22 Julho 2021
"Em 2016, o Papa Francisco elevou a memória de Santa Maria Madalena, tradicionalmente celebrada no dia 22 de julho, ao status de festa. Uma nuvem de confusão finalmente está sendo desfeita em relação à mulher que se levantou antes do nascer do sol para visitar o túmulo de Jesus, enquanto os homens dormiam".
O comentário é de Margaret Hebblethwaite, teóloga leiga inglesa, missionária em Santa María de Fe, no Paraguai, e fundadora do Fundo Educacional Santa Maria. O artigo foi publicado em The Tablet, 15-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nos últimos 30 anos, houve uma infinidade de livros restaurando a reputação de Maria de Magdala de uma prostituta arrependida a uma discípula líder. Ela é sempre mencionada em primeiro lugar entre as mulheres seguidoras, e o seu título de “Apóstola dos Apóstolos” está firmemente fundamentado na missão dada a ela por Jesus ressuscitado. Mas, embora esse seja agora um terreno familiar entre os teólogos, ele não se espalhou entre a ampla maioria dos fiéis cristãos.
Depois do meu artigo na edição de 27 de março, alguns leitores da revista The Tablet me escreveram dizendo que sempre pensaram que a mulher que ungiu Jesus era Maria de Magdala. É possível ver por quê. Afinal, quase todas as pinturas da unção são intituladas “Maria Madalena unge Jesus”. Tais imagens precisam ser renomeadas.
O Evangelho de João diz que Jesus foi ungido por Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro, mas, durante séculos, Roma insistiu que as duas mulheres eram uma só e a mesma. Agora, finalmente, o Vaticano admitiu o seu erro, e, neste mês de fevereiro, deu mais um passo para esclarecer que as duas mulheres são distintas.
Paulo VI já havia começado a corrigir esse registro em 1969, com novos rumos para a memória de Maria de Magdala no dia 22 de julho. Ela não era mais descrita como uma “penitente”. A oração da coleta não dizia mais que “suas orações vos levaram a restituir a vida ao seu irmão Lázaro”, mas sim que “o vosso Filho confiou a Maria Madalena o primeiro anúncio da alegria pascal”. E o Evangelho não era mais o relato de Lucas sobre uma pecadora que ungia os pés de Jesus, mas foi mudado para o encontro de Maria com Jesus ressuscitado.
Depois, no dia 3 de junho de 2016, o status da data foi elevado pelo Papa Francisco de uma memória a uma festa, no mesmo nível daquelas dos “outros apóstolos”. A Igreja tem uma hierarquia de celebrações, que vão das memórias, passando pelas festas, até as solenidades. Um novo Prefácio foi publicado em razão disso, que afirma que Jesus “honrou-a com o ofício de Apóstola dos Apóstolos”.
A correção não foi feita como um resultado dos modernos livros escritos por Lilia Sebastiani, Susan Haskins, Carla Ricci, Esther de Boer, Sandra Schneiders, Holly Hearon, Jane Schaberg, Deirdre Good, Ann Graham Brock e Michael Haag. Ela se baseou na obra dos bolandistas, uma associação de base jesuíta que, desde o século XVII, trabalha sobre a vida dos santos e que preparou o caminho para a reforma pós-conciliar do calendário romano.
O decreto de 2016 indicou apenas três fatos “certos” sobre Maria de Magdala. Ela “fez parte do grupo dos discípulos de Jesus” (Lucas 8,1-3, no qual ela, Joana, Susana e muitas outras passaram com Jesus pela Galileia, junto com os Doze); ela seguiu-o “até aos pés da cruz” (em todos os evangelhos); e ela foi a primeira testemunha da Páscoa “no jardim onde se encontrava o sepulcro” (João 20; também Mateus 28,1.9).
O decreto reconhecia que, “sobretudo depois de São Gregório Magno”, a antiga interpretação havia dominado a tradição da Igreja ocidental em sua teologia, arte e textos litúrgicos. Mas “com razão” Maria de Magdala havia sido chamada de “Apóstola dos Apóstolos” por Tomás de Aquino e por Rabanus Maurus, pois ela “se torna evangelista” e “anuncia aos Apóstolos aquilo que, por seu lado, eles anunciam a todo o mundo”.
O que o decreto do dia 2 de fevereiro de 2021 acrescentou a isso foi dar a Maria de Betânia o seu próprio dia no calendário, de modo que o seu nome e o de Lázaro foram acrescentados à memória da sua irmã Marta no dia 29 de julho, exatamente uma semana após a festa de Maria de Magdala. Agora que as duas mulheres têm oficialmente dias separados, fica ainda mais difícil alegar que são a mesma pessoa.
Mas por que isso deveria importar? Por que alguém ficaria ofendido se duas das três maiores mulheres dos Evangelhos (a terceira também se chama Maria, é claro) são transformadas em uma única supermulher? Porque a figura combinada não era uma supermulher, mas foi rebaixada como a suposta “pecadora” sexual de Lucas 7, no capítulo antes de Maria de Magdala ser mencionada como alguém que foi libertada por Jesus de sete demônios.
Curiosamente, em nenhum outro texto do Evangelho a possessão demoníaca é interpretada como depravação sexual em vez de doença. Quando Jesus libertou uma mulher da escravidão de Satanás em outro milagre lucano (13,10-17), ninguém sonha em dizer que ela foi salva de uma vida de prostituição. Não há fundamentos para identificar Maria de Magdala com a chamada “pecadora”.
A confusão entre as duas Marias foi facilitada ao se pensar que “Madalena” era o seu nome. Uma vez que se percebeu que “Maria, a Madalena” (nunca sem o artigo nos Evangelhos) significa “Maria de Magdala”, assim como “Jesus, o Nazareno” significa “Jesus de Nazaré”, fica bastante difícil pensar que a mesma mulher era tanto de Betânia (perto de Jerusalém na Judeia) quanto de Magdala (uma cidade pesqueira no Mar da Galileia).
Isso não quer dizer que a tentativa não tenha sido feita. O estudioso anglicano John Wenham levantou a hipótese em 1984 de que a “atraente e aventureira” mas “temperamental” Maria de Betânia, irmã de Marta, havia ido embora de sua casa para ir à “deleitosa” cidade de Magdala, mas a sua pequena aventura, “em princípio tão empolgante e agradável, azedou totalmente contra ela”, quando ela se voltou para a prostituição.
Duvido que alguém ousasse escrever isso hoje. O mito de que Maria de Magdala era uma prostituta arrependida não é apenas um insulto a Maria, mas também um insulto às prostitutas. Quem hoje em dia considera as prostitutas como mulheres lascivas com a intenção de desviar os homens do seu caminho, roubar o dinheiro deles e satisfazer seus próprios desejos lascivos? Não as consideramos vítimas, seja de tráfico sexual, de cafetões ou da pobreza? A implicação de que elas devem se arrepender é profundamente misógina.
Se esse antigo arquétipo de Maria Madalena parece exagerado, ouça o que Gregório Magno disse, provavelmente em 591, quando consolidou a errônea identificação. “Ela, a quem Lucas chama de pecadora, a quem João chama Maria, nós acreditamos ser a Maria de quem sete demônios foram expulsos, de acordo com Marcos. E o que esses sete demônios significam, senão todos os vícios? (...) Está claro, irmãos, que a mulher anteriormente usava o unguento para perfumar sua carne em atos proibidos (...) Ela havia cobiçado com olhos terrenos, mas agora, por meio da penitência, eles são consumidos pelas lágrimas. Ela exibia seu cabelo para realçar seu rosto, mas agora seu cabelo seca as suas lágrimas. Ela havia falado coisas orgulhosas com a sua boca, mas, ao beijar os pés do Senhor, ela agora plantou a sua boca nos pés do Redentor. Para cada prazer, portanto, que ela tivera em si mesma, ela agora imolava a si mesma. Ela transformava a massa dos seus crimes em virtudes, a fim de servir a Deus inteiramente em penitência”.
Deixemos de lado que, de fato, foi Lucas, e não Marcos, quem disse que Maria havia sido libertada de sete demônios (o que, depois, foi copiado no “final mais longo” de Marcos, não pelo evangelista, mas por uma mão diferente). De qualquer forma, o texto de Gregório é profundamente chocante.
Mas essa era a ideologia dominante e ela persistiu a tal ponto que, um milênio depois, em 1520, o estudioso francês Jacques Lefèvre d’Étaples foi condenado por heresia quando ousou sugerir que Maria de Magdala e Maria de Betânia eram pessoas separadas e que também não era a “pecadora” de Lucas.
As duas Marias, no entanto, têm, sim, algumas coisas em comum – pés e lágrimas –, de modo que isso pode ser confuso. Maria, a irmã de Marta, senta-se aos pés de Jesus e o escuta (Lucas 10,39) e unge seus pés com óleo (João 12,3). Maria de Magdala e suas companheiras seguram os pés de Jesus ressuscitado (Mateus 28,9). As lágrimas de Maria de Betânia pela morte do seu irmão levam Jesus a chorar com ela (João 11,33). As lágrimas de Maria de Magdala no sepulcro o levam a se revelar a ela (João 20,15). Também há em comum o óleo da unção, já que Lucas cita Maria de Magdala como uma das mulheres que levavam especiarias e unguentos ao sepulcro (Lucas 23,56; 24,1.10).
Isso é um alívio para quem, como nós, ama a arte religiosa, pois significa que podemos conservar as imagens que a mostram com o seu frasco de óleo de unção – seu “logotipo”, segundo Eamon Duffy – desde que nos lembremos de que isso mostra que ela está se preparando para ir ao sepulcro, não à ceia de Simão.
E, embora ela seja tradicionalmente mostrada sem véu, uma vez considerado um sinal de alguém que está “à frente”, são os véus das outras mulheres do Evangelho que eu preferiria ver removidos.
Quando retiramos as falsas interpretações, podemos ser mais receptivos a uma das mais belas histórias dos Evangelhos, pois Maria de Magdala se levanta antes do nascer do sol para visitar o túmulo, enquanto os homens estão dormindo. Ela encontra a pedra removida e o sepulcro vazio, e corre para dar o alerta, pensando que o corpo havia sido roubado.
Ela não era uma mulher submissa e fraca, mas uma iniciadora, uma corredora e uma proclamadora. Desesperada com a tristeza de que não apenas perdera seu amado mestre, mas também a relíquia do seu corpo morto, Maria de Magdala volta às lágrimas, e é a ela que Jesus deseja se mostrar primeiro. Ele poderia ter aparecido primeiro a Pedro, mas, ao invés disso, dá a ela a responsabilidade de levar a notícia – uma responsabilidade pesada, considerando-se que os homens não vão acreditar nela (Lucas 24,11).
Não é apenas um ato de compaixão da parte dele, mas um ato de confiança, ao lhe confiar a mensagem mais importante que já foi transmitida. Ela cumpre a sua missão com a coragem de uma alegria avassaladora, e todos nós, que depois recebemos a notícia, podemos rastrear até ela o caminho da proclamação.
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Maria de Magdala, evangelista e apóstola dos Apóstolos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU