06 Janeiro 2018
Por quase dois séculos, centenas de mulheres irlandesas, reclusas dentro das casas de correção 'Magdalenas', foram educadas para seguir o exemplo de Maria Madalena, a santa prostituta que tinha se arrependido. Quem sabe o que hoje iriam pensar se descobrissem que a sua santa absolutamente não era uma prostituta. Porque este é um dos muitos erros fruto de uma secular e enorme reformulação póstuma de uma personagem evangélica, de traços indefinidos, cuja figura com a passagem do tempo assumiu novos valores.
O comentário é de Andrea Nicolotti, professor do Instituto de Estudos Históricos da Universidade de Turim, Itália, publicado por Corriere della Sera, 31-12-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nas cartas de Paulo, que são os textos proto-cristãos mais antigos, não há nenhuma menção sobre Madalena. Ela aparece pela primeira vez no Evangelho de Marcos entre as mulheres que assistem à crucificação e sepultamento de Jesus e depois, no domingo, dirigem-se ao sepulcro para encontrá-lo vazio. Só mais tarde, nos Evangelhos de Mateus e João, e no chamado final longo de Marcos, Maria de Magdala é apresentada como a destinatária da primeira aparição do Ressuscitado. Lucas acrescenta que ela era doente, libertada por Jesus de sete demônios que a possuíam. João faz dela não apenas a primeira e única testemunha do Cristo ressuscitado, mas também a apóstola de sua mensagem.
Um crescimento de importância que prosseguiria nos anos seguintes, nos textos apócrifos: há quem sobreponha a figura de Maria Madalena com Maria, mãe de Jesus, outros que a colocam no comando de um grupo de missionárias virgens, que se identificam com uma pecadora anônima que, como relata o evangelista Lucas, ungiu os pés de Jesus com óleo perfumado e os enxugou com seus cabelos. No mesmo óleo, conta uma das lendas mais bizarras, já havia sido imerso o cordão umbilical de Cristo.
Jesus a beijava muitas vezes, relata o Evangelho de Felipe: não com beijos sensuais, mas para transmitir alimento espiritual. No Evangelho de Tomás, preconiza-se a sua transformação de mulher para homem, onde o feminino é metáfora do mundo material e o masculino do mundo espiritual. Mas, às vezes, nesses escritos, por trás das metáforas escondem-se necessidades práticas: o conflito com o apóstolo Pedro, adversário misógino, permite entrever o choque entre correntes cristãs em competição, enquanto os papéis atribuídos por Jesus a Maria Madalena nesses Evangelhos também serviam como um argumento para definir quais papéis fossem acessíveis às mulheres dentro da Igreja.
Podia parecer estranho que a mensagem da graça do Jesus ressuscitado tivesse sido levada aos discípulos através das palavras de uma mulher. Mas assim precisou ser, explicou Ambrósio de Milão, para redimir o pecado de outra mulher, Eva, culpada de ter levado a Adão a mensagem do mal. Madalena também se prestava a interpretações alegóricas: nova Eva, mas também, de acordo com as ocasiões, símbolo da humanidade feminina, da Igreja, dos pagãos ou da sinagoga.
Desde o terceiro século, houve sinais de um processo de fusão de três personagens evangélicos em um único: Maria Madalena é identificada com a pecadora anônima de Lucas que ungiu os pés de Jesus na Galileia e com Maria de Betânia, outra mulher que na Judeia havia realizado o mesmo gesto. Quando o papa Gregório Magno, em 591, deu aval para essa sobreposição errônea, no Ocidente Madalena definitivamente se torna a quintessência da pecadora arrependida e redimida. E de "pecadora" a "prostituta" o passo foi curto.
Uma iconografia tradicional da mulher em roupas andrajosas, com cabelos longos e descuidados e um frasco de bálsamo nas mãos, denuncia a sobreposição com mais um quarto personagem, a eremita ex-prostituta santa Maria do Egito. Uma lenda medieval traria Madalena para a Provence em um navio sem velas e sem remo. Saint-Maximin e Vezelay disputarriam a posse de suas relíquias que, até então, todos haviam considerado enterradas no Oriente.
Por outro lado, a santa ainda hoje é objeto de uma reivindicação por parte dos grupos mais dispares: a exegese feminista a chama em causa para libertar os estudos bíblicos da hegemonia masculina; a crítica pós-colonial vê nela um exemplo de mulher subjugada pelo colonialismo romano; os Mórmons a consideraram a esposa de Jesus, enquanto o movimento islâmico dos Ahmadis a retratou como uma amante rejeitada.
A New Age e o neognosticismo inspiraram lucrativas incursões literárias e cinematográficas, misturando textos apócrifos, lendas medievais, santo Graal, sociedades secretas e invenções modernas, formando um pastiche romanceado onde já não há distinção entre história e fantasia.
Para breve está anunciado o lançamento de um novo filme dirigido por Garth Davis, intitulado Maria Madalena: nele o papel da mulher se anuncia bem mais proeminente do que o narrado pelos evangelhos canônicos, e é apresentado o tema do conflito entre Pedro e Maria, assim como emerge de alguns apócrifos.
Enquanto isso, o leitor interessado em uma reconstrução histórica exaustiva pode aproveitar uma coleção de estudos com curadoria de Edmondo Lupieri, Una sposa per Gesù (Uma noiva para Jesus, Carocci, 2017), onde também há espaço para um apaixonado capítulo escrito por uma teóloga ex-prostituta. Para ela, a consciência atual de que Madalena não foi uma prostituta causa mais danos que benefícios: privadas de sua santa, a quem as prostitutas poderão se dirigir de agora em diante?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Prostituta, apóstola, trans, a Madalena reinventada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU