13 Outubro 2021
“Além de a ordenação de mulheres ser a solução errada para os problemas que enfrentamos, acho isso limitante e outra forma de clericalismo. A Igreja ensina consistentemente que os maiores no reino dos céus não são os ordenados, mas os santos. E para aqueles que foram expostos ao terrível clericalismo, eles tendem a aderir à famosa opinião de Dante de que muitos ministros ordenados infelizmente não estão no céu”, escreve Pia de Solenni, teóloga moral, presidente do Global Institute for Church Management, em artigo publicado por America, 08-10-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Quando a Igreja Católica oficialmente direciona a questão se mulheres podem ser ordenadas ao sacerdócio, como fez em “Ordinatio Sacerdotalis”, a resposta, nas entrelinhas, é geralmente algo como: “não, isso não pode ser feito”. Para a era moderna, “não pode” é chocante. Depois de tudo, a história da humanidade é muito uma história de provimento do que nós podemos fazer e que antes não podíamos. E a fé cristã expande as capacidades humanas para além dos limites naturais.
Então quando ela diz que “não pode”, a Igreja deveria estar se embasando em uma profunda tradição teológica, histórica e bíblica, como o jesuíta Avery Dulles aponta em “Gender and Priesthood: Examining the Teaching” (“Gênero e Sacerdócio: Examinando o Ensino”, em tradução livre). E então a realidade levanta outra possibilidade: será que quando nós perguntamos se as mulheres podem ser ordenadas, nós estaríamos fazendo a questão errada?
Há muitos casos onde as mulheres tem um desejo sincero de se tornar sacerdotes, como no caso de Santa Teresa de Lisieux, quem eventualmente entendeu que sua vocação incluía uma dedicação especial para o apoio aos padres. Seus escritos manifestam a sua forma de oração que processava seu desejo. Eu não tenho dúvidas que isso foi um desafio para ela, assim como isso segue desafiando outras mulheres.
Mas as experiências de muitas podem estar mais conectadas ao desejo de aprimorar o entendimento ou as falhas do sacerdócio. Quando vemos nossos líderes ordenados nos decepcionar, católicos sinceros começam a procurar soluções. Para alguns, isso inclui a ordenação de mulheres. O problema com isso é que estamos respondendo a uma falha, um abuso de poder, que é mais uma crise de gestão. E pensamos que, para remediar a situação, o poder deve ser redistribuído.
Isso pode ser parte da solução, como discutirei a seguir. Mas também reflete um mal-entendido fundamental sobre o sacerdócio e uma subavaliação por ele ser baseado no sacerdócio de Cristo que veio como “um servo de todos” (Catecismo da Igreja Católica, nº 1551). Esse papel particular de servo é, na verdade, de profundo amor, culminando na paixão e na morte de Nosso Senhor. E sim, infelizmente, essa realidade não foi vivida por alguns dos ordenados, mesmo que todos possamos apontar bons exemplos de homens que são ministros ordenados. Quando vivenciamos mais do que alguns exemplos trágicos (como os escândalos de abuso sexual), os fiéis católicos não podem deixar de buscar soluções para o problema.
Em termos de tomada de decisão, não há razão para que os clérigos não possam incorporar melhor os leigos. Sim, o direito canônico tem um modelo verticalizado de cima para baixo. Ao mesmo tempo, não limita um bispo ou padre de delegar poder de decisão.
No ano passado, trabalhei em webinars com o cardeal George Pell, da Austrália (e do Vaticano), e o arcebispo Anthony Muheria, do Quênia. Ao falar sobre o tema da transparência na Igreja Católica, cada um deles disse que, por terem escolhido pessoas competentes – pessoas habilitadas e dispostas a fazer as perguntas difíceis – eles nunca tiveram que contradizer as decisões de seus conselhos diocesanos de finanças. O mesmo deve ser verdade para outros conselhos consultivos, como os que analisam casos de abuso sexual. Contar com mulheres e homens leigos experientes e de mente forte é uma maneira de um bispo utilizar experiência profissional fora do reino de suas próprias habilidades e ter mais certeza em suas decisões. Embora o bispo seja o último responsável pela decisão final, o direito canônico não o proíbe de difundir o poder de seu cargo por meio da colegialidade.
Eu acrescentaria também que muitas vezes pensamos que os padres são alguém que não são; nesses casos, o laicato realiza um clericalismo reverso. Esperamos que eles tomem decisões significativas sobre questões importantes, como se as únicas pessoas que deveriam pesar fossem as que usam colarinho clerical. Nas palavras de minha mãe: “Já se foram os dias em que o padre era o único na paróquia que sabia ler e escrever”. Na verdade, esses dias já se foram há muito tempo. A governança e as estruturas de tomada de decisão das paróquias e dioceses poderiam evoluir para incluir muito mais contribuições de leigos sem contradizer o direito canônico; isso estaria muito de acordo com as ideias do Papa Francisco para a reforma da Igreja. Em alguns lugares, isso já está acontecendo.
Quando o cardeal Pell era prefeito da Secretaria para a Economia do Vaticano, ele era conhecido por designar para sua equipe uma mulher leiga que era eminentemente qualificada em economia para assistir às reuniões que eram tradicionalmente reservadas para clérigos graduados. A ordenação, ele entendia, não confere um M.B.A. aos homens.
O Papa Francisco disse a famosa frase que nossos líderes ordenados precisam “ter cheiro de ovelha”. Isso também pode ser aplicado à tomada de decisão, de forma que as decisões não sejam tomadas isoladamente do rebanho. Em nosso Programa de Gestão da Igreja em Roma, tivemos a sorte de construir um corpo docente que é representativo de todas as vocações, no qual os praticantes compartilham sua experiência com líderes atuais e futuros da Igreja para que possam administrar melhor os ativos da Igreja. Obviamente, para que isso funcione, a Igreja deve estar disposta a pagar salários competitivos por uma expertise competente.
Minha proposta é mais estrutural do que as tentativas superficiais de quem quer manter estruturas clericais disfuncionais no lugar e simplesmente acrescentar mulheres a essas. Recentemente, li sobre uma mulher altamente qualificada que havia sido nomeada para uma dessas estruturas e minha resposta imediata foi: “Ótimo, agora eles estão desperdiçando o tempo dela também”. Embora tenha sido uma honra para ela receber a nomeação, não pude deixar de pensar que ela provavelmente seria muito mais eficaz se recebesse mais um papel de liderança para criar e dirigir algo. A maioria dessas funções na Igreja não requer ordenação sacerdotal.
Além de a ordenação de mulheres ser a solução errada para os problemas que enfrentamos, acho isso limitante e outra forma de clericalismo. A Igreja ensina consistentemente que os maiores no reino dos céus não são os ordenados, mas os santos. E para aqueles que foram expostos ao terrível clericalismo, eles tendem a aderir à famosa opinião de Dante de que muitos ministros ordenados infelizmente não estão no céu.
Eu gostaria de pensar que nós estamos além dos anos 1980, quando muitas mulheres no local de trabalho sentiam-se que para serem aceitas tinham que agir e se vestir como homens. Mulheres não deveriam ter que mudar quem são a fim de ter sua importância reconhecida na Igreja. Também, é importante reconhecer que a maioria dos homens não são chamados ao sacerdócio; isso faz um pouco de sentido para limitar ou modelar as conversas sobre a vocação das mulheres na Igreja em torno do tema da ordenação.
Similarmente, pelo menos nos países desenvolvidos, nós temos visto uma mudança no significado da diversidade. Quarenta anos atrás, diversidade significava incluir pessoas que não estariam normalmente à mesa em razão de sua etnia e/ou sexo, enquanto esperava-se que elas se adequassem aos comportamentos, normas e características daqueles que já estavam sentados à mesa. Agora, quando praticada integralmente, a diversidade significa que nós valorizamos as perspectivas das pessoas de diferentes contextos mais que esperando que elas se conformem aos ideais pré-existentes e características de um grande grupo de pessoas.
Quando se trata da questão do papel das mulheres na Igreja, estou particularmente convencida de que só podemos seguir adiante reexaminando completamente nosso passado e, ao fazê-lo, aprofundando nossa compreensão dos papéis das mulheres nas Escrituras. A Bíblia oferece diversos exemplos em que Jesus recusou a restringir por normas culturais em torno da diversidade vocacional. Em seus encontros com todos, desde os fariseus até a mulher adúltera, ele modelou novos comportamentos e chamou as pessoas para papéis únicos. Alguns exemplos vêm à mente.
Em geral, conhecemos o relato de Maria, a jovem adolescente, dando seu consentimento para se tornar a mãe de Deus em Lucas 1, 38: “Eis a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra”. Seu poderoso testemunho de aceitar a vontade de Deus não é muitas vezes visto como um precursor da aceitação de Jesus de sua cruz durante sua paixão – esta que ele provavelmente aceitou antes da Maria o aceitar, mas que é dada a conhecer à humanidade em uma sequência diferente: “Pai, se queres, afasta de mim este cálice. Contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua!”(Lc 22,42).
Jesus tinha duas naturezas: humana e divina. Em sua natureza humana, ele se humilhou para aprender como nós. Várias parábolas demonstram que ele aprendeu com sua mãe quando criança, acompanhando-a em suas tarefas diárias que envolviam fazer pão, costurar e outras tarefas domésticas. Talvez em um nível humano ele também aprendeu com ela o fiat (“que seja feito”) que precedeu seu próprio fiat, conforme articulado durante sua Paixão.
Outra passagem bíblica favorita minha é a história da mulher no poço (Jo 4, 4-29). Ela está isolada de sua comunidade por causa da natureza pública de seus pecados, então ela consegue água ao meio-dia, quando a maioria das pessoas estaria dentro de casa evitando o calor do dia. Para essa mulher, que nem mesmo é judia, Jesus se revela como o Messias. Ao ouvir essa revelação, a mulher vai contar às pessoas sobre ele, e elas vão até ele. De muitas maneiras, ela poderia ser chamada de proto-evangelista.
Quando Maria de Betânia lava os pés de Jesus com um óleo caro e os seca com seus cabelos (Jo 12, 1-3), a tradição e os comentaristas a relegam ao papel de mulher pecadora (embora todos nós compartilhemos essa parte da experiência humana). Mas tenha em mente que João diz que isso acontece apenas seis dias antes da Páscoa, a mesma Páscoa em que Jesus lava os pés de seus discípulos (Jo 13, 4-10). Mateus e Marcos também registram este evento, colocando-o há dois dias da Páscoa (Mt 26, 1-13; Mc 14, 1-9). A tradição afirma que ela foi purificada de seus pecados neste gesto único de humildade para com aquele que poderia perdoar pecados. Surpreendentemente, Jesus usa esse mesmo gesto para modelar para seus apóstolos como eles devem modelar seu perdão para com os penitentes. Nada é simplesmente coincidência nas Escrituras.
Logo depois, sabendo que sua mãe e outras mulheres estão perto de Betânia, Jesus diz a seus discípulos para fazerem os preparativos para a Páscoa (Mt 26,17-19; Mc 14,12-16; Lc 22,7-12). Em outras palavras, ele lhes disse para fazerem “trabalho de mulher”. Dada a sua natureza divina, ele conheceu a grandeza de sua mãe Maria e Maria Madalena. Ele também sabia que alguns dos apóstolos falhariam com ele na própria noite de sua Paixão.
Após sua morte, Maria Madalena é a primeira a quem Cristo aparece (Jo 20, 11-18). Ele a instrui a ir até os apóstolos e contar a eles o que ela viu. Por esta razão, no século XIII, São Tomás de Aquino a chamou de “apóstola dos apóstolos”. Em 2019, o Papa Francisco elevou seu dia de festa à festa da Igreja universal.
E, finalmente, por meio de sua abertura ativa à graça, a Tradição afirma que a mãe de Jesus se torna – na mesma sala onde a Última Ceia foi realizada – a autoridade da graça no Pentecostes para os apóstolos (Atos 2, 1-3).
Claramente, essas mulheres responderam a Jesus de uma forma que as separou de outras pessoas, até mesmo de seus discípulos mais próximos. Ele não escolheu limitar o seu papel na Igreja ao de seus ministros ordenados; mas ele claramente elevou alguns ao menos ao nível de seus apóstolos. Devemos gastar mais tempo considerando essa realidade.
Ao revisitar os exemplos fornecidos nas Escrituras, podemos expandir nosso ponto de vista para compreender o exercício do poder na Igreja e, assim, esclarecer a relação entre as funções de administração e ordenação. Então, com uma apreciação mais profunda do valor do componente real do batismo, podemos desvendar a crise de identidade identificada pelo Concílio Vaticano II e superar o fardo do clericalismo.
Jesus disse que a messe é grande. Talvez os trabalhadores sejam tão poucos simplesmente porque ainda não avaliamos a profundidade e a amplitude de seu testemunho.
No dia 13 de outubro, às 10h, a Profa. Dra. Anne-Marie Pelletier, do Collège des Bernardins e vencedora do Prêmio Ratzinger 2014, proferirá a palestra 'A crise do cristianismo hoje. Uma abordagem na perspectiva das mulheres" no XXI Simpósio Internacional A (I) Relevância Pública do Cristianismo num mundo em transição".
O evento é gratuito e será transmitido na página inicial do IHU, no canal do Youtube, e na página do Facebook do IHU, com tradução simultânea para o português. Para acompanhar o evento em idioma original, você pode acessar a plataforma Zoom. O texto da conferência está disponível neste link.
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Ordenar mulheres ao sacerdócio não corrigirá os problemas institucionais da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU