11 Outubro 2018
“Ele (Daniel Ortega) se reinventou na solidão e apropriou-se dos símbolos da antiga revolução, de suas consignas, de sua retórica anti-imperialista e anti-oligárquica, e suportou três derrotas eleitorais, sem nunca conseguir superar a cota de um terço dos votos”. A reflexão é de Sergio Ramírez, em artigo publicado por Tierras de América, 07-10-2018. A tradução é de André Langer.
Sergio Ramírez é escritor nicaraguense. Fez parte da primeira junta de governo sandinista com Daniel Ortega.
Nunca teríamos imaginado, na época em que lutávamos pela utopia da revolução, que a Nicarágua pudesse algum mergulhar novamente na opressão. Os jovens de hoje, perseguidos até a morte, são como nós éramos naquela época, uma geração que, como esta, transformou seus ideais em convicções.
O poder passou das mãos de uma casta familiar [a família Somoza] para as de guerrilheiros inexperientes. E, pela primeira vez, não havia um caudilho. As três tendências em que a Frente Sandinista se dividiu logo depois do triunfo, contribuíram cada uma com três membros para a Direção Nacional, um corpo de nove pessoas sem cabeça visível.
Desse delicado equilíbrio dependia o consentimento e, portanto, a adesão de todas as forças guerrilheiras, que tinham sua referência única de autoridade em um coletivo, e não em uma só pessoa. A ruptura do equilíbrio implicava o risco de uma luta intestina, com milhares de armas nas mãos dos combatentes que mal conseguiam tomar um respiro da guerra de libertação que mal tinha acabado, enquanto o novo poder se articulando.
Este fenômeno de mútua contenção explica o surgimento da figura de Daniel Ortega. Não era nem histriônico nem demagogo, como, por exemplo, Tomás Borge. Ele não tinha dons oratórios, nem era carismático. O que para um político seriam desvantagens óbvias, foram para ele vantagens.
Entretanto, em 1985, foi eleito presidente da República e secretário-geral da Direção Nacional. Mas isso também não criou o caudilho. O coletivo, com seus pesos e contrapesos, continuou a gerir as políticas de governo, as Forças Armadas e de segurança e o próprio partido.
Em cada sessão, o primeiro ponto da agenda era a crítica e a autocrítica. Qualquer um que tivesse ultrapassado os seus limites tinha que mostrar firme propósito de emenda: pecados de vaidade e de arrogância, excesso de figuração.
Não recorro a estes antecedentes para lançar luz sobre os acertos e os fracassos da revolução, mas para explicar como a utopia transformou-se hoje em distopia. Essa forma de poder equilibrado foi quebrada com a derrota eleitoral de 1990, quando a direção coletiva acabou se desintegrando.
E a própria revolução, com seu caudal de ideais e promessas, desacertos e erros capitais que foram pagos ao preço da derrota eleitoral, desapareceu para sempre. É desta dispersão e dessa desarticulação que Ortega foi emergindo como um caudilho quando semeou a primeiras semente do seu poder arbitrário ao proclamar que iria “governar de baixo para cima”.
Ou seja, com motins nas ruas, greves fabricadas, barricadas, confrontos com a polícia com o saldo de mortes e feridos, decidido a frustrar o governo legítimo da Sra. Violeta Chamorro. Assim, ganhou a lealdade daqueles que, enganados pela promessa de um retorno ao poder pela força, começaram a vê-lo, com nostalgia agressiva, como a encarnação da revolução perdida, e se reagruparam em torno dela: velhos combatentes, colaboradores históricos, líderes dos sindicatos em ruínas, remanescentes das organizações populares.
Ele se reinventou na solidão e apropriou-se dos símbolos da antiga revolução, de suas consignas, de sua retórica anti-imperialista e anti-oligárquica, e suportou três derrotas eleitorais, sem nunca conseguir superar a cota de um terço dos votos.
Em 2000, pactuou com o ex-presidente Arnoldo Alemán uma reforma da Constituição que reduziu para 35% os votos para ser eleito no primeiro turno. Em troca, abriu ao outro as portas da prisão, condenado por lavagem de dinheiro. Ortega já controlava os tribunais de Justiça.
E embora a Constituição o proibisse de ser reeleito, fez seus fiéis juízes da Suprema Corte decretarem que semelhante proibição era nula. Isto é, a Constituição foi declarada inconstitucional.
Quando em 2006 ganhou novamente a presidência, prometeu a si mesmo que nunca mais perderia. E com as centenas de milhões de dólares do petróleo de Chávez, assumiu o controle também do Conselho Supremo Eleitoral e dos outros Poderes do Estado. E foi tomando conta da Polícia Federal e do Exército.
Também compactuou com o seu ferrenho inimigo o cardeal Obando y Bravo, arcebispo de Manágua. E com os empresários: em troca de plenas garantias para prosperar em seus negócios, ficavas-lhe vedado, no entanto, o campo político. E criou, com vantagem, seu próprio poder empresarial, graças ao petróleo venezuelano.
No entanto, agora, depois de mais de 400 mortos, todo esse poder pensado para sempre foi arruinado. A última pesquisa do Cid Gallup mostra que Ortega conserva apenas pouco mais de 20% do eleitorado, ou seja, a fidelidade básica que atingiu em seus anos de solidão.
Mais cedo ou mais tarde, precisa aceitar que o país não pode voltar às condições em que se encontrava antes de 18 de abril, quando começou a onda de protestos em massa. Precisa aceitar que não há compatibilidade possível entre o caudilho que se apropriou de uma revolução já morta e da sociedade nicaraguense de hoje, que não aceita nada além da democracia.
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Nicarágua, a utopia estrangulada. Artigo de Sergio Ramírez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU