22 Julho 2021
"[Bolsonaro] Vem moderando seu discurso, enfatizando a competência técnica de Mendonça, mas o efeito narrativo da 'brincadeira' do 'terrivelmente evangélico' está repercutindo mal", escreve Christina Vital, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFF, coordenadora do Laboratório de estudos em política, arte e religião (LePar) e colaboradora do Instituto de Estudos da Religião (ISER).
Uma nota pública emitida pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), em 20 de julho de 2021, contra a menção desta associação pelo movimento “Por um STF laico e independente” está produzindo grande debate nas redes sociais. No dia 19 de julho de 21, oito entidades apresentaram uma carta ao Senado Federal contra a indicação do atual advogado-geral da União (AGU), André Mendonça, para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), a Associação de Juízes para a Democracia (AJD), o Coletivo por um Ministério Público Transformador (Coletivo Transforma MP), a Associação Advogadas e Advogados Públicas para a Democracia (APD), a Associação de Advogados e Advogadas pela Democracia, a Justiça e Cidadania (ADJC), o Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia, o Instituto de Pesquisa e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (Ipeatra) e o Movimento Policiais Antifascismo, signatárias da carta, entendem que esta indicação representa um “retrocesso nos pilares da Justiça brasileira e da democracia”.
Na carta argumentam que a indicação de André Mendonça deve ser negada visto que “não decorreu de sua atuação como advogado” e sim “do fato de professar a fé como pastor de uma igreja presbiteriana”. O que “subverte as regras constitucionais” para a “criação de uma vertente evangélica na composição da Corte”, apontam.
Prosseguem afirmando “Em contrariedade à laicidade imperativa, além da proclamação pública do Presidente da República em selecionar o candidato com base em sua filiação religiosa em detrimento da formação jurídica e humanística, o próprio indicado, em numerosas ocasiões, reafirmou, em seu favor, seu perfil teocrático, incompatível com o cargo que almeja”. Apesar disso, deixam claro na carta em seguida que o problema não seria a religião que Mendonça professa, “mas evitar a nomeação de alguém que, assentindo ser religioso fundamentalista, antecipadamente admita vergar as regras e princípios constitucionais em favor de agenda que privilegia ‘pauta de costumes’ avessa aos direitos da população LGBT+, ao direito de aborto de fetos anencéfalos e às políticas de educação antidiscriminatórias e inclusivas nas escolas, entre outros temas que exigem o necessário distanciamento do credo”.
Até aqui, a carta das associações de juristas pela democracia e policiais antifascistas enfatiza a dimensão religiosa (a legitimidade ou não de sua presença no espaço público, enfim) embarcando na celeuma que poderia obscurecer uma dimensão fundamental desta controvérsia: a lealdade esperada em relação à Mendonça e a dúvida sobre ela. A dúvida me parece o ponto nodal que divide senadores e a expectativa de lealdade a que impulsiona Bolsonaro. A religião, nestes dois casos, ganha um lugar menor. Certamente, caso a posse de Mendonça se concretize, será utilizada por diferentes atores para fortalecerem seus capitais político-religiosos, como a própria Anajure indubitavelmente o fará, pois foi apoiadora de primeira hora de seu nome ao STF. No entanto, argumento, nem a dúvida de Senadores e nem o apoio incondicional de Bolsonaro são relativos preponderantemente ao (suposto) caráter “terrivelmente evangélico” de Mendonça.
Ao longo de sua carreira, iniciada em 1997 como advogado da Petrobrás, e sua posterior ascensão à Advocacia Geral da União, em 2000, Mendonça foi reconhecido como moderado, conciliador. Pronunciou-se em favor de Lula após sua vitória nas eleições de 2002 e com sua gestão teve boas relações. Assim como outros líderes evangélicos, paulatinamente passou a fiel escudeiro de Bolsonaro. Para beneficiar sua carreira, mostrou-se leal ao presidente em diversos momentos: no tão mencionado pronunciamento durante o julgamento da ADPF 811, quando assumiu o comando da Advocacia Geral da União, e, em seguida, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, quando retrocedeu à AGU em um jogo de xadrez que o presidente da República se viu obrigado a jogar para se manter no poder.
Mas a carta dos juristas pela democracia e dos policiais antifascistas não se restringe à questão religiosa na contraposição à indicação de Mendonça. Ou seja, não caem na armadilha da religião, de rodar os argumentos em torno deste ponto, embora tenham entregue munição ao discurso de intolerância em relação aos evangélicos em algumas passagens denunciadas pela Anajure em sua nota divulgada nas redes sociais e no site da associação.
Os juristas também analisam a indicação de André Mendonça para o STF como uma estratégia de Bolsonaro para aparelhar o Estado com aqueles que o presidente compartilha de alinhamento ideológico. A avaliação dos signatários da carta é que a escolha por Mendonça também visa a “favorecer decisões em processos criminais”. Que, nesse caso, “envolvam os próprios filhos (do presidente da República) e seus correligionários”. Estaria aqui desnudada uma prática patrimonialista. Resumidamente, segundo Max Weber, o patrimonialismo pode ser definido como uma indistinção entre bens públicos e privados por parte da gestão estatal. Esta era uma prática comum em governos absolutistas e aqui denunciada pelos juristas e policiais signatários da carta na medida em que sugerem que haveria um uso, pelo presidente da República, da máquina estatal em proveito próprio, operando como se o Estado fosse seu patrimônio não só em termos propriamente financeiros, mas como mercadoria política. Sendo assim, argumentam, “Diante de tantas demonstrações de absoluta entrega à ideologia bolsonarista, a indispensável imparcialidade ficará inevitavelmente comprometida para julgar temas sensíveis ao governo e outros que, de algum modo, interfiram nos projetos do atual Presidente da República”.
A ameaça à democracia, por fim, se estabeleceria como recurso peremptório à rejeição da nomeação de Mendonça na medida em que, no curto período em que esteve à frente da AGU e do Ministério da Justiça e Segurança Nacional, acionou diversas vezes a Lei de Segurança Nacional (LSN), um dispositivo criado pela ditadura militar no Brasil.
A verve populista e brincalhona de Bolsonaro que fascina alguns por performar uma (suposta) verdade, uma crueza sincera, poderia estar custando caro. Digo porque ao “brincar” com a audiência em diferentes ocasiões, repetiu incansavelmente que indicaria um jurista “terrivelmente evangélico”. Pelo foco continuado na religião pode ver ameaçados os seus planos. Vem moderando seu discurso, enfatizando a competência técnica de Mendonça, mas o efeito narrativo da “brincadeira” do “terrivelmente evangélico” está repercutindo mal. A carta dos juristas e policiais antifascistas solicita aos senadores que “rejeitem” a nomeação do presidente da República e convoquem audiência pública para “o amplo debate com a sociedade civil” com a finalidade de apontar outro nome para a substituição do ministro da Corte, Marco Aurélio Mello.
Aos 75 anos, o decano, indicado por Fernando Collor, se aposentou na última segunda (12). Recorrendo à história do STF, órgão criado em 1890 com o estabelecimento da República no Brasil, vemos que somente cinco indicações presidenciais foram negadas até agora pelo Senado. Todas na gestão de Floriano Peixoto, presidente com inúmeras dificuldades de relação política naquele momento. Posteriormente, nunca houve uma rejeição à indicação presidencial à vaga no STF. No entanto, o uso da religião por Bolsonaro, sempre ativada como código expressivo de sentidos de uma tradição cristã tomada como nacional para aquecer bases e para reafirmar publicamente seus laços com líderes empresariais evangélicos, pode significar uma cilada. Ou seja, de código que fortalecia atores dando visibilidade e expectativa de compromissos, pode ser agora mobilizado igualmente como código pelos defensores da democracia para garantir a República e para se contrapor ao patrimonialismo e ao bandistismo que se anunciam.
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Uma dúvida sobre lealdade: Religião, Bolsonaro e o STF - Instituto Humanitas Unisinos - IHU