17 Julho 2021
Em pleno Ano Inaciano, o prepósito geral dos jesuítas recebe Alfa y Omega em Roma. Anima a confiar em Deus e mudar o olhar, assim como fizeram o próprio Santo Inácio, o padre Arrupe e Stan Swamy, falecido há algumas semanas, na Índia, “por uma injustiça tremenda”.
A entrevista é de Rodrigo Pinedo e Victoria I. Cardiel, publicada por Alfa y Omega, 15-07-2021. A tradução é do Cepat.
Celebramos 500 anos da conversão de Santo Inácio: a bala de canhão, a leitura da vida dos santos, o despojamento... O que é central?
O encontro pessoal com Jesus Cristo. Todos esses elementos levaram Santo Inácio a ver a pessoa de Jesus e a se encontrar com Ele. Quando Jesus se torna o centro de sua vida, tudo nele muda: a visão, a sensibilidade, a capacidade interior de ver seus movimentos...
Você conheceu os jesuítas através dos bascos e navarros, em seu colégio. Do que se lembra?
Lembro-me da proximidade humana dessas pessoas, que eram pessoas acessíveis. Tinham uma espiritualidade contagiosa, não imposta. Era algo que se vivia no campo de futebol, no colégio, nas aulas, na Missa... Não era uma coisa artificial, mas entrelaçada com a vida.
E tenho que reconhecer com profundo respeito e carinho o seu interesse pela Venezuela. Levaram-nos para conhecer o país e nos colocaram em sintonia com os processos que estavam acontecendo. Era um tempo muito interessante, com o fim da ditadura militar e o início da experiência democrática.
Quando essa primeira vocação é despertada, o que se move em seu interior? Diz que pensou em ser médico ou sociólogo e acabou sendo padre, que tem algo de curar e tratar as pessoas.
A palavra salvação e a palavra saúde têm a mesma raiz etimológica, como liberdade e libertação. Foi nascendo um compromisso muito forte em curar as feridas com as quais nos deparamos. Feridas que inicialmente são mais físicas, mas depois você vai percebendo que também são sociais, espirituais...
Certamente, a vocação à Companhia me permite juntar muitas dessas coisas. Não fui médico, mas trabalhei toda a minha vida no campo das ciências sociais, promovi a aproximação espiritual através dos Exercícios e o acompanhamento, e promovi a análise política a partir de uma perspectiva da libertação. A vocação à Companhia tem todos esses elementos, que também estão no Evangelho. Os grandes sinais que Jesus fez foram curas de doentes, de relações, de pessoas que estavam endemoninhadas. Isso faz parte de como se vive a evangelização.
A medicina avançou a passos largos. Para as feridas deste mundo, qual é a utilidade, hoje, dos Exercícios ou o exame do dia que santo Inácio ‘receitava’?
O exame inaciano não é um exame de consciência, mas implica estar permanentemente atento a encontrar Deus em todas as coisas. Começa com uma ação de graças, ao passo que outros exames de consciência começam reconhecendo os pecados. Convida você a agradecer a Deus por estar aí e por onde o encontrou neste momento de sua vida.
Os Exercícios levam você a fazer uma escolha e a criar uma familiaridade com Deus e a encontrá-lo em todas as coisas. O exame permite que você não se esqueça disso. Santo Inácio também dizia que os confessores deveriam se examinar toda vez que recebiam um penitente e o despediam, para examinar se tinham sido imagem da misericórdia de Deus para aquela pessoa.
A Companha deu muitos santos ao mundo, desde então. Possui especial devoção por algum deles?
É uma pergunta que tenho dificuldade para responder. Há muitos santos que não são reconhecidos como tal, que não foram canonizados. Conheci vários. São pessoas de carne e osso que sofrem. Tenho devoção pela imensa quantidade de formas em que é possível ser santo.
Se você me aperta, cito dois irmãos porteiros: santo Alonso Rodríguez e o beato Francisco Gárate. Passaram sua vida em uma portaria. Visto de fora, parece o lugar mais inútil do mundo, mas é um lugar onde você se encontra com todos os tipos de pessoas...
Alonso Rodríguez ajudou Pedro Claver a empreender o caminho missionário e a ir para as Índias. O irmão Gárate permaneceu 40 anos em uma portaria, que pode ser vista em Deusto. São dois modelos de santidade de uma grande sensibilidade, que não davam Exercícios na portaria, mas quase, porque acompanhavam as pessoas. E depois, é claro, minha maior devoção a um santo da Companhia é a Pedro Arrupe.
Como avança a causa de Arrupe?
Avança bem. É uma causa complexa pelo trabalho que é preciso ser feito. Sua vida é longa e se divide em muitas partes. E, além disso, foi geral da Companhia por 18 anos, razão pela qual o material que existe é imenso. A parte histórica está praticamente encerrada. Também foram colhidos testemunhos na Espanha e Itália, embora falte o Japão, onde não foi possível ir por causa da pandemia. Com isto, terminaria a parte diocesana, que é a mais complicada e temos o sonho de que termine neste 2021.
Teve contato com ele?
Sim. Um pouco de longe. Eu era um jovenzinho. Entrei na Companhia um ano após ele ser eleito como geral. Passou pela Venezuela quando eu era noviço, e depois eu o vi aqui em Roma, quando passei três anos fazendo Teologia. Ele vinha ao Colegio del Gesú algumas vezes ao ano e havia certa possibilidade de interação.
De fato, foi ele quem me trouxe a Roma. Eu não tinha nenhuma intenção de vir, era a última coisa que queria fazer na vida. Era um momento de ascensão criativa da teologia latino-americana. Em El Salvador estava nascendo uma escola e um companheiro e eu queríamos ir para lá. Ou para o Chile. Pedro Arrupe disse: “Melhor que venham para aqui”.
Com grande visão, acabava de fundar o Colegio del Gesù para reunir jesuítas do mundo todo. Tinha uma perspectiva mais universal da missão. Naquele momento, éramos 70 de mais de 30 províncias jesuítas diferentes. Agradeço a insistência de Arrupe e do provincial da Venezuela para que eu viesse a Roma.
É preciso fazer alguma autocrítica à Companhia daquela época?
Ao ver a história de Arrupe, em seu contexto, cresce a sua figura. Teve uma formação muito tradicional. Não era uma pessoa de ideias teológicas muito além... Isso, sim, era um missionário. Tinha muito clara a vocação missionaria da Companhia. Fez a experiência de inculturação, como depois Adolfo Nicolás.
As bombas de Hiroshima e Nagasaki mudaram a vida de Arrupe. É uma pessoa que conhece de perto o sofrimento humano e que entende a necessidade de se abrir à novidade. Nesse sentido, foi uma pessoa com uma audácia tremenda em confiar nos outros. Não sei se foi entendido naquele momento. Fez muitas coisas confiando nos jesuítas que as propunham.
É claro, houve equívocos, mas estamos falando de um momento no qual a Igreja faz uma clara aposta que é o Concílio Vaticano II. Foi um momento de revolver as águas e houve exageros de um lado e de outro, também na Companhia. Mas Arrupe teve uma tremenda confiança em que esse era o caminho da Igreja. Era audaz: “Isto é o que é preciso ser feito. Não sabemos como, mas vamos”.
Entrevistamos Nicolás um pouco depois de você ser eleito. Falava da inculturação e de estender pontes a outras religiões. Que inculturação permanece sendo necessária? Faz sentido em tempos de globalização?
Em primeiro lugar, diria que a inculturação não é um debate na Companhia, faz parte da vida e não de agora, mas de sempre. É incrível a capacidade que os jesuítas tiveram, desde o início, em buscar entender o lugar onde estavam. Basta ver a quantidade de descrições que existem de suas viagens, das pessoas... São muito conhecidas as da China e a Índia, mas também na América Latina e o mesmo na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá.
Hoje, a Companhia de Jesus é um corpo multicultural, impressionante. No refeitório desta casa, você fica maravilhado com a diversidade. Hoje, há vocações, mais ou menos conforme o caso, em todos os países onde estamos trabalhando. Isso nos coloca diante de um desafio novo: o da interculturalidade. Uma coisa é ser multiculturais – poder vivenciar culturas diferentes – e outra é ser interculturais, conseguir enriquecer essa diversidade porque dou o que sou e recebo dos outros. A variedade é uma riqueza e é preciso aproveitá-la.
A globalização tem enormes vantagens, mas uma das tendências do mercado globalizado é a homogeneidade, que de alguma maneira é uma imposição cultural. Quando você vê um japonês vestindo a mesma camisa do Hard Rock que alguém de Nova York ou de um bairro de Caracas usa, algo acontece aí. A tendência do mercado globalizado é a de homogeneizar porque é o que traz mais lucro. A tendência da inculturação e a interculturalidade é a oposta: desenvolver, manter a diversidade...
Como vivenciou a morte do jesuíta indiano Stan Swamy?
Ficamos com um gosto muito ruim na boca porque o padre Swamy tinha um compromisso de 50 anos com os Adivasi, que são os descartados na sociedade da Índia. Era um defensor dos direitos humanos que morre por uma injustiça tremenda.
As acusações contra Swamy são algo absolutamente absurdo. Vão contra os que defendem os direitos humanos, especialmente dos indígenas da Índia, e por trás está a questão da terra... E pegou muito mal, porque em que cabeça entra que uma pessoa com essa trajetória, com 84 anos de idade, doente de Parkinson, seja colocado na prisão sem a oferta das mínimas condições para que possa viver.
O Parkinson do padre Swamy era tal que não conseguia levar este copo (pega um) à boca sem que caísse, pois suas mãos tremiam. Demorou vários meses até que permitissem que ele tivesse um canudo para beber sem derramar tudo. Além disso, três ou quatro vezes, os tribunais lhe negaram a prisão domiciliar, que é uma coisa óbvia, e contraiu a COVID na prisão e isso desencadeou um processo de saúde que o levou à morte.
Por outro lado, há um paradoxo: a cruz de Cristo não faz sentido e se torna um sinal. A situação do padre Swamy foi uma pancada: vimos coisas que estão acontecendo na Índia e seu testemunho vai além dele. Comove-me que cada vez que escrevia ou se comunicava com alguém, não falava de si mesmo, não falava de seu sofrimento, não pedia coisas para si, pedia coisas para os outros...
O padre Xavier Jeyaraj, que agora está aqui e trabalhou com ele na Índia, conseguiu falar com ele alguns dias antes que morresse e lhe dizia: “Estamos trabalhando com os tribunais”. E ele respondia: “Mas há muita gente presa injustamente. Não sou eu, preocupe-se por eles”.
Há 15.000 jesuítas espalhados por 127 países e você recebe informações de muitos. Com quais países está mais preocupado? Para onde deveríamos olhar?
Bom, hoje [quarta-feira, dia 7] não sei se viram a notícia do assassinato do presidente do Haiti. É um vulcão em erupção há tempo e os jesuítas estão fazendo um trabalho muito bonito de presença e de estar lá...
Também busco acompanhar de perto a situação de Myanmar, da Síria, do Líbano, e da Etiópia, que ninguém fala dela e em Tigré estão matando pessoas todos os dias. Ou da República do Congo que aparece pouco. Ou da Nicarágua, onde há um assédio direto à Universidade Centro-Americana e ao colégio, e ao reitor. Há muitas regiões do mundo que mantêm a pessoa em oração e atenção.
E sua querida Venezuela?
Não somente nasci lá, tenho um irmão que vive fora, mas minhas quatro irmãs e minha mãe vivem em Caracas. Grande parte de minha família vive lá, exceto alguns sobrinhos que saíram. E tem os jesuítas com uma província muito ativa e muito comprometida nas paroquias, com Fé e Alegria, com a universidade.
Fico comovido com o que as pessoas estão passando. As pessoas só conseguem viver porque existem cinco milhões de venezuelanos que vivem fora e enviam algo de dinheiro. E me admira a generosidade dos que estão lá, ajudando-se mutuamente, dos jesuítas, da Igreja...
Por exemplo, na Venezuela, Fé e Alegria administra 220 escolas e 20 emissoras de rádio, e os jesuítas nisso são dez... Ser professor na Venezuela é uma forma de santidade ou de heroicidade porque o que um professor ganha não paga nem a passagem para chegar à escola.
Nesse momento, há processos de negociação em andamento que oferecem um pouquinho de esperança, mas são muito complexos. Durante todos estes anos, criaram tal divisão na sociedade venezuelana que reconstrui-la, até mesmo para negociar, já é difícil. E para reconstruir um tecido social e uma sociedade que possa viver em paz e democraticamente será necessário tempo e um esforço muito grande.
O que significa que o Papa e o ‘Papa negro’ sejam latino-americanos e jesuítas?
Não me diga o Papa negro [risos], é uma expressão eu que não gosto.
Bom, é verdade que vocês têm o quarto voto.
O Papa é o Papa, é um. E além do quarto voto de obediência ao Papa, nós, jesuítas, fazemos um voto de não aceitar cargos eclesiásticos. Para que um jesuíta seja bispo, temos alguns, é preciso haver um ato especial do Papa. A Companhia de Jesus nasceu para receber a missão da Igreja através do Papa, é uma organização que nasceu para ajudar o Pontífice em sua missão universal da Igreja. Ter um Papa jesuíta é uma novidade muito grande e uma surpresa histórica.
O padre Bergoglio era bispo há muito tempo, estava há mais de 20 anos em Buenos Aires quando o elegem Sucessor de Pedro. É verdade que não é fácil de entender que quando um jesuíta é ordenado bispo, não deixa de ser jesuíta - porque carrega isso internamente -, mas não faz mais parte da organização, não está submetido ao superior jesuíta... O Papa é um jesuíta, mas é o Papa. E, além disso, porque é jesuíta sabe como pode aproveitar os recursos que a Companhia possui.
Agora, por exemplo, trabalha com o Sínodo dedicado à sinodalidade, que tem certo eco jesuíta...
A sinodalidade permite fazer da Igreja uma comunidade que discerne. Na América Latina nunca usamos a palavra sinodalidade, mas Povo de Deus para insistir justamente em que é um povo, que é um grupo variado de pessoas, de idades, de compromissos, de formação... e é de Deus. Por quê? Porque é guiado por Deus, é reunido por Deus e acompanhado.
A leitura do Êxodo é muito clara. O povo não inventa a si mesmo, Deus o cria e o acompanha. As imagens utilizadas no Êxodo são muito belas: o Senhor anoitece, amanhece, dá de comer, dá água, acompanha... Quem conhece o caminho não é Moisés e não é o povo, é Deus. E aí entra o discernimento. Esse processo é o que seria a sinodalidade.
Na América Latina, compreendem bem essa questão de aprender do outro e construir pontes. Do que precisamos nos despojar na Igreja para alcançar isso?
Temos que nos despojar da segurança de que sabemos tudo. Quando alguém reconhece que é povo de Deus, que é Deus que o guia, reconhece que não sabe qual é o caminho e que é preciso perguntar, é preciso perguntar a Deus.
O prólogo do quarto Evangelho me diz muito: “Ninguém jamais viu a Deus”, foi nos mostrado por Jesus. Conhecemos Deus através da humanidade de Jesus e da história, dos sinais de sua presença na história humana. E isso é o discernimento: aprender a ler esses sinais e segui-los. É preciso escolher seguir esse caminho.
O que pediria hoje a um inaciano?
Que aproveite a oportunidade que tem não só este ano, mas sempre. Que aproveite para crescer nesse ver novas todas as coisas em Cristo, para adquirir o olhar de Jesus. Como se adquire esse olhar? Nos Exercícios, na contemplação de Jesus, que nunca acaba. Porque se contempla e contempla e sempre há novidade. É o que permite a alguém ir assumindo esse olhar, ver o mundo a partir daí e, então, agir.
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“Minha maior devoção a um santo da Companhia é a Pedro Arrupe”. Entrevista com Arturo Sosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU