18 Agosto 2021
Advogado dos indígenas diz que as lideranças estão insatisfeitas e decepcionadas. Segundo ele, o povo está ‘entregando um pedaço de sua terra”.
A reportagem é de Leanderson Lima, publicada por Amazônia Real, 13-08-2021.
Os Waimiri Atroari apresentaram na última quarta-feira (11) um documento com propostas de compensação ambiental pela passagem de 123 quilômetros dentro de seu território da linha de transmissão de energia Tucuruí. A proposta foi apresentada em reunião ocorrida na terra indígena, com presença de autoridades de órgãos do Executivo Federal e Estadual, entre eles o Ministério Público Federal e Estadual de Roraima. A decisão dos Waimiri Atroari é mais um capítulo da pressão que este povo vem sofrendo há 10 anos pelo governo brasileiro para autorizar o Linhão do Tucuruí, desde a gestão petista culminando com a gestão de Jair Bolsonaro, para autorizar a obra.
O Linhão do Tucuruí junta-se assim a outros empreendimentos que impactaram a vida dos Waimiri Atroari, levando o povo à quase extinção, entre eles a BR-174, a Usina de Balbina e a Mineradora Taboca, desde a década de 70. Todos estes projetos foram construídos dentro do território dos Kinja, como os Waimiri Atroari se autodenominam. Ao longo dos últimos 50 anos, o território foi ocupado, inundado, atravessado e reduzido para obras sobre as quais eles não foram consultados.
No decisivo dia 11 de agosto, 800 pessoas Waimiri-Atroari apresentaram o documento, pressionados pela sanção do governo de Jair Bolsonaro da emenda ‘jabuti’ do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) na Lei 14.182/2021, que trata da privatização da Eletrobras. O documento foi elaborado pela Associação Indígena Waimiri Atroari (ACWA), que nestes dez anos construiu o Plano Ambiental do Componente Indígena (PBA-CI). O PBA-CI é um dos requisitos para que a obra possa obter o licenciamento ambiental. No processo de elaboração deste documento, houve a identificação de 37 impactos, dos quais 27 são os chamados impactos socioambientais irreversíveis.
“As lideranças expuseram a insatisfação do povo Kinja com a passagem do Linhão pela terra deles, que jamais quiseram isso, mas que nunca atrapalharam as ações do governo. Agora, com pesar, estão entregando um pedaço da terra e da vida deles junto com a proposta de compensação. Eles esperam que o Governo brasileiro e o empreendedor respeitem a posição deles na proposta de compensação apresentada”, disse o advogado da ACWA, Harilson Araújo, em entrevista à Amazônia Real.
Segundo Harilson Araújo, a compensação ambiental foi a condição que os Waimiri Atroari deram para aceitar a obra e que cabe ao governo federal e ao empreender atender.
“Se eles aceitarem a proposta de compensação apresentada pelos Kinja, tudo resolvido em relação a eles. Caso contrário, a luta continua”, pontua o advogado, que não detalhou o que seria a proposta de compensação apresentada pelos Waimiri Atroari.
“Essa é uma informação interna e complexa, pois envolve vários fatores que são difíceis de explicar. Eles elaboraram [um documento] juntamente com uma equipe de técnicos especializados. Vamos aguardar o governo, mas eles apresentaram aquilo que entendem como o mínimo para compensação socioambiental”, diz Araújo.
A obra do Linhão tem como empreendedor o consórcio Transnorte Energia (TNE), cujos sócios são Alupar e Eletronorte. Caso o empreendedor não aceite a proposta dos indígenas, as medidas seguintes ainda serão analisadas, segundo o advogado. Algumas delas podem ser judicialização ou denúncia em fóruns internacionais.
Interligação da usina de Tucuruí, na Amazônia (Foto: Divulgação/2013/PAC)
“Todas essas possibilidades existem, mas pelo histórico de comportamento dos Waimiri Atroari, o diálogo sempre é a primeira opção. Qualquer tipo de oposição, caso ocorra, será feita dentro das regras do Estado Democrático de Direito, respeitando o devido processo legal, nunca com ações sensacionalistas e/ou sem fundamento jurídico e social”, explicou o advogado da ACWA.
A Terra Indígena Waimiri Atroari fica localizada no norte do Amazonas e sul de Roraima, em uma área de 2.586 hectares, com uma população de 2 mil pessoas. O território tem confirmação de povos isolados, como os que vivem na cabeceira do rio Canamaú.
O documento do PBA-CI dos Waimiri-Atroari, o qual a Amazônia Real teve acesso, foi elaborado em português e na língua nativa da etnia (do tronco linguístico Karib) pelos próprios indígenas. O documento tem 50 páginas com ilustrações retratando como serão os impactos do Linhão. Segundo o advogado, ele foi construído para facilitar a compreensão dos ‘Yaskas’ (irmãos) que vivem nas aldeias e não entendem a língua portuguesa.
Entre os impactos previstos estão: afugentamento da fauna, aumento de riscos de acidentes, interferência nas atividades de caça indígena, interferência nas trilhas e rotas tradicionais, contaminação do solo e perda de cobertura vegetal.
O Linhão de Tucuruí é uma linha de transmissão de energia com mais de 1.800 km de extensão, que vai ligar a Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHE), no rio Tocantins (PA), a Macapá (AP) e Manaus (AM).
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou com vetos a Lei 14.182/21, no último dia 13 de julho. A Lei é oriunda da Medida Provisória 1031/21. A Eletrobras é uma empresa ligada ao Ministério de Minas e Energia do Governo Federal e responde pela geração de 30% de toda energia elétrica consumida em território nacional.
Reunião dos Waimiri Atroari, sobre o Linhão Tucuruí, nesta semana (Foto: ACWA)
Harilson Araújo também expressou o sentimento dos Kinja após a notícia da sanção presidencial da lei, que desobriga qualquer tipo de autorização para que a obra do Linhão passe dentro do território Waimiri Atroari.
“Eles [Waimiri Atroari] ficaram bem confusos, pois estão há quase três anos participando ativamente dos trabalhos e diálogos para a construção de uma solução satisfatória para essa questão. Dispensaram seu tempo, mudaram sua rotina, permitiram ingresso de não-indígenas na sua terra (o que não é uma regra) e agora parece que tudo o que fizeram não valeu de nada. Toda a boa vontade deles não representa nada para o governo?”, questiona Harilson.
Segundo o advogado, os indígenas estão com sentimento de “decepção”, mas ainda abertos ao diálogo, “com ressalvas naturais decorrentes desse descaso para com eles”.
No entanto, ele afirma que comunidade e nem ACWA possuem legitimidade processual para questionar junto ao STF a constitucionalidade da legislação. Essa legitimidade é prevista em lei para apenas alguns legitimados como o Ministério Público Federal, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Mesa da Câmara e partidos políticos com representatividade no Congresso Nacional.
Por isso que, no dia 17 de julho, uma frente formada por parlamentares de vários partidos de oposição ao governo de Bolsonaro ingressou com uma com Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de medida cautelar junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), entre eles a deputada federal indígena Joenia Wapichana (REDE-RR).
“A oposição, incluindo a REDE, ingressou com uma ADI no STF, pedindo a suspensão imediata da Lei por ser tratar de uma medida inconstitucional no que se refere autorização da construção do Linhão de Tucuruí, que passa dentro da Terra Indígena Waimiri-atroari, sem a devida consulta aos indígenas. Os indígenas não são contra o acesso à energia, mas querem que seus direitos sejam respeitados”, explicou Joênia Wapichana para a Amazônia Real.
Indígenas cumprimentam a deputada federal Joenia Wapichana na aldeia Mynawa (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real/2019)
O procurador da República e coordenador do grupo de trabalho de prevenção de atrocidades contra povos indígenas, Julio Araújo, também aponta a inconstitucionalidade da lei que ele atribui à inclusão da emenda jabuti do senador de Roraima.
“É inconstitucional porque o processo legislativo tratou da privatização, da desestatização da Eletrobras e inseriram ali indevidamente uma medida provisória a essa questão do Linhão. Então ele é um vício original insanável que é essa inconstitucionalidade da lei”, salientou Araujo. O procurador acompanha o caso dos Waimiri Atroari desde a época em que ele atuava no MPF no Amazonas. Araújo também é autor de uma ação de indenização por genocídio contra os indígenas na época da ditadura militar.
No entendimento do procurador da República, tanto o STF quanto um juiz podem reconhecer essa inconstitucionalidade. “Se o Supremo reconhece, ele tira esse artigo, esse jabuti do ordenamento. Já o juiz pode em qualquer discussão sobre o licenciamento, fundamentar a decisão dele apontando essa inconstitucionalidade. Tenho certeza que qualquer uma dessas alternativas é importante”, diz Julio Araújo.
Para o procurador, a inconstitucionalidade está configurada não só pelo “jabuti”, mas pelo fato de querer atropelar uma atividade técnica que demanda uma capacidade institucional do executivo que é o licenciamento.
“O que eu entendo, que não há efeito algum nisso. Lógico que haverá movimentações, mas do ponto de vista jurídico não muda nada. Isso é um vício a mais neste procedimento tão viciado que ao longo do tempo, em vez de o Estado brasileiro corrigir o caminho, adotar a consulta prévia, adotar o licenciamento adequado, dialogar com os indígenas, prefere fazer remendos, e o jabuti é mais um remendo”, finaliza.
Procurador Edson Damas, do Grupo de Atuação Especial de Minorias e Direitos Humanos (Gaemi-DH) e o procurador federal, Alisson Marugal com as lideranças Waimiri (Foto: Ascom MPRR)
Em nota divulgada pelo Ministério Público de Roraima, o procurador de justiça Edson Damas disse que os “Waimiri Atroari decidiram autorizar a passagem do Linhão pelos 123 KM que cortam a terra indígena”. Segundo o MPRR, a obra é ‘estratégica por permitir ao estado de Roraima receber energia do Sistema Interligado Nacional (SIN)”. Segundo o MPRR, Damas disse que “há motivos para se comemorar o fim do impasse”.
“Isso nos deixa muito honrados, participar de uma discussão tão importante para todos. Sempre houve muita tensão entre as partes e o Ministério Público funcionou como um ponto de equilíbrio nesse ambiente de tensão e principalmente, com um olhar jurídico, nós trabalhamos como um ponderador de direitos fundamentais nessa discussão toda”, destacou o Procurador.
Desde 2015, o MPF no Amazonas atua no caso, com inúmeras ações judiciais contra o empreendimento no território Waimiri Atroari. O processo, contudo, está agora na segunda instância. Procurada, a assessoria de imprensa do MPF/A orientou a Amazônia Real a se reportar à Secretaria de Comunicação da Procuradoria-Geral da República para que o órgão respondesse se haverá alguma medida em relação à leia. A assessoria da PGR não respondeu ao contato.
A assessoria do MPF enviou à reportagem um registro com o histórico do processo na primeira instância. Segundo o MPF, ele traz os principais pontos em relação ao projeto e as repercussões das ilegalidades apontadas nas ações (leia aqui).
Reunião dos Waimiri Atroari, nesta semana (Foto: ACWA)
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Linhão: Pressionado por sanção de ‘emenda jabuti’, povo Waimiri Atroari quer compensação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU