20 Outubro 2021
“Jesus diz a seus seguidores para serem os últimos, para serem servos. Pertencimento liminar, sendo alimentado por e alimentando outros desgarrados, virando nossos rostos do centro brilhante de poder para as luzes dispersas do deserto; este é o cálice do qual todos nós devemos beber. Um grande presente de ser queer, se formos capazes de aceitá-lo, é o presente de já estar entre os últimos”, escreve Laurel Marshall Potter, doutoranda em Teologia Sistemática e Comparada no Boston College, com interesses que incluem pensamento e práxis decoloniais e teologias da libertação latino-americanas, com ênfase em El Salvador, em artigo publicado por New Ways Ministry, 17-10-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Vale a pena permanecer?
Quase todo católico LGBTQIA+ já teve esse pensamento em sua mente. Ser uma católica queer muitas vezes é parar na porta da Igreja, ser dividido pela metade por suas paredes. Quando Jesus pergunta aos filhos de Zebedeu no Evangelho do domingo passado, 17-10-2021, se eles podem beber o cálice que ele vai beber, pensamos nas muitas maneiras, grandes e pequenas, de nossos irmãos homossexuais serem crucificados. Este mês marca o 23º aniversário da noite em que Matthew Shepard foi espancado e amarrado a um poste em Laramie, Wyoming, antes de morrer no hospital seis dias depois. Não tenho dúvidas de que este mês também marca o aniversário de muitas outras vítimas anônimas de crimes de ódio a LGBTQIA+, vítimas que são majoritariamente trans, mulheres, negros, indígenas, femininas, deficientes, pobres e indigentes. Permanecer em uma Igreja cujos ensinamentos contribuem para esses sofrimentos é beber um cálice infernal.
De forma clara: a resposta muitas vezes é não. Este artigo não é um argumento para convencer a permanecerem católicos. Fui a um churrasco na semana passada celebrando a união de duas amigas lésbicas que tiveram formação católica na infância. Este ano, elas foram recebidos nas igrejas episcopal e luterana. Nós todos temos a sorte de compartilhar um mundo com essas duas mulheres que trazem seu ser inteiro para ser visto e podado por sua comunidade.
Essa celebração é o que a Igreja deve ser. “A glória de Deus”, diz Santo Irineu, “é o ser humano plenamente vivo”. Quero que todos os meus irmãos homossexuais estejam totalmente vivos; para trazer nossa vida plena para a Igreja; para sermos fortalecidos em nossos sonhos, nossos relacionamentos, nossos casamentos, nossa paternidade, nossas perdas. Sacrificar isso para passar para dentro das paredes – negar a busca de glorificar a Deus em troca da tolerância deste mundo – não é o que Deus deseja. Meus amigos são anunciadores do retorno de Jesus.
Isso é o que ouço Tiago e João perguntando a Jesus. Vale a pena? Todo esse perigo e sofrimento? Todo o ridículo, a tortura, a fome, a rejeição? Vou pelo menos receber minha recompensa quando tudo acabar? Você vai reconhecer que eu resisti?
E Jesus os repreende. Não há recompensa por persistir; o martírio performativo joga o mesmo jogo manipulador de troca e dívida que nos levou a essa confusão violenta em primeiro lugar. É o que os governantes deste mundo querem: autoflagelação, demonstrações públicas de lealdade, sacrifício estratégico, colocar a luz debaixo do alqueire para que o brilho não atinja os olhos de ninguém. A única coisa que nos faz continuar às vezes é imaginar encontrar o cardeal Burke ou membros da família hipócrita nos portões perolados e observar seu queixo cair enquanto ascendemos ao nosso glorioso trono de vindicação, mas aqui Jesus nos diz: Amados, não é assim.
Permita-me mapear o terreno da minha consolação:
Eu nem sei onde estou. Estou fora das portas, e o brilho quente dos vitrais impede que meus olhos se ajustem ao deserto escuro e sem lua que cerca a Igreja. O ar está frio e seco, e uma erva daninha toca meu pé. Eu escolhi isso, olhando de fora, ou as paredes simplesmente subiram do meu lado? Não me lembro quando cheguei ou se sempre estive aqui. Eu pressiono meu nariz contra uma janela de vidro transparente – o manto de algum anjo ou a própria barba de Deus – e vejo que eles começaram a comer sem mim.
Percebo uma presença ao meu lado. Virando meu pescoço para enxergar na escuridão atrás de mim, vejo várias figuras amontoadas no frio, curvadas sobre pequenas fogueiras. A criança ao meu lado pega minha mão e me leva ao grupo mais próximo. Eles colocam uma colher de algo quente e perfumado em uma tigela, e eu deixo o vapor acalmar o meu rosto.
Jesus diz a seus seguidores para serem os últimos, para serem servos. Pertencimento liminar, sendo alimentado por e alimentando outros desgarrados, virando nossos rostos do centro brilhante de poder para as luzes dispersas do deserto; este é o cálice do qual todos nós devemos beber. Um grande presente de ser queer, se formos capazes de aceitá-lo, é o presente de já estar entre os últimos. A tarefa não é entrar pela porta. A tarefa é ficar aqui, pregar o Evangelho com nossas vidas e esperar que as paredes desabem.
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