligado aos alicerces do que é a Companhia.
Precisamos mostrar mais o quanto o encontro com Cristo é a nossa força motriz e o quanto gostaríamos que os outros pudessem descobri-lo. A missão sempre está aí e deve ser vivida de forma diferente no novo tempo que é o nosso.
Quais serão os grandes projetos da Companhia nos próximos anos?
Quatro preferências apostólicas orientam as ações das nossas províncias: mostrar o caminho para Deus, caminhar com os pobres e os excluídos, ajudar os jovens a entrar na sociedade. A quarta, salvaguardar a casa comum, requer uma verdadeira conversão ecológica de nossas comunidades.
Temos o projeto de um ecocentro de espiritualidade, para ajudar, por exemplo, todos aqueles na casa dos trinta anos que aspiram a algo diferente das finanças, a avançar em suas vidas. Além disso, muitas famílias carecem de propostas adequadas. No entanto, os jesuítas não cuidavam muito das famílias, ao contrário das Comunidades de Vida Cristã. Porém, a primeira célula da Igreja é a família! É aí que se vive concretamente a alegria que vem da fé cristã, e de onde nascem as vocações.
Nossa sociedade está em busca de grandes vozes. As grandes figuras jesuítas ou morreram, como Henri de Lubac ou Bernard Sesboüé, ou se apagaram. No entanto, você tem companheiros comprometidos na arena pública, como Gaël Giraud na ecologia. Os jesuítas deveriam comprometer-se mais de corpo e alma?
Para que haja um Henri de Lubac ou um Bernard Sesboüé, são necessários muitos companheiros que vivam sua missão de forma mais discreta! A Companhia não é uma sucessão de grandes homens, mas uma família, onde cada membro, de acordo com o dom que recebeu, dá o melhor de si.
No passado, a maioria dos jesuítas não estava na corte do rei! Eles eram professores ou porteiros de um colégio, e ali se tornaram santos. Estou convencido de que nosso tempo dará origem a outras grandes figuras. Alguns serão conhecidos na mídia, outros não, mas farão o bem. O desafio é estar com Cristo, a serviço, sem buscar uma “glória vã”, como dizia Inácio com conhecimento de causa... Vamos ajudar cada companheiro a dar bons frutos, na missão que mais lhe convém.
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Exigência intelectual e conversação espiritual: os jesuítas são “livres, mas fiéis”. Entrevista com François Boëdec - Instituto Humanitas Unisinos - IHU