24 Julho 2021
Famoso por ser de difícil acesso, o filósofo católico que fuma cachimbo e usa gravata borboleta fascina tanto quanto irrita. E se finalmente ousássemos lê-lo?
A reportagem é de François Huguenin, publicada por La Vie, 16-07-2021. A tradução é de André Langer.
Ele é indiscutivelmente o filósofo francês mais estudado e traduzido em todo o mundo. Jean-Luc Marion, que sucedeu Emmanuel Levinas na cadeira de metafísica na Sorbonne e Paul Ricoeur na Universidade de Chicago, também foi eleito em 2010 para a cadeira ocupada pelo cardeal Jean-Marie Lustiger na Academia Francesa.
Sempre vestido com uma indispensável gravata borboleta, um cachimbo muitas vezes na ponta dos lábios, Jean-Luc Marion também é um tintinófilo sem igual, um leitor assíduo do L'Équipe e um amante de uísque. Há nele a conjunção um tanto rara entre o maior rigor filosófico e uma força de vida impressionante, entre a construção paciente de um livro que nunca deixou de cavar seu próprio sulco e um interesse diversificado por todos os tipos de coisas que seus pares costumam considerar superficiais.
“Ele é um dos meus amigos mais antigos”, revela Rémi Brague. Os dois se encontraram rapidamente em Louis-le-Grand, onde Brague começava uma segunda khâgne [Aulas preparatórias literárias. Elas constituem um dos quatro cursos das aulas preparatórias das grandes escolas na França] enquanto Marion a deixava para ingressar no Liceu Condorcet. Em seguida, foi uma noite de adoração em Montmartre, na companhia de Jean Duchesne, futuro executor literário do cardeal Lustiger. No seminário inaugural do ano letivo na École Normale Supérieure em 1967, Brague e Marion começaram uma amizade.
Alguns anos depois, as famílias Marion, Brague, Duchesne e Congourdeau irão morar em um prédio da Rue d'Auteuil, no que seus filhos chamarão de “kibutz”. Isso diz muito sobre o poder da amizade na vida de Jean-Luc Marion e da lealdade de seus companheiros de viagem mais antigos. Mas, reconhece Brague, “conseguimos ter uma atitude justa com ele: muita simpatia sem adoração”.
Embora tenha nascido um quarto de século mais tarde, Fabrice Hadjadj também se tornou amigo de Jean-Luc Marion e de sua família. “Ele é um espírito brilhante. Com ele rimos muito, podemos conversar sobre todo tipo de coisas. Ele é um amigo e um interlocutor para mim. Isso me permitiu fazer a ligação entre o nietzscheanismo da minha juventude e meu cristianismo. Ele me fez entender que eu poderia ser um cristão sem negar o que havia experimentado antes”.
Porque, é claro, Marion dá o que pensar. “Ele é o Derrida do mundo católico”, afirma Paul-François Paoli que, com a ajuda de Jean-François Colosimo, publicou pela Editora Cerf um livro de entrevistas intitulado À vrai dire (Para dizer a verdade) – sem dúvida a melhor introdução que se pode pensar de Jean-Luc Marion. Porque sua obra é difícil. Paoli confessa: “Fazer um trabalho sobre Marion é uma façanha!”.
Após ter trabalhado em Descartes, um verdadeiro historiador da filosofia que leu Platão em grego, Santo Agostinho em latim e Heidegger em alemão, com incomparável poder acadêmico, Marion publica um díptico, L’Idole et la distance (1977) e Dieu sans l’être (1982), como um prelúdio para uma obra que optou por se enquadrar na linhagem da fenomenologia. Marion considera, no entanto, que seu primeiro escrito filosófico é Étant donné (1997). Virão a seguir, especialmente, Le phénomène érotique (2003), Au lieu de soi, sobre Santo Agostinho (2008), e mais recentemente D’ailleurs, la révélation (2020).
Por que a fenomenologia? Tendo sido – e continua a ser – historiador da filosofia, Jean-Luc Marion observa o esgotamento de uma tradição metafísica nascida depois de Tomás de Aquino e que termina com Nietzsche e depois Heidegger na impossibilidade de pensar o Ser, e que, aliás, pensa apenas em um “sendo comum” aos homens e a Deus.
Essa tradição de pensamento, explica Marion em uma das 40 entrevistas compiladas no volume Paroles données (também publicado pela Cerf), primeiro prendeu Deus no “objeto metafísico” com o jesuíta espanhol do final do século XVI, depois proclamou a morte de Deus. Pretender que Deus seja o Ser desse sendo comum é basicamente uma construção idolátrica no sentido bíblico. Consequentemente, com a morte da metafísica, abrem-se dois caminhos na filosofia contemporânea: o caminho da filosofia analítica, dominante no mundo anglo-saxão, e o caminho da fenomenologia, que é “um retorno às próprias coisas”, uma tentativa de começar a pensar sobre outras bases e que, como ele gosta de frisar, é “muito mais divertido”.
Compreender Marion, portanto, já é aceitar que ele faz parte decididamente de uma história da filosofia que ele leva a sério. Mais ainda: ele a ama. “A história da filosofia é admirável. Todos os autores contribuem com alguma coisa, mesmo em seus fracassos. Não tenho uma visão polêmica da história da filosofia. Não existem os mocinhos e os bandidos”. É por isso que Jean-Luc Marion reconhece sem dificuldade o gênio de Heidegger ou de Nietzsche, apesar do impasse para o qual eles conduziram a metafísica. Essa história é necessariamente crítica e benevolente. Mas, diante dessa concepção de ser que se tornou impensável, “vazia”, “temos que contar com algo mais sólido: o dado”.
Como historiador apaixonado, o filósofo (aqui, em 2010) admira tanto o gênio de Descartes como o de Heidegger ou de Nietzsche.
No entanto, esta escolha da fenomenologia apresenta uma primeira dificuldade: a do grau de legibilidade dos textos. “A filosofia, em certo nível, é muito difícil, muito próxima da lógica ou da matemática”, comenta Paul-François Paoli, que lê Marion há 20 anos. “É preciso tanto esforço para entender esse pensamento?”, pergunta-se. “Fazemos isso no caso de Heidegger, porque ele é o pensador do século. Seria isso útil para Marion? Mas a obra de quem dialoga com Agostinho, Descartes ou Nietzsche merece o esforço de aprofundá-la”.
Quando se faz francamente a pergunta – impertinente – a Jean-Luc Marion sobre a sua ilegibilidade... ele ri com vontade. Mas ele também se explica com muita seriedade: “Quando dou uma aula, os alunos entendem. Acredito que sou inteligível quando ensino. Mas quando se escreve, é um pouco diferente. Quando se começa, se escreve para algumas pessoas, professores, colegas. Depois de um tempo, a escrita torna-se mais respirável. Mas é preciso entender que, como filósofo, não digo o que penso, ou o que as pessoas já pensam, mas procuro dizer coisas que demonstro. A maioria dos chamados filósofos não são assim. Eles comentam as notícias. A filosofia consiste em ver o que nem todos veem e fornecer os argumentos para justificá-lo. A filosofia é uma técnica”.
Então, incompreensível, Jean-Luc Marion? Seu amigo Rémi Brague, ao ler atentamente D’ailleurs, la révélation, parece flutuar nessa intensa jornada. “Há alguma verdade nesta observação. Não consigo segui-lo por todos os lugares e nem sempre entendo onde ele quer chegar. Mas é o filósofo de sua geração. Às vezes, talvez ele tenha uma tendência a ‘marionizar’ os autores que aborda. Mas isso não diminui em nada o seu pensamento, que tem um poder especulativo que está na ordem da genialidade”.
Já Fabrice Hadjadj – que lê Marion embora o ache inteligível – relaciona essa dificuldade de leitura à filiação com Derrida. Mas, de forma mais ampla, “há em seus textos uma linguagem técnica que o inscreve em uma história, na trilha de Husserl, Heidegger e Levinas. Não esqueçamos que ele é um grande especialista em Descartes. Ele vai procurar a dificuldade ali onde ela se encontra”. E, no fundo, não é isso que significa ser filósofo? “Quando um filósofo aparece, prossegue Hadjadj, ele abre um novo campo de inteligibilidade. Apesar de alguns julgamentos pré-fabricados, ele traz algo novo para o campo da filosofia”.
Essa novidade divide os católicos, embora possam se orgulhar de ter entre eles uma estrela da filosofia contemporânea. Num mundo de bom grado dividido, até mesmo “chapellisé” [de capela], Marion não se enquadra nas estruturas. Ele obviamente não é um católico progressista. Suas influências – Balthasar, Lubac, Bouyer, Lustiger – não o levam a isso. Ele também não se reivindica como conservador, muito menos como identitário. Sendo necessário, as mesmas influências o preservariam da mesma forma.
Nenhuma ideologia é realmente possível para ele. Seguindo Bouyer, ele reflete sem dar vantagem a um lado ou a outro sobre as tomadas de poder políticas sobre a fé católica em Brève Apologie pour un moment catholique, publicado em 2017. Para Marion, como ele revelou para La Vie recentemente, ao evocar a figura de Santo Agostinho, há uma rejeição de toda idolatria do político, e a certeza de que os cristãos têm de levar para a sociedade como um todo o que lhe falta terrivelmente, uma experiência de comunhão.
Resta ainda a questão que divide a intelligentsia filosófica do catolicismo: a de Deus e do Ser. Yves Floucat, filósofo tomista francês, especialista em Jacques Maritain, teve um debate ríspido com Jean-Luc Marion durante uma conferência no Instituto Católico de Toulouse. Ele o censura por separar fé e razão e por ter abandonado a metafísica. Ele vê nisso, assim como outros, um distanciamento da encíclica Fides et Ratio, de João Paulo II.
Segundo Floucat, “para Tomás de Aquino existe um continuum entre a filosofia, a metafísica do ser, a teologia e, in fine, a primazia do amor na experiência mística. É a sabedoria cristã integral”. Como tomista, ele se rebela: “O dom que está no centro da filosofia de Marion supõe um ser que se dá e, portanto, deve haver uma filosofia do ser”. Respeitando “o trabalho muito rigorosos e a pessoa de Jean-Luc Marion”, Floucat afirma que, para Santo Tomás, “Deus é por si mesmo”. Embora ele concorde em reconhecer a validade das críticas de Henri de Lubac ao neotomismo de Maritain, ele questiona a maneira como Marion concebe o pensamento de Tomás de Aquino sobre o ser.
A isso, o interessado responde sem rodeios que Tomás de Aquino, que ele considera um gênio e, seguindo a Igreja Católica, um santo, não fazia metafísica no sentido próprio do termo, que nasceu depois, com o franciscano John Duns Scotus. “O problema é que as pessoas que se autodenominam tomistas muitas vezes não são medievalistas e sonham com uma metafísica que Tomás não teve”. Ele lamenta que aqueles que o perseguiram durante muito tempo com sua vingança não conheçam a história da filosofia que destruiu o pensamento do Ser. “Hoje, as coisas se acalmaram, observa. Fui convidado para ir a Friburgo e Toulouse”. Dois lugares-chave do tomismo contemporâneo.
Basicamente, poder-se-ia dizer, Jean-Luc Marion não quer excluir da construção de seu pensamento a filosofia moderna e sua culminância no esgotamento da metafísica. Ele leva seus predecessores a sério, sem ficar preso em uma época passada. É isso, sem dúvida, que dá a imensa liberdade do personagem e de sua obra.
Fabrice Hadjadj, por sua vez, explica: “Interpretamos mal Dieu sans l’être. Este não é um livro contra os tomistas, mas contra os heideggerianos. Claro, Jean-Luc Marion não é tomista. Ele questiona Santo Tomás sobre sua tradição fenomenológica. Ele não está no desenvolvimento da philosophia perennis como Étienne Gilson ou Jacques Maritain. Mas penso que precisamos de outra coisa também. Eu faço as duas. A fenomenologia pensa que existe um dado. A partir desse dado, voltamos à doação e ao doador. E não encontramos apenas elementos que estavam presentes em Aristóteles, mas também algo que tem profundas conexões com o cristianismo”.
Rémi Brague, por seu lado, tem um bom jogo de palavras para fazer um alerta: “Existe uma ortodoxia teológica, mas não existe um magistério filosófico”. Esta é, sem dúvida, a pedra de tropeço, bem como um dos fundamentos da filosofia de Marion. O pensamento é livre porque o amor é livre. Deus não impõe um pensamento, mas se revela no dom que cada um tenta acolher na gratuidade do amor. É, pelo menos, o que ele sugere. Como filósofo.
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E se (realmente) lêssemos Jean-Luc Marion? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU