17 Agosto 2021
“O governo Ortega está convencido de que em condições normais perderia as eleições de novembro. Por isso, prefere seguir um caminho ditatorial para seguir à frente de um governo que tem mostrado, inclusive perante a seus próprios colegas de partido, que é um governo desprovido de toda a humanidade, como faz com o vice-chanceler Víctor Hugo Tinoco, doente de câncer e mantido isolado em um presídio, sem contato com seus parentes”, escreve Reinaldo Rojas, historiador, em artigo elaborado para um webinar da Rede de Centros Sociais da CPAL, 05-08-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Os sistemas políticos da América Latina vivem hoje grandes momentos de tensão, em um contexto econômico de crise, agravado pelo impacto da pandemia de covid-19. No terreno político, já não se trata de ampliar os direitos eleitorais que movimente à cidadania, mas sim o valor do voto e sua efetividade como instrumento para eleger governantes e representantes de corpos legislativos.
Para isso, requer-se uma democracia inclusiva, não excludente, nem autocrática, e se requer instituições eleitorais autônomas, conformadas de forma plurais e com procedimentos transparentes, abertos ao controle cidadão. As eleições não apenas aportam legalidade, mas fundamentalmente legitimidade a um governo surgido do voto popular. Quando não se cumprem estes princípios e aparecem os fantasmas da fraude, a crise política entra em cena.
Imagem: Mapa da Nicarágua | Foto: El castellano / Wikimedia Commons
A Nicarágua deve ter eleições em novembro deste ano. Mas as irregularidades que se apreciam têm chamado a atenção do mundo. O que acontece na Nicarágua? Para responder a esta e outras preocupações, a Rede de Centros Sociais da Conferência de Provinciais da América Latina (CPAL) da Companhia de Jesus, convidou o advogado nicaraguense e ativista dos direitos humanos naquele país, Juan Carlos Arce, para falar sobre a situação política da Nicarágua. Atualmente, Arce é membro do Coletivo de Direitos Humanos “Nicarágua Nunca Mais”, que opera na Costa Rica.
A situação atual que atravessa a Nicarágua tem seus antecedentes nos protestos civis de abril de 2018 contra o governo de Daniel Ortega e sua violenta resposta à população. Naquela época, o governo do casal Ortega-Murillo decidiu implementar a recomendação do comandante sandinista Tomás Borges de que ante a qualquer situação que surgisse, a Revolução deveria ser defendida “a qualquer preço”. E essa foi a ordem que a vice-presidente Rosario Murillo deu às forças de segurança da Nicarágua e apoiadores do governo: “Vamos com tudo”, deixando um saldo de 320 mortos, mais de 300 detidos e mais de 103 mil nicaraguenses que tomaram o caminho da migração forçada.
Nos anos que se seguiram aos acontecimentos de 2018, a Nicarágua vem perdendo espaços democráticos, com leis que criminalizam o protesto social, a liberdade de opinião e a dissidência política. As leis contra o ódio, a privação de liberdade por noventa dias, a lei contra os crimes cibernéticos, têm fechado soluções democráticas para a atual situação política.
Na Nicarágua, instituições estatais são sequestradas pela família Ortega-Murillo, e não pelo governo sandinista. Muitos dos militantes de base, líderes médios e líderes históricos do FSLN, como Dora María Téllez, e funcionários de alto escalão, como o vice-chanceler Víctor Hugo Tinoco, foram perseguidos, detidos e exilados do país.
Este desmantelamento do Estado nicaraguense pode ser visto no controle que o governo Ortega exerce sobre instituições como o Exército, a Junta Nacional Eleitoral, a Assembleia Nacional, o Ministério Público e o Judiciário, o que lhe permite atuar contra a oposição, ditar leis que violam os direitos humanos e desenvolver uma política de violência sistemática contra a população com as forças policiais, o exército e grupos paramilitares, como aconteceu em abril de 2018.
A opinião pública mundial está surpresa ao ver como o governo Ortega, por meio do judiciário e dos órgãos eleitorais que controla, tirou os candidatos da oposição do jogo das eleições de novembro. São 7 candidatos detidos pelas forças de segurança, muitos deles incomunicáveis e em violação dos seus direitos ao devido processo, que são acusados de serem inimigos do país e até de lavagem de dólares, como é o caso de Cristiana Chamorro, uma das mais fortes rivais de Ortega na disputa presidencial, com uma tradição familiar indiscutível a favor da democracia na Nicarágua, filha de Violeta Chamorro, ex-presidente da República.
Além dessas prisões, o governo fechou 25 organizações da sociedade civil que lutam pelos Direitos Humanos, organizações de médicos e jornalistas. A única voz é a do governo, por meio de Rosario Murillo que dita as diretrizes do que deve ser reportado no país, como no caso da gestão da informação sobre a COVID-19, submetida ao controle oficial do governo com a tese de que a pandemia não foi grave para a Nicarágua. Qualquer reclamação ou iniciativa não governamental é penalizada pelas autoridades.
Esse controle dos meios de informação começou com o governo Ortega, comprando – graças a recursos em dólares da Venezuela – canais de rádio, imprensa e televisão, que hoje estão nas mãos de seus filhos. E os que conseguiram sobreviver, se autocensuram por pressão policial ou do Ministério Público, ou vão até ao fechamento definitivo, como é o caso de “100% noticias”, “Confidencial” e o Canal 2 da televisão.
Esse fechamento progressivo de espaços democráticos, a prisão de candidatos presidenciais e a ilegalidade de partidos e movimentos políticos colocam em xeque as eleições de novembro. Toda a comunidade internacional expressou preocupação e desacordo com o caminho percorrido por Ortega e seu governo. Até os governos do México e da Argentina, ex-aliados de Ortega, chamaram seus embaixadores para consulta, demonstrando seu desacordo com o que está acontecendo.
Lideranças da esquerda latino-americana, como Lula e Pepe Muijca, expressaram preocupação e até condenação ao processo autocrático vivido na Nicarágua, já que com isso se está sepultando o legado da Revolução Nicaraguense contra a ditadura de Somoza nos anos 1980 do século passado, processo que tanta admiração e solidariedade conseguiu capitalizar não somente na América Latina, mas em todo o mundo. A base social do FSLN, que já começou se perdendo nos anos 1990, está hoje em franca deterioração quando as mobilizações de abril de 2018 foram dirigidas e acompanhadas por bases populares do próprio sandinismo.
Imagem: Mapa da América Central | Foto: Wikimedia Commons
Embora o isolamento em que se encontra o governo Ortega seja uma realidade, as perguntas feitas permitiram especificar o seguinte em relação ao cenário internacional. Em primeiro lugar, o importante papel que a comunidade internacional está desempenhando neste momento. Antes de abril de 2018 era mais simbólico, mas daquele ano até o presente, tanto a ONU quanto a OEA, com suas missões de observação e monitoramento, bem como a Comunidade Europeia e Latino-Americana, estiveram muito ativamente presentes nesta situação, com pressão diplomática e, no caso dos Estados Unidos e da CE, uso do mecanismo de sanções contra funcionários envolvidos em crimes por violação de direitos humanos e crimes cometidos pelas forças de segurança nos eventos de abril de 2018.
Apenas Rússia e China mantêm seu apoio à Nicarágua, especialmente a Rússia, que vende armas e a mantém como base de operações de sua política de influência na América Central. O projeto chinês de abrir um canal interoceânico através da Nicarágua foi paralisado, então sua presença é menor. Os demais países da região permaneceram distantes, com exceção da Costa Rica, que se tornou, desde 2018, destino migratório e refúgio de exilados por motivos políticos.
Nessas condições, o panorama eleitoral para novembro parece bastante complicado. Para o secretário-geral da OEA, essas seriam as “piores eleições possíveis” para a Nicarágua, cuja ignorância internacional já foi anunciada, se não se conseguir a participação livre e segura de todas as forças da oposição nessas eleições presidenciais.
Consequentemente, para um povo cansado e cercado pela violência institucional, sem opções de mudança democrática e sofrendo uma grave crise econômica, agravada pela pandemia, os recursos que o governo pretende injetar em sua campanha eleitoral não serão suficientes para evitar uma possível explosão social, acompanhada de uma implosão do próprio movimento sandinista, hoje dividido e perseguido.
O governo Ortega está convencido de que em condições normais perderia as eleições de novembro. Por isso, prefere seguir um caminho ditatorial para seguir à frente de um governo que tem mostrado, inclusive perante a seus próprios colegas de partido, que é um governo desprovido de toda a humanidade, como faz com o vice-chanceler Víctor Hugo Tinoco, doente de câncer e mantido isolado em um presídio, sem contato com seus parentes.
Questionado se ainda é possível chegar a acordos entre governo e oposição, o relator aponta que o problema é que não há diálogo. No governo persiste o princípio de que a revolução não pode perder o poder, enquanto a tese da “saída suave” ou do “pouso suave” por meios eleitorais também não tem obtido sucesso, porque tem sido questionada pelas próprias vítimas da violência do governo. Em qualquer caso, a negociação estará sempre presente como a melhor alternativa para se chegar a uma solução pacífica para a crise atual.
Enquanto isso, a luta se desenvolve no interior do país, pelas mães dos detidos e desaparecidos, que se mobilizam junto aos defensores dos Direitos Humanos, aos médicos que cuidam da população contra a pandemia e aos jornalistas que desde então os exilados continuam em seu trabalho de denúncia da repressão governamental, proporcionando informação para que o caso da Nicarágua não seja esquecido e as demandas levantadas nas manifestações populares de abril de 2018, e que continuam existindo, possam se concretizar: Democracia, liberdade, justiça e “pátria livre para viver”.
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Análise da realidade da Nicarágua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU