"O que é importante em um projeto de desenvolvimento é algo que está saltando aos olhos: não basta ter um sucesso econômico. Ele precisa ser articulado ao sucesso humano e social", afirma o economista
O avanço tecnológico e científico das últimas décadas, especialmente no caso brasileiro, ainda não foi suficiente para garantir as condições mínimas de bem-estar social à população brasileira em sua integralidade. A própria construção da economia urbana e industrial, sublinha o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, "fez com que hoje as cidades brasileiras sejam depósito de pobreza e de miséria. As pessoas não observam isto: a miséria foi transportada do campo para a cidade. Isso era uma coisa que estava incipiente mesmo no período de crescimento, mas agora se tornou, lamentavelmente, espalhada por todos os centros urbanos. A degradação das cidades é uma coisa impressionante. Então, realmente tivemos uma regressão. Mas isso foi um processo ao longo do tempo".
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Belluzzo reflete sobre o passado e os desafios do país daqui para frente. Segundo ele, "nós temos que pensar o futuro do país dentro das possibilidades que estão sendo criadas universalmente pelo desenvolvimento desse capitalismo. Então, o que se abre é a possibilidade de reduzir drasticamente as desigualdades, preservando as diferenças". E acrescenta: “O Brasil tem o problema e o desafio de cuidar da miséria e de enfrentar as questões que serão colocadas pela nova estratégia industrial se o país for tentar a reindustrialização”.
Hoje, pontua, "os avanços tecnológicos estão servindo como instrumentos de opressão, mas eles podem servir como instrumentos de libertação. Isso está muito claro nesse debate sobre a redução da jornada e a criação de atividades para que as pessoas se sintam participantes, se sintam confraternizadas com as outras".
Belluzzo destaca ainda que "há uma oportunidade enorme para realizar esses ideais que estão colocados no cristianismo dos bem-aventurados, do sermão da Montanha", ao comentar as propostas do Papa Francisco acerca da redução da jornada de trabalho e da instituição de uma renda mínima, em seu pronunciamento no IV Encontro de Movimentos Populares, no último sábado, 16-10-2021. "O Papa Francisco representa o espírito do cristianismo autêntico, aquele que nasce do Sermão da Montanha: sempre com uma preocupação com as pessoas, com o bem-estar das pessoas. O que o Papa está dizendo é o que o capitalismo ironicamente está propondo: é possível reduzir a jornada de trabalho diante dos avanços tecnológicos que foram conquistados".
Belluzzo em conferência no IHU (Foto: Ricardo Machado)
Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano e Caribenho de Planejamento Econômico e Social - Ilpes/Cepal e doutor em Economia pela Universidade de Campinas - Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. É um dos fundadores da Faculdades de Campinas - Facamp, onde é professor. É autor de Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (São Paulo: Facamp-Editora Contracorrente, 2017), Capital e suas metamorfoses (São Paulo: Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Campinas: Facamp, 2009), Temporalidade da Riqueza - Teoria da Dinâmica e Financeirização do Capitalismo (Campinas: Oficinas Gráficas da Unicamp, 2000), entre outras obras.
IHU - O Brasil é um país atrasado ou fracassado em termos econômicos, sociais, políticos e culturais? Sim, não, por quê?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Eu tenho uma certa implicância com a expressão “o Brasil é atrasado”. O Brasil, na verdade, já passou por diferentes momentos na sua história. Nesse sentido, não aceito essa ideia expressa pelo “é” porque as sociedades e suas economias estão sempre em transformação. O Brasil, até os anos 1980, era um país avançado porque havia conseguido chegar mais longe no seu processo de desenvolvimento e de industrialização, a despeito da manutenção da desigualdade e da dificuldade de incorporar todas as camadas menos favorecidas da população ao processo social moderno. Então, o Brasil se transformou, entre os países em desenvolvimento, no mais avançado de todos: mais avançado que a China e a Coreia. Mas esses países o superaram depois.
O que aconteceu é que estamos sofrendo uma regressão que começou com a crise da dívida externa e com as reações que foram concluídas pela crise. Não podemos esquecer que o Brasil teve a Semana de Arte Moderna, que foi uma espécie de despertar do país. Não vamos esquecer também que, no final do século XIX, tivemos Machado de Assis e outros interlocutores importantes. Esquecemos como os anos 1920, a despeito de terem sido dolorosos para o mundo, foram muito ricos do ponto de vista cultural: com Bauhaus e irreverências culturais que surgiram naquele momento.
O Brasil conseguiu acompanhar todo esse movimento, que se acentuou nos anos 1930, avançou durante a Segunda Guerra – a despeito das ambiguidades da posição do país durante o confronto –, e avançou no pós-guerra de uma maneira muito firme, com a participação de muitos protagonistas, inclusive das burocracias públicas e dos militares, com o processo de modernização do Estado brasileiro a partir da mesma década. Esse movimento foi muito importante porque ali realmente tinha atraso, ou seja, a burocracia pública era recrutada pelo desejo individual de cada presidente ou governador e depois passou a ser recrutada por concurso.
Depois dessa escalada de modernização e avanços, inclusive culturais, houve também a afirmação das universidades brasileiras. Não vamos esquecer que as universidades, tanto as paulistas, que conheço melhor, quanto as federais, tiveram um papel importante na formação científica e cultural da sociedade.
Isso tudo é visto com ressentimento por uma boa parte dessa fração da sociedade que hoje emergiu com a figura do Bolsonaro. Porque [o problema] não é o Bolsonaro; é essa fração que curte sua cultura perversa e primitiva. É a esse fenômeno que assistimos hoje, o qual também foi produzido por um declínio econômico e social muito forte, que vem dos anos 1980 e se acentua nos anos 1990.
Precisamos dizer que depois do Plano Real, por incrível que pareça, escapamos da inflação, mas ingressamos em um período de destruição e regressão industrial e produtiva, cuja foto pode ser tirada agora, com a dependência da indústria brasileira da indústria chinesa. Era justamente o contrário nos anos 1980: construímos uma economia urbana e industrial que fez com que hoje as cidades brasileiras sejam depósito de pobreza e de miséria. As pessoas não observam isto: a miséria foi transportada do campo para a cidade. Isso era uma coisa que estava incipiente mesmo no período de crescimento, mas agora se tornou, lamentavelmente, espalhada por todos os centros urbanos. A degradação das cidades é uma coisa impressionante. Então, realmente tivemos uma regressão. Mas isso foi um processo ao longo do tempo.
Então, o Brasil não é um país atrasado. O Brasil se transformou em um país atrasado por conta do processo de regressão e de declínio cultural, acentuado e piorado pelas redes sociais. Não há um instrumento mais poderoso do que as redes sociais para destruir a cultura, no sentido mais universal, porque elas vão simplificando as coisas e tornando os debates vazios e agressivos.
IHU - O senhor atribui esse declínio econômico e social ao modo como o desenvolvimentismo foi implementado no Brasil ou a outros fatores? O que deu errado nas propostas desenvolvimentistas dos anos 80 para cá e, de outro lado, quais foram suas contribuições positivas para o país?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Não gosto desses títulos. “Desenvolvimentismo” é um termo que virou uma objurgatória na boca dos conservadores. Mas, se falamos em desenvolvimentismo, devemos levar em conta as circunstâncias históricas. O desenvolvimentismo que se teve no Brasil ocorreu mais acentuadamente nos anos 1950 e 1960 – e os militares também não abandonaram esse projeto.
A despeito das considerações negativas de Roberto Campos, ele era um desenvolvimentista sem saber. Aquilo tinha muito a ver com as circunstâncias que o mundo estava vivendo e com o lugar em que o Brasil se inseria. Cinquenta anos em cinco foi uma proeza que Juscelino Kubitschek conseguiu realizar. Qual é a crítica que pode ser feita? É que, no momento em que o mundo estava vivendo a experiência do bem-estar social, sobretudo a Europa e os EUA – no âmbito da Guerra Fria –, o Brasil encetou uma trajetória de industrialização moderna com pouco cuidado com as questões das desigualdades sociais, mas a urbanização foi um processo muito rápido. Já naquele momento, boa parte da pobreza se localizou nas periferias das cidades e nas favelas, porque não se dispunha de instrumentos suficientes para absorver e incorporar essas pessoas. Então, quando os conservadores fazem a crítica ao desenvolvimentismo, eu dou risada porque eles não sabem o que foi.
Há uma questão que é preciso sublinhar: na Constituinte, o Brasil tentou incorporar todos os direitos que eram concebidos aos trabalhadores. Os conservadores brasileiros, que não são conservadores, mas reacionários atrasados, consideram a Constituição um obstáculo. Aliás, depois da crise da dívida externa, a concepção que passou a frequentar os gabinetes dos endinheirados e supostamente sabidos foi a de que aquela crise decorria de um erro fundamental, que era a presença do Estado na economia. Não lhes ocorre que o que aconteceu é que nós fizemos um recurso a uma coisa que eles estão sempre habituados: o financiamento externo, que foi a desgraça que levou o país a essa derrocada, cujos efeitos nós ainda não sentimos todos.
Mas esse conjunto, de um lado, de resistência à Constituição e, de outro, do horror que esses atrasados tinham diante da possibilidade de um metalúrgico assumir a presidência da República, está na raiz desse desencontro e desarranjo que estamos vivendo hoje.
IHU - Parece haver um consenso entre os economistas no diagnóstico de que o Brasil sofre da doença holandesa. A industrialização é condição necessária para a superação da pobreza e para retomar o desenvolvimento brasileiro ou não, considerando as novas configurações de trabalho?
Luiz Gonzaga Belluzzo – É uma boa pergunta. O Brasil vai ter que enfrentar desafios muito difíceis de serem superados e muito complexos porque, quando falamos em desindustrialização, não estamos falando apenas de uma perda de substância industrial, de setores, de empresas que saíram do Brasil. Estamos falando de desindustrialização em um sentido muito mais amplo: não só perdemos substância industrial, sobretudo, nos setores tecnologicamente mais avançados, como não incorporamos os novos.
Você ouviu algum membro da equipe econômica falar em política industrial? Ninguém fala em política industrial porque esse problema, para o governo, não existe. Não existe a questão da volta da preeminência do agronegócio na economia brasileira e da reprimarização da pauta de exportações. Para o governo, não existe diferença entre produzir um computador de última geração e um cacho de banana. O raciocínio deles é tão tolo que não se dão conta da diferença entre a complexidade e as exigências da produção de um computador do ponto de vista das inter-relações por dentro da economia e não só do setor dito industrial.
A indústria não é um conjunto de fábricas; indústria é uma forma de produzir. Isso foi determinado pelo salto dado na Revolução Industrial: passou-se a usar energia não humana, inanimada, como o carvão, a eletricidade, a energia tecnológica, de onde nasceu o navio a vapor, a locomotiva, um novo sistema de transporte. A Revolução Industrial foi abrangente porque ela não só garantiu a maior participação dos equipamentos na produção, como foi substituindo a mão de obra humana. Lembre-se que no mercantilismo havia um sistema em que os trabalhadores recebiam por peças e a automação era muito baixa. A Revolução Industrial foi um salto e isso não significa apenas que se desenvolveu um conjunto de fábricas inter-relacionadas que atendiam aos demais setores que são altamente influenciados pelo avanço tecnológico. Estarmos fazendo uma entrevista online demonstra qual é o papel da indústria.
A perda e a regressão industrial brasileira foram muito fortes e aconteceram em pouco tempo. Diria que estamos diante de uma necessidade de colocar isso em debate público, coisa que a imprensa brasileira não faz. Na imprensa, ninguém trata dessa questão. Se menciona, de passagem, a desindustrialização.
Um programa de industrialização vai ter que ser muito mais complexo e vai exigir uma participação muito forte da pesquisa e da investigação tecnológica. Os efeitos sobre o mercado de trabalho são muito claros no mundo inteiro. Acabei de ler um relatório do Cornell Law School, da Universidade de Cornell, nos EUA, sobre um estudo acerca do que aconteceu no mercado de trabalho dos EUA. Resumidamente, o que cresceu nos últimos 40 anos, com acentuada exposição nos últimos dez, 15 anos, foi o aumento do emprego precário, com salários muito baixos, com tempos de trabalho muito menores. Vale a pena ler porque é um estudo muito apurado.
Esse cenário, no Brasil, está um tanto quanto abrigável em uma miséria estrutural que temos aqui desde sempre, que se acentuou nos últimos anos com as políticas econômicas que foram adotadas. O Brasil tem o problema e o desafio de cuidar da miséria e de enfrentar as questões que serão colocadas pela nova estratégia industrial se o país for tentar a reindustrialização. Isso envolve, como a percepção que há no mundo inteiro – aliás, é impressionante a falta de contato do Brasil com o resto do mundo no debate que está ocorrendo –, como saiu na Inglaterra, na Europa, nos EUA, uma preocupação com as políticas que podem enfrentar essa questão.
No documento publicado pela Casa Branca, produzido por quatro departamentos de Estado dos EUA, feito a pedido do G7, os economistas insistem na necessidade de ter uma política com variações, parecida com a renda básica. Muitos deles insistem e sugerem que não basta a renda básica, ou seja, dar o dinheiro, mas é preciso também criar atividades para as pessoas que vão estar nessa situação, porque é preciso preservar a dignidade delas. Elas não podem se sentir simplesmente receptoras de dinheiro, mas precisam ter uma atividade, uma atividade cultural, de cuidado com os mais velhos e as crianças. Essas atividades precisam ser criadas porque elas não serão criadas pelo mercado ou poucas delas serão criadas pelo mercado.
É preciso que se crie essas atividades em uma esfera que não é necessariamente a esfera do assalariamento tradicional, que é a esfera que surge exatamente porque o capitalismo produz esse espaço de tempo livre que, ao mesmo tempo, se traduz como desemprego. É preciso transformar esse tempo livre em uma forma de atividade de dignificação das pessoas. É isso que está sendo discutido. Eu fico impressionado como não há essa discussão no Brasil, nem mesmo olhando para o programa do Biden, que tem todas essas dimensões.
IHU - Nesta semana, em pronunciamento aos movimentos populares, o Papa Francisco propôs uma discussão urgente sobre a instituição de uma renda básica universal e a redução do horário de trabalho, como forma de garantir que mais pessoas tenham acesso ao mercado. Como avalia essas propostas nesse contexto?
Luiz Gonzaga Belluzzo – O Papa está sempre atento. Imagino que tenha muita gente capacitada no Vaticano. Entro sempre no site deles para ver o que estão falando. Você sabe que eu tenho uma formação jesuítica e estou sempre me reaproximando deles. Devo muito a eles, quase tudo acerca da minha formação e esse espírito. Na verdade, o Papa Francisco representa o espírito do cristianismo autêntico, aquele que nasce do Sermão da Montanha: sempre com uma preocupação com as pessoas, com o bem-estar delas.
O que o Papa está dizendo é o que o capitalismo ironicamente está propondo: é possível reduzir a jornada de trabalho diante dos avanços tecnológicos que foram conquistados. Hoje, os avanços tecnológicos estão servindo como instrumentos de opressão, mas eles podem servir como instrumentos de libertação. Isso está muito claro nesse debate sobre a redução da jornada e a criação de atividades para que as pessoas se sintam participantes, se sintam confraternizadas com as outras. É importante que as pessoas se sintam partícipes do corpo social e não como figuras estranhas. Há uma oportunidade enorme para realizar esses ideais que estão colocados no cristianismo dos bem-aventurados, do sermão da Montanha.
É uma oportunidade incrível a despeito do que ocorreu recentemente, quando um deputado de São Paulo ofendeu o Papa e os bispos. Esse é um exemplo de como as chamadas elites brasileiras veem essa questão e veem o Papa. Esse não é o primeiro que eu vejo dizer que tem horror dessa dimensão e contribuição do Papa para o debate social e econômico.
IHU - Como o senhor tem pensado a discussão do desenvolvimento no Brasil à luz das mudanças climáticas e da diversidade dos povos - especialmente os tradicionais? Que tipo de desenvolvimento o país precisa nesse novo momento histórico?
Luiz Gonzaga Belluzzo – O Brasil está destruindo um ativo importantíssimo, que é a Amazônia, e, além disso, não entra no debate energético e do meio ambiente. Isso é um sintoma do atraso e do reacionarismo dos setores mais enriquecidos da sociedade. Eu vejo com muito pesar o fato de que o Brasil tem um potencial natural para contribuir com a redução das emissões, mas não participa ativamente dessa discussão. O Brasil está fazendo o contrário: o que assistimos recentemente foi o avanço da destruição ecológica. O governo brasileiro atual é inimigo das políticas de transição, que são muito urgentes.
As novas tecnologias que estão surgindo também podem ajudar a encaminhar essa questão climática, reduzindo, por exemplo, a necessidade de utilização da energia decorrente do petróleo. Isso vai ocorrer inexoravelmente. Vejo com muita esperança o fato de que, por exemplo, acossados pelas necessidades, os governos estão tomando algumas medidas – não todas – importantes. Por exemplo, uma boa parte dos recursos do programa do Biden é destinada ao desenvolvimento de baterias. As pessoas não prestam atenção, mas é muito dinheiro que ele está colocando em desenvolvimento de baterias, porque ele está antecipando a disseminação não só do carro elétrico, mas de outras formas de geração de energia, inclusive, de apropriação de energia doméstica por conta da energia solar, que vai exigir o desenvolvimento de baterias.
O Brasil tem potencial para entrar nisso se tivesse essa perspectiva por parte do governo brasileiro. Isso exige muita investigação, pesquisa tecnológica, mas, neste momento, o governo simplesmente cortou 600 milhões do ministério de Ciência e Tecnologia. Isso é outra regressão no país, porque os militares tinham uma clareza sobre a importância da pesquisa tecnológica. Nós fomos abandonando isso porque esse atraso, essa regressão atinge a capacidade tecnológica de quem está fazendo a gestão. Então, o papel do Brasil nesse debate poderia ser decisivo, dada a floresta amazônica e as riquezas naturais que não usamos de maneira tão civilizada e colaborativa. Fizemos o caminho inverso e nossa reputação no mundo é terrível desse ponto de vista.
Mas essa é uma questão incontornável. Se continuarmos nessa posição de resistência, de descaso, nossa situação econômica vai ficar muito ruim. Logo, ficará impossível qualquer empresa europeia ou americana comprar, por exemplo, produtos da agricultura brasileira. Para quem conhece o ambiente que está se formando, está ficando muito claro que a rejeição aos produtos agrícolas brasileiros é crescente. Isso é muito ruim para o Brasil.
IHU - Muitos especialistas se referem à transição energética como uma "transição energética justa e igualitária". Que peso ela poderá ter no desenvolvimento dos países, especialmente daqueles mais pobres e que argumentam pela necessidade de continuar com uma matriz energética fóssil por mais tempo para garantir o desenvolvimento econômico e social? Como ela poderá ser um instrumento para assegurar a justiça social?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Esse é um fenômeno universal. A transição energética é um projeto universal e não podemos deixar de lado as regiões que dependem muito da energia fóssil. Não se pode dar um caráter nacional para esse programa, porque o “X da questão” está na preservação do ecúmeno. Ecúmeno não supõe diferenças nacionais. Ecúmeno é uma palavra que diz respeito ao conjunto das condições ambientais.
Um compromisso estritamente econômico também é cada vez mais urgente para que se revigorem as instituições que foram criadas no pós-guerra, em Bretton Woods, criando, com mais força ainda, uma instituição global para cuidar do meio ambiente. Assim como é necessário recuperar a força dessas instituições globais para cuidar do sistema monetário e financeiro internacional. Não dá mais para continuar como está. Esse também é um problema global, que não será solucionado no âmbito dos países.
O meio ambiente não é uma questão nacional ou das entidades nacionais; é uma questão global que precisa ser administrada por um organismo em que seja possível a participação de todos, mas olhando para cada situação específica, como é o caso do Brasil, com suas implicações globais. A mesma coisa em relação ao sistema financeiro internacional, que é outro desarranjo grave, que aqui não é tratado, mas tem a mesma gravidade da questão ambiental. O que afeta a vida das pessoas, o bem-estar e as questões de justiça social, está fora do controle de cada um dos países; isso é um fenômeno global e, na verdade, universal, no sentido mais estrito da palavra, no sentido hegeliano da palavra.
IHU - Quando se fala em projeto de desenvolvimento para o Brasil, ressurge a ideia de um desenvolvimento dos trópicos, valorizando as características do país. Como essa ideia soa para o senhor? O que seria um desenvolvimento dos trópicos? Esses termos nos ajudam a pensar o futuro do país?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Nós temos que pensar o futuro do país dentro das possibilidades que estão sendo criadas universalmente pelo desenvolvimento desse capitalismo. Então, o que se abre é a possibilidade de reduzir drasticamente as desigualdades, preservando as diferenças. É isso que é o desenvolvimento dos trópicos? Acho que deve ser. Fazer um desenvolvimento mais igualitário.
O que é importante em um projeto de desenvolvimento é algo que está saltando aos olhos: não basta ter um sucesso econômico. Ele precisa ser articulado ao sucesso humano e social. Não sei se isso quer dizer desenvolvimento dos trópicos, mas é preciso ter claro uma coisa simples que está emergindo em todos os lugares e em todas as partes: o desenvolvimento só vale a pena se for para elevar a condição da vida humana, para homens e mulheres que vivem na sociedade. Essa é a visão que interessa e essa é a possibilidade que se tem hoje.
Com os sacrifícios, as desigualdades, as guerras e tudo o que o capitalismo produziu, todos que pensaram a sociedade de uma maneira mais avançada, pensaram dessa forma. Ninguém, nem Marx, nem Keynes, nem Schumpeter, que se interessava por isso, tinham uma visão particularista. Eles tinham uma visão de um sistema que deveria atender às necessidades humanas. O que acontece é que esse sistema não atendeu as necessidades humanas em que todos tivessem a mesma sensação de segurança e conforto. Pode parecer um discurso um pouco abstrato, mas não é; é muito concreto e é isso que tem que ser considerado quando se pensa em um programa de desenvolvimento.
O problema é que a economia, do jeito que ela existia – porque acho que ela está deixando de existir dessa forma –, é autorreferida, só pensa nela mesma. Não trata da vida social de maneira adequada. Ela se descolou da vida social. Então, o projeto de desenvolvimento tem que ter um componente fortíssimo relacionado com essa visão simples, mas, ao mesmo tempo, descuidada, que é a vida das pessoas.
O fim do assalariamento é o que está acontecendo no mundo inteiro, mas o fim do assalariamento não está significando o fim da dependência. As pessoas continuam mais dependentes da forma de trabalho das plataformas digitais. Mas tudo isso tem um poder libertador e é nisso que temos que pensar. Não sei exatamente se temos que ter a ideia de que talvez isso inclua os nossos valores tropicais, nosso jeito e maneira de ser. Isso vai ser cada vez mais liberado e menos homogeneizado por um projeto de desenvolvimento que tenha essas características que mencionei.
A existência da fome, por exemplo, é uma denúncia, um escândalo. Com o potencial que se tem de organização da sociedade, de produção, por que está se reafirmando a fome? Porque o governo brasileiro criou o teto de gastos que é um atraso monetário e fiscal. Esse teto de gastos está matando as pessoas. O capitalismo, no seu desenvolvimento, criou condições para ultrapassar essas bobagens, através dos Bancos Centrais e dos sistemas bancários que estão voltados para o próprio capitalismo, mas podem ser usados de outros modos.
Basta ver a experiência do pós-guerra. O sistema financeiro, que governa o capitalismo realmente, foi controlado e transformado em um sistema de desenvolvimento. Mas os economistas não sabem de história financeira, de história monetária. Então, eles não sabem que isso foi feito na Europa e nos EUA o tempo inteiro no imediato pós-guerra para criar as condições de melhorias das condições de vida. Isso foi muito bem-sucedido, com distribuição de renda etc.
O que estamos observando agora, com o teto de gastos, é que ele repete o primarismo e o reacionarismo das classes dominantes brasileiras e do mercado financeiro do Brasil. Seria possível fazer programas sociais muito amplos, bem decididos. Mas aí eles falam da inflação. Mas a inflação que está surgindo nasce de uma assimetria da recuperação da pandemia; está ocorrendo no mundo inteiro porque tem choque de oferta. Isso não será resolvido com política monetária, como está todo mundo percebendo fora do Brasil. Só no Brasil os economistas e analistas continuam falando essa bobagem. No mundo inteiro, estão dizendo que não adianta subir a taxa de juros para combater a inflação; tem que ajudar os setores que estão saindo mais devagar ou mais depressa a se ajustarem. Tem que ter um planejamento estatal para fazer isso.
IHU - O que vislumbra para 2022 em termos políticos?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Estou vendo que as projeções que estão nascendo do próprio mercado são muito negativas do ponto de vista da inflação e do crescimento também. Não posso divergir dessas projeções. Meu juízo é que está todo mundo apostando em uma derrota do presidente atual, que acho que é muito provável. Na verdade, se tivermos mais quatro anos de Bolsonaro, o Brasil fica irrecuperável.
Mas é preciso ter claro que, mesmo que um candidato de oposição seja vitorioso, nós temos desafios. Para que eles sejam vencidos, não adianta ter um programa econômico muito bem elaborado; é preciso ter um apoio social e um apoio político no parlamento muito sólidos para poder desenvolver esse programa.
Vou repetir uma coisa que meus amigos dizem: a economia não tem nenhuma relevância sem a política, sem a negociação social. Diferentemente de outras ocasiões, não basta dar boas condições para as pessoas, é preciso dar uma boa compreensão para elas de por que elas estão recebendo aquilo. Então, é preciso um programa de debate, de esclarecimento para as populações mais massacradas, juntamente com a salvação imediata delas. Tenho visto depoimentos de pessoas passando fome e isso não tem nenhuma razão para ocorrer a não ser a estupidez do teto de gastos e o reacionarismo das elites brasileiras.