06 Outubro 2021
"Difícil descrever a gravidade, a intensidade e o rigor da informação produzida em 5 de outubro com a apresentação em Paris do Relatório da Comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja (CIASE)", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 30-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Duas horas de números, avaliações e reflexões que iam caindo como um martelo sobre os presentes. A estimativa conservadora é de 216.000 vítimas de abuso por 2.900-3.200 padres predadores num período de tempo que vai de 1950 a 2020. Eles representam 3% dos 150.000 padres ativos nas mesmas décadas. Dois terços deles são diocesanos, os outros religiosos.
Se forem incluídos também os colaboradores leigos, chega-se ao número total de 330.000 vítimas. Trinta meses de levantamentos, 26.000 horas de trabalho para os 22 comissários (todos em caráter voluntário). Todas as indicações relativas aos modelos, à idade das vítimas, às modalidades dos agressores, etc. são examinados nas 350 páginas do relatório, às quais se somam mais de 2.000 páginas de anexos.
Deixando uma análise mais aprofundada à leitura direta do texto, posso destacar alguns elementos da apresentação transmitida pela TV dos bispos franceses KTO. Em primeiro lugar, a centralidade das vítimas. A elas foi creditado o sucesso da obra pelo presidente da Ciase, o ex-vice-presidente do Conselho de Estado, Jean-Marc Sauvé. Seus depoimentos enriquecem o texto e principalmente os anexos. A eles fizeram referência tanto o presidente da Conferência Episcopal, D. Eric de Moulins-Beaufort, bispo de Reims, como a Irmã Véronique Margron, presidente da Conferência dos Religiosos e Religiosas da França (as duas instâncias que encomendaram e deram suporte ao trabalho da Ciase).
Através da palavra das vítimas foi reconhecido terem transformado uma desatenção compartilhada em um tapa de consciência. Não possível de outra forma.
Na síntese do Relatório, o presidente escreve: “Uma convicção foi-se aos poucos se estabelecendo ao longo do tempo: as vítimas possuem um saber único sobre as violências sexuais e só elas poderiam torná-lo acessível a nós para uma restituição. É a sua palavra que norteia o relatório da comissão. Foram vítimas e tornaram-se testemunhas e, neste sentido, atores da verdade. É graças a eles que o Relatório foi concebido e escrito (…). Foi construída sobre essa mudança singular e impalpável, sem que nada tenha sido claramente programado desde o início”.
Vèronique Garnier, vítima na adolescência, colocou o problema da possível recepção do trabalho da Ciase: “Temo principalmente a reação dos católicos. Receio que alguns achem tão difícil aceitá-lo que o rejeitem. Há alguns meses venho rezando muito para que os corações se abram para a verdade que será mostrada. Será necessário elaborar o luto de uma determinada imagem da Igreja. É certo: a Igreja será humilhada. Será capaz de passar da humilhação para a humildade? Espero que sim".
As reações imediatas dos protagonistas eclesiásticos vão na direção desejada. D. De Moulin-Beaufort expressou-se da seguinte forma: "Expresso a minha vergonha, o meu assombro, mas também a determinação para que a recusa de olhar no rosto, de escutar, a vontade de esconder ou mascarar os fatos e a relutância em denunciá-los em público, desapareçam dos comportamentos das autoridades eclesiais, dos padres e dos agentes pastorais, de todos os fiéis. Perdão a todos e a todas. Sei que através de vocês existem milhares de outros que é preciso lembrar, até aqueles que serão impedidos para sempre de testemunhar”.
A Ir. Margron, dirigindo-se diretamente a Jean-Marc Sauvé, disse: “Como é possível comentar positivamente um desastre? O que dizer, senão sentir uma dor infinita, uma vergonha carnal, uma indignação absoluta? (…) É necessário o silêncio no mais profundo de si mesmo para recolher-se diante de cada vida empurrada para o abismo, diante dos crimes massivos cometidos na Igreja, na minha Igreja. Diante de um povo esmigalhado pela violência do crime”.
Entre as sugestões propostas há um elemento que suscitará muita discussão: retirar a obrigação de sigilo da confissão sacramental em presença de abusos sexuais de menores. A garantia do segredo profissional tem um limite que também o segredo sacramental deveria respeitar, em nome do direito natural e da dignidade da pessoa.
A recomendação no. 43 pede que "o segredo da confissão não derrogue com a obrigação, prevista no código penal e em conformidade, segundo a comissão, do direito divino natural de proteger a vida e a dignidade da pessoa, de denunciar às autoridades judiciais e administrativas os casos de violência sexual infligida a menor ou a uma pessoa vulnerável”.
Outro elemento que suscitará discussão diz respeito à figura do sacerdote, onerado por uma sacralização excessiva. “Identificar as exigências éticas do celibato consagrado no que diz respeito, em particular, à representação do sacerdote e do risco que consiste em conferir-lhe uma posição heroica e de domínio”; com o consequente convite a avaliar “que sejam ordenados padres homens casados que reúnam as condições solicitadas por Paulo aos pastores na primeira epístola a Timóteo” (recomendação n. 4).
Numerosas as questões relativas ao patrimônio do código da Igreja: uma excessiva confusão e concentração de poderes no bispo; a conveniência de um tribunal penal supradiocesano; a necessidade de dar a palavra às vítimas como parte essencial do processo. É oportuno repensar “a concentração nas mãos de uma só pessoa dos poderes da ordem e do governo” e a necessidade de distinguir o foro interno do foro externo (recomendação 34).
Existem também observações precisas sobre a pregação moral: as relações sexuais extramatrimoniais não podem ser colocadas no mesmo plano dos casos de violência sexual. Ainda existem muitos tabus na visão da sexualidade. Muitas vezes nos referimos a um carisma que não encontra verificações.
A responsabilidade da Igreja como tal, de sua instituição, é fortemente enfatizada. “Reconhecer a responsabilidade sistêmica da Igreja. Nesse sentido, examinar os fatores que contribuíram para suas deficiências institucionais. Reconhecer que o papel social e espiritual da Igreja impõe sobre ela uma responsabilidade particular no âmbito da sociedade da qual é parte relevante” (recomendação 24).
Há muitas indicações sobre as estruturas existentes contra os abusos, em particular sobre as células de escuta em nível diocesano e sobre o tema das indenizações às vítimas. Transversal é o apelo ao papel das competências laicais e à presença da mulher na Igreja a quem não é possível negar o acesso a funções de governo, estabelecendo uma distinção mais eficaz entre a ordem sacramental, a jurisdição e o governo.
A decisão sobre a comissão Ciase é certamente um ato de coragem da Igreja francesa; mas verdade seja dita, a árdua tarefa agora é reconstruir a dignidade e a esperança. Como disse Sauvé, no final de sua manifestação, não é apenas uma necessidade para a Igreja. “É parte integrante da nossa sociedade, um componente essencial dela. Portanto, é imperativo restabelecer uma aliança agora trincada. A Igreja pode e deve fazer tudo o que for necessário para restabelecer o que foi destruído e reconstruir o que afundou”.
Em termos mais imediatos, um dos comissários, o judeu Jean-Pierre Rosencveig, comentou: “Devemos salvar o soldado Igreja. Já perdemos o partido comunista, se perdermos a Igreja estaremos fritos. A Igreja tem o seu lugar e deve continuar a fazer progredir a sociedade, mas hoje, seja o que for de que ela possa falar, termina-se apenas no sexo. Deve voltar a ser uma instituição legítima, responder por suas responsabilidades pelo passado e assumir a responsabilidade pela sociedade”.
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Abusos na Igreja: o massacre francês - Instituto Humanitas Unisinos - IHU