Aqueles filósofos irresponsáveis. Artigo de Massimo Recalcati

Foto: Città di Parma | Wikimedia Commons

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

29 Outubro 2021

 

"Não é a primeira vez na história mais recente do Ocidente que o caráter ideologicamente iliberal da extrema esquerda converge com aquele da extrema direita. O caráter paradoxal dessa convergência é dado pelo fato de que nos protestos No Vax e No Green Pass se revela uma ideia apenas elitista da liberdade que gostaria de excluir o vínculo, o elo social, a solidariedade. É o ponto onde o anarquismo e a vocação totalitária se entrelaçam de forma perturbadora", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das Universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 28-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Tive recentemente a oportunidade de jantar com meus queridos amigos de Trieste de origem argentina que me contaram como foi a ditadura militar na segunda metade dos anos 1970 em seu país. O macabro projeto dos militares pode ser resumido perfeitamente nas palavras do governador da província de Buenos Aries, Ibérico Manuel Saint-Jean: “Primeiro mataremos todos os subversivos, depois mataremos seus colaboradores, depois seus simpatizantes, então aqueles que permanecem indiferentes, e por fim, mataremos os tímidos”.

Nenhuma piedade, portanto, para as vozes fora do coro, para os opositores, para aqueles que não compartilharam a virada autoritária imposta pelos militares. Qualquer cidadão e qualquer organização potencialmente dissidentes contra o novo regime eram considerados um inimigo perigoso a ser suprimido. Mesmo naquele regime - como em todos os regimes ditatoriais - era imposta uma rastreabilidade dos movimentos individuais. Tratava-se de um sistema que visava tornar presente em todo lugar a perseguição aos antagonistas, o estabelecimento de um verdadeiro terrorismo de estado.

O general Videla, em 1975, pôde afirmar que “na Argentina deverão morrer todas as pessoas necessárias para alcançar a segurança do país”. Os opositores foram simplesmente suprimidos com o uso impiedoso da violência. Tortura e assassinato político estavam na ordem do dia. Caminhões militares carregavam em massa dissidentes para seu dramático destino. A rastreabilidade estava, naquele caso, a serviço da eliminação física do dissenso; era usada para compor "listas negras" que identificavam os opositores do regime que deviam ser suprimidos. A simples ideia de poder gritar "Liberdade, liberdade, liberdade!" em uma praça ou expressar o próprio juízo crítico na televisão era impensável e teria sido paga com o preço da vida.

Mesmo em tempos de crise provocada pela pandemia, tivemos que recorrer à rastreabilidade de nossos movimentos individuais. Essa rastreabilidade, porém, não está a serviço da morte, como acontece em toda ditadura, mas da vida. É tão difícil de entender? No entanto, em nosso país, a extrema direita e a extrema esquerda se lançaram numa crítica radical à gestão da pandemia e das relativas medidas de prudência e segurança sanitária (vacinação e Passaporte Verde entre todas) aprovadas por nosso governo. Essa crítica furiosa acontece em nome da liberdade.

Conhecemos o refrão mais refinado: a gestão da pandemia abriu o caminho para uma virada repressiva das nossas instituições que corre o risco de originar um estado de emergência permanente que acaba por justificar uma legislação antidemocrática. De fato, ao grito de “Liberdade! Liberdade!" uma extrema minoria de nosso país denuncia a virada autoritária do Estado democrático que ameaça a esmagadora maioria. Não é a primeira vez na história mais recente do Ocidente que o caráter ideologicamente iliberal da extrema esquerda converge com aquele da extrema direita. O caráter paradoxal dessa convergência é dado pelo fato de que nos protestos No Vax e No Green Pass se revela uma ideia apenas elitista da liberdade que gostaria de excluir o vínculo, o elo social, a solidariedade. É o ponto onde o anarquismo e a vocação totalitária se entrelaçam de forma perturbadora.

Não é por acaso que é precisamente a liberdade que é um princípio ético que não encontra nenhum direito de cidadania na extrema direita e na extrema esquerda. A violência anarquista de poucos gostaria efetivamente de querer ditar a lei para a maioria da população. É uma história antiga e terrível que no século XX atravessou tanto fascismos e comunismos. A leitura da presença de uma ditadura política e sanitária, que poria em risco ou mesmo já teria desestruturado o arranjo democrático de nosso país, não é por acaso uma leitura compartilhada pela extrema esquerda e pela extrema direita. É o mesmo juízo expresso por intelectuais de renome que, embora evitem aristocraticamente participar de levantes populares, são de fato irresponsavelmente os seus maitres à penser. Da elucubração filosófica ao desencadeamento da raiva nas ruas, o passo é mais curto do que se possa imaginar.

O elitismo do pensamento e os cortejos que desafiam o Estado não percebem que hoje a rastreabilidade, ao contrário daquela argentina, não está a serviço da ditadura, mas da liberdade, que o Passaporte Verde não restringe a nossa vida, mas é um meio fundamental para recuperá-la. Quem confunde ideias sobre esse ponto fundamental está na verdade defendendo um protesto contra as instituições num momento em que deveria prevalecer a solidariedade incondicional. Esperamos que este seja o último dramático espasmo da sombria temporada do populismo.

 

Leia mais