03 Janeiro 2019
"Eu não aceito facilmente as noções de 'três religiões monoteístas' e de 'três religiões do Livro'. Não é da mesma forma que as três religiões entendem que Deus é único. E sua relação com o Livro também é muito diferente. Em vez disso, eu amo a palavra agora tão vituperada, por ser mal compreendida, de 'dogma'”, aponta Rémi Brague.
A entrevista é de Daniele Zappalà, publicada por Avvenire, 02-01-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
O famoso filósofo francês Rémi Brague conduz há anos um trabalho de elucidação dos fundamentos religiosos, como em seu último ensaio intitulado, de forma muito clássica, Sur la Religion (Flammarion). Para o filósofo, a dimensão dogmática nunca vai perder a sua centralidade, "porque constrói um objeto da fé com contornos bem definidos, propondo-o à razão e à liberdade, não à afetividade, ao sentimento que, no fundo, acredita muito menos em Deus do que na própria experiência subjetiva".
Por que escreveu um trabalho sobre a religião em geral?
Por causa de um certo incômodo diante do modo como é usado, como algo banal, esse termo extraordinariamente ambíguo. Muitos dizem "as religiões", colocando-as todas na mesma cesta, aliás, muitas vezes na mesma lixeira. Escolhi um título básico porque queria reconsiderar totalmente essa noção, fazendo perguntas simples: de onde vem a palavra e seu uso?
Pertence ao passado ou estamos diante do aparecimento contínuo de novos ídolos, ainda mais sanguinários daqueles do passado? Que relações entretêm as religiões com o direito, a política ou a violência?
As suas teses sobre as raízes inclusive cristãs da Europa, expostas mais de um quarto de século atrás, são hoje recebidas mais favoravelmente mesmo fora do mundo católico e cristão. Será este outro pequeno sinal de uma reflexão que, de uma forma ou de outra, avança nos países europeus?
Essas teses me permitiram sair do microcosmo acadêmico. Fico feliz em ajudar a refletir sobre o significado da Europa, que é muito mais antiga e mais profunda do que a União Europeia. A Europa faz uso de fontes culturais (prefiro essa metáfora à das "raízes") que são verdadeiros tesouros. Seria tolo parar de usá-las. Nós ainda continuamos a viver graças a essas fontes.
Em nossa época marcada por preocupações ecológicas, as religiões permanecem como a base mais sólida para legitimar nosso apelo para existir dirigido às futuras gerações?
Eu realmente não vejo nenhum outro. Aqueles que falam de "transcendência horizontal" e nos servem uma versão pré-pronta do antigo mito do progresso não sabem o que dizem. O futuro, as gerações futuras, dependem da nossa vontade. Como poderia nos transcender o que depende de nós? As gerações futuras existirão se decidirmos agora chamá-las à existência. Mas nós certamente não podemos pedir a elas a sua opinião. E não podemos ter certeza absoluta de que serão felizes. Temos o direito de fazê-las nascer apenas se a vida é um bem, um bem forte e em si. Como afirmar isso se não acreditarmos que tudo o que existe foi criado por um Deus benevolente?
Na França, e em outros lugares também, os ambientes laicos muitas vezes acenam com o espectro das guerras religiosas. Essas críticas e medos têm uma base concreta na Europa de hoje?
A França é um país que, após dois séculos de relativa paz civil, pontuada por revoltas rurais, saboreou o sangue durante a Revolução e não perdeu o gosto. Isso foi visto com a Comuna e a sua repressão, com a Resistência seguida pelos "expurgos" do período do pós-guerra. Há uma certa ironia no fato de que os defensores de uma "laicidade militante", portanto guerreira, queiram constranger os fiéis evocando as violências passadas. Afinal, essas são atribuídas à religião, esquecendo o contexto que envenenou as diferenças religiosas, ou seja, o nascimento do Estado moderno e sua política secularizada, no estilo Maquiavel ou Hobbes.
Quanto à presença demograficamente considerável dos crentes muçulmanos nas sociedades europeias, quais são as questões mais urgentes que deveria se pôr os poderes públicos?
Primeiro de tudo, perguntar se o dinamismo demográfico dos muçulmanos não seria uma atitude saudável, e a nossa rejeição da vida, ao contrário, uma espécie de doença. É o vazio das nossas sociedades outrora cristãs que atrai substitutos. Na França, um órgão estatal como o Ined, Instituto Nacional de Estudos Demográficos, foi fundado em 1945 para promover políticas de incentivo à natalidade. Hoje, defende a necessidade da imigração. Uma questão saudável consiste em se perguntar até que ponto as pessoas provenientes de países sujeitos ao Islã vão querer aceitar as regras em vigor em nossos países, que não são islâmicos. Mas é preciso apresentar essas perguntas claramente e parar de promover medidas “de alcance social”, tais como o casamento homoafetivo, o aborto, a eutanásia, o útero de aluguel, que chocam os muçulmanos. E que os empurra para os braços daqueles que, no mundo muçulmano, afirmam que o Ocidente está podre e que será suficiente esperar para que caia sozinho.
O filósofo Jean-Luc Marion publicou recentemente uma "breve apologia" do catolicismo. O catolicismo precisa hoje de apologias? E quem terá que lidar com isso?
Com a palavra "apologia", meu velho amigo Jean-Luc quer se vincular com a segunda geração dos Padres da Igreja. Na época tratava-se de responder às calúnias com que o poder romano procurava justificar as perseguições. Agora, pelo menos na Europa, as perseguições não são violentas. Em outros lugares, elas são, embora não se queira falar muito sobre isso. Entre nós, no momento, ainda são brandas. Agem indiretamente. Com escárnio e deboche. Com o silêncio e a recusa de difundir o que falamos. Com a recusa de confiar um lugar a alguém que é percebido como "demasiado católico", então será preciso ser duas vezes melhor do que os outros para obter tal lugar. Dito isso, nós não defendemos os católicos, mas a fé católica, e isso não é a mesma coisa. Quem deveria fazer isso? Mas qualquer um que o queira! Vamos falar, escrever, da maneira mais inteligente e convincente possível. Saber depois se seremos ouvidos é, evidentemente, outra questão.
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Brague: ‘É tempo de fazer viver a fé’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU