Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 19 Dezembro 2018
Carlos Fernando Chamorro e Daniel Ortega, embora tenham nascido de linhagens opositoras, foram companheiros de partido. O primeiro foi editor do jornal Barricada, da Frente Sandinista de Liberación Nacional, o segundo o principal nome e referência do sandinismo. As confusões da Revolução Sandinista enfraqueceram a unidade do partido revolucionário nicaraguense. Ao completar 12 anos de governo de Ortega, a Nicarágua se aprofunda em crise. Na noite de sexta-feira, 14-12-2018, a polícia orteguista seguiu mais um capítulo do conflito, invadiu a redação do Confidencial, editorado por Carlos Fernando Chamorro, agrediu jornalistas e manteve o prédio sob inspeção.
Há 12 anos, Chamorro deu uma entrevista ao jornal espanhol El País, demonstrando incerteza do futuro governo pelas contradições que alçaram Ortega à presidência, na época. “Sua proposta de campanha não foi revolucionária, mas sim populista-conservadora, inclusive se aliou com a igreja católica mais conservadora. Então estamos diante de um antigo projeto revolucionário encoberto de pragmatismo para chegar ao poder”, alertou o jornalista. As alianças às quais Chamorro se referiu foram com o cardeal Miguel Obando y Bravo, ferrenho opositor da Revolução Sandinista, e Arnoldo Alemán, antigo presidente da Nicarágua, liberal-conservador, envolto em escândalos de corrupção.
Daniel Ortega quando chegou à presidência rompeu com seus vínculos sandinistas, ou tentou condicioná-los a um “orteguismo”. Antigos companheiros como Carlos Chamorro, Ernesto Cardenal, Gioconda Belli, Carlos Mejía Godoy e Sérgio Ramírez tornaram-se inimigos. Os bispos nicaraguenses conservadores, como Obando y Bravo, já não ocupavam a maioria do clero. Um novo perfil de bispos, embora não alinhados ao sandinismo, defensores dos pobres e da democracia, tornaram-se “golpistas e fascistas”, na percepção do presidente.
Foram esses descaminhos do sandinismo que eclodiram as grandes revoltas em 2018. Uma proposta de Reforma da Previdência foi a faísca para incendiar a crise no mês de abril. Massivos protestos envolvendo estudantes, a Igreja, organizações de defesa dos Direitos Humanos e blocos de oposição alinhavados a partidos políticos denunciaram as fraudes orteguistas ao processo revolucionário sandinista. Daniel Ortega, Rosário Murillo, a polícia e grupos paramilitares impulsionaram uma reação aos levantes populares, criando um clima instável e risco de guerra iminente.
Os ataques direcionados aos protestos passaram à perseguição de lideranças da oposição. Desde abril o conflito gerou a morte de centenas de estudantes, pessoas desaparecidas ou obrigadas a pedir asilo em países próximos, como a direção da Associação Nicaraguense de Direitos Humanos e o cantor e compositor Mejía Godoy. Na sexta-feira, o ataque foi direto à redação do jornal Confidencial e a Carlos Fernando Chamorro.
Em uma reportagem no site oficial do governo, El 19 Digital, descreve-se o processo de “resistência do governo de Ortega ao golpismo”. O governo aponta relatórios da agência do governo estadunidense USAID, de ajuda financeira a movimentos e ONGs de outros países, que mostram o pagamento para o Centro de Investigación de la Comunicación - CINCO, Centro Nicaragüense de Derechos Humanos - CENIDH, a Fundação Violeta Barrios de Chamorro, entre outras associações, para a fortalecimento de meios de comunicação independentes.
A polícia de Ortega em guarda no prédio da redação do Confidencial. Foto: Carlos Herrera | Confidencial
Violeta Barrios de Chamorro é a ex-presidente nicaraguense, que venceu as eleições em 1990 contra Ortega, esposa de Pedro Joaquín Chamorro Cardenal, um jornalista assassinado na ditadura de Somoza, oposição à antiga ditadura e ao sandinismo. Violeta Chamorro foi diretora de um dos maiores periódicos do país, o La Prensa, e é mãe de Carlos Fernando Chamorro, que seguiu outro rumo político e um veículo de imprensa próprio. Embora não haja ligação entre as entidades da família Chamorro, o governo de Ortega acusa a CINCO de ser proprietária do jornal Confidencial.
Essa possível conexão foi a justificativa para o governo de Ortega invadir os escritórios administrados por Carlos Fernando. Entretanto, o Confidencial publicou em comunicado que “pertence a uma sociedade anônima, e não a uma ONG”. “Exigimos a desocupação do Confidencial. A Polícia da ditadura deve desalojar os escritórios. Nossa redação está financiada pelas empresas Promedia e Invermedia, não pertence a nenhuma das ONGs perseguidas”, manifestou Chamorro no seu twitter.
A fechadura do portão principal das instalações do jornal Confidencial destruída pela polícia orteguista. Foto: Carlos Herrera | Confidencial
Em transmissão no canal do Confidencial no youtube, o jornalista acusou Ortega de ser o chefe da repressão e que sabe que não há vínculo entre o veículo de imprensa e as ONGs. “O chefe supremo da Polícia Nacional, o ditador Daniel Ortega, que transformou a Polícia em uma força delinquente, sabia que estavam saqueando os escritórios de um meio de comunicação e não a CINCO”, sustentou.
Cinco dias depois da invasão, o prédio segue sob guarda da polícia sandinista. “O lugar físico não é o mais importante. Seguimos trabalhando e aí está o testemunho, nas nossas edições e nos programas de televisão que fizemos. Se o governo nos impede de seguir trabalhando, buscaremos a forma de como fazê-lo”, defendeu Chamorro na saída do Fórum de Manágua, nessa terça-feira, 18-12-2018.
O grupo Confidencial entrou na justiça exigindo a retomada do edifício, argumentando que a ação da polícia fere 14 artigos da Constituição. “Entre os artigos atropelados pela ditadura de Daniel Ortega está o artigo 5, que fala sobre os princípios de liberdade, justiça, respeito à dignidade humana e pluralismo político. Ademais, os artigos 29, 30, 32 e 34 estabelecem o direito à liberdade de consciência e de expressão em público”, manifestou o grupo em nota oficial.
Em entrevista concedida a Chamorro, Sérgio Ramírez fez coro à denúncia das violações. “Os imóveis de um programa de notícia que pertencem a uma empresa privada estão proibidos pela Constituição de serem expropriados. Na Nicarágua não existe o confisco. O confisco é por causa da utilidade pública, quando vai construir uma rodovia, o Estado confisca e indeniza. Esse é o único caso”, denunciou o ex vice-presidente de Daniel Ortega, entre 86 e 90.
Para Ramírez “há uma suspensão do Estado de direito. Não há garantias constitucionais, não há vigência de direitos individuais... essas ondas repressivas são respostas às medidas que o Governo dos EUA vem tomando contra o governo e seus personagens. Isso também é arbitrário porque são coisas que são independentes”.
A dissidência sandinista há tempo alerta para o rumo ditatorial que a Revolução tomou, enfatizando como a instabilidade favorece a intervenção externa, sobretudo dos EUA. A crise da Nicarágua segue em curso, enquanto Trump está para assinar o Nica Act, aprovado na semana passada na Câmara de Representantes do país, que constitui uma série de condicionamentos a instituições financeiras e sanções a empresas e pessoas que estejam vinculadas ao governo nicaraguense. Assim que aprovada, o Nica Act deve sufocar ainda mais a economia nicaraguense, que segundo o FMI terá uma retração de 4% no PIB, em 2018.
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Nicarágua. Polícia de Ortega invade escritório de jornal da dissidência sandinista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU