05 Outubro 2017
"Ao que se deve a amnésia que levou a tradição sucessiva a desviar Maria de Magdala da história de Jesus e da sua comunidade de discípulos antes e depois da Páscoa para uma sucessão interminável de lendas que, mesmo preservando a sua memória, a alteraram e a tornaram insignificante para a história da grande igreja?", questiona Marinella Perroni, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, outubro-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Marinella Perroni é professora na Pontifícia Universidade de Santo Anselmo, em Roma, e na Faculdade Teológica Marianum e é vice-presidente e membro do comitê científico de Bíblia. É autora, entre outros, de Le donne di Galilea. Presenze femminili nella prima comunità cristiana (EDB, 2015), Maria di Magdala. Una genealogia apostolica (com Cristina Simonelli, Aracne, 2016) e Dio nessuno l’ha mai visto. Una guida al vangelo di Giovanni (com Pius-Ramon Tragan, San Paolo, 2017).
Na ponta dos pés e a pequenos passos: nestes últimos anos Maria de Magdala recuperou um pouco de terreno também na Igreja Ocidental. Foi João Paulo II, que, na homilia de um domingo de Páscoa, gritou para o mundo que ela foi a primeira testemunha do ressuscitado. E, finalmente, isso foi repercutido pela imprensa, tornou-se notícia, parecia a descoberta do século. Poucos se perguntaram por que demorou séculos e séculos para que os eventos narrados no Evangelho de João há quase dois mil anos fossem recebidos como foram escritos. Mas não importa, a brecha agora já foi aberta. O Papa Francisco então decretou a elevação de Maria de Magdala a celebração litúrgica e, há dois anos, na missa de 22 de julho foi chamada pelo nome de apóstola.
Testemunha, apóstola. Parecem finalmente aposentadas todas as imagens que a imponente produção ocidental iconográfica, além de tanta literatura e, recentemente, de tanta cinematografia, contribuíram para fixar no imaginário de gerações de cristãos levando-os a fantasiar sobre sua sensualidade de prostituta, de amante e de esposa.
Depois de tantas lendas, Maria foi finalmente restituída para a sobriedade das narrativas evangélicas. Há tempo, de fato, estudiosos e estudiosas tentavam fazer isso, mas era preciso a autoridade de dois Pontífices para começar a purificar a memória da Igreja latina. Não é assim para as Igrejas do oriente que, desde sempre, no terceiro domingo depois da Páscoa, celebram a festa das Miróforas, isto é, daquele pequeno grupo de mulheres liderado por Maria de Magdala que, trazendo mirra para ungir o corpo do mestre morto, vai para o sepulcro e são as primeiras a receber o anúncio da ressurreição. Para a Igreja do Ocidente era, ao contrário, necessário superar um equívoco que por mil e quinhentos anos marcou profundamente a história da espiritualidade, principalmente das mulheres. Um equívoco que vem de muito longe, do sucesso de uma homilia de São Gregório Magno, na qual, a partir de três mulheres do Evangelho, foi formada uma única "Maria". Para o grande Papa, a pecadora anônima do evangelho de Lucas que lava os pés de Jesus com suas lágrimas (7, 36-50), Maria de Betânia que, de acordo com João, unge profeticamente a cabeça do mestre na noite da traição (João 12, 1-8) e aquela Maria da qual o mestre recusa o abraço na manhã da Páscoa (João 20: 11-18) coincidem e, assim, criam o protótipo da mulher no séquito de Cristo, a prostituta arrependida, a filha de Eva finalmente redimida do pecado que cada mulher, apenas por ser mulher, traz no mundo e na história. O binômio Eva-Madalena tem, por outro lado, raízes muito antigas porque já está presente em escritores cristãos antigos, como Hipólito, nos Padres da tradição grega, como Gregório de Nissa ou, mais tarde, da tradição latina como Hilário de Poitiers ou Ambrósio.
Desde os primeiros séculos, os grandes Padres todos se questionaram sobre essa figura, principalmente porque era muito difícil para eles aceitar que o ressuscitado quisesse reservar uma aparição individual justamente para ela: nenhum Evangelista, de fato, refere uma aparição a Pedro, embora algum eco sobre isso apareça no final da história sobre os dois discípulos de Emaús (Lc 24, 34). De sua experiência da ressurreição fala-se, ao contrário, profusamente em todos os quatro evangelhos. No de Marcos, que contém o mais antigo relato da Paixão, e nos outros dois sinópticos, Maria está sob a cruz (Marcos 15, 40-41; Mateus 27: 55-56; Lucas 23, 49), na sepultura (Marcos 15, 47; Mateus 27, 61; Lucas 23: 55-56) e, na manhã de Páscoa, no sepulcro vazio onde as discípulas galileias recebem o primeiro anúncio da ressurreição (Marcos 16: 1-8; Mateus 28: 1-10 ; Lucas 24: 1-11). No mais recente dos Evangelhos, o de João, Maria está sob a cruz (19, 25) e, acima de tudo, é a destinatária da única aparição pessoal do ressuscitado (20, 1-2.11-18). Também não podemos esquecer que Lucas a menciona ao lado dos Doze, e como a líder do pequeno grupo de discípulas ao séquito de Jesus durante o seu ministério na Galileia (8: 1-3).
Paulo, ao contrário, embora para ele a história do Galileu concentre-se toda nos eventos da Páscoa, não parece saber nada sobre esta testemunha da ressurreição. Aliás, precisamente Paulo serve como caixa de ressonância para uma antiga fórmula de fé em que Maria e as outras discípulas galileias são retiradas da lista de testemunhas da ressurreição: na origem do kerygma da Páscoa haveria apenas um número crescente de discípulos a quem apareceu o ressuscitado, todos rigorosamente homens (1 Co 15: 3-7). A deformação da memória começa, portanto, muito cedo e, infelizmente, para bem pouco vai servir a recuperação das antigas tradições narrativas sobre os eventos da Páscoa que insistem no protagonismo das discípulas por parte de todos os quatro evangelistas.
Em vez disso, é justamente pelas narrativas dos Evangelhos que deve começar o resgate de memória. Porque Jesus de Nazaré não é redutível a um dos tantos mitos soteriológicos que acompanharam os últimos dias de um império que estava desmoronando, nem a uma ideologia poderosa que permite àquele império se recompor em uma nova unidade. Jesus "nasceu da mulher" e no fundamento de toda a reflexão cristológica deve ser posta a pergunta de seus compatriotas: "Não é este Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe nos conhecemos? "(Jo 6, 42). O mesmo vale para os seus discípulos e para as suas discípulas que não são todas figuras literárias, personagens fictícios que habitam pequenos contos míticos sobre um profeta carismático, mas eles são homens e mulheres que acreditaram nele enquanto ele convocava todo o Israel porque o Reino agora estava tão próximo a ponto de já estar presente, e começaram a segui-lo e, depois de sua morte, acreditaram que o Pai o tenha ressuscitado dentre os mortos.
Os discípulos e as discípulas, em suma, vivenciaram concretamente a difícil passagem que vai do discipulado do Nazareno ao momento do ressuscitado, e é aqui, nesta passagem, que Maria de Magdala tem um papel decisivo. O testemunho dos evangelistas é, nesse sentido, inequívoco. Só a partir dos textos, então, é possível reconstruir a imagem autêntica, isto é, livre de séculos de equívocos e manipulações, da Maria discípula, testemunha e apóstola.
Se todos os quatro evangelistas canônicos concordam em reconhecer a Maria um papel proeminente na gênese da fé pascoal, também é verdade que os Sinópticos e João modulam esse dado histórico servindo-se de registros teológicos distintos. Uma demonstração da criatividade que foi preservada e transmitida à memória dessa discípula e, portanto, do valor fundamental que ela teve para a constituição de várias Igrejas protocristãs.
A tradição sinóptica, embora com diferentes nuances, atribui à figura de Maria e das outras discípulas galileias um claro caráter kerigmático: essas mulheres estão intimamente vinculadas à anunciação cristã e à sua disseminação, primeiro como testemunhas da morte, do sepultamento e da ocorrida ressurreição, depois como primeiras destinatárias do anúncio pascoal e, em seguida, por sua vez, como mensageiras das boas novas. Não pode causar surpresa se, no âmago de duas culturas patriarcais, como a judaica e a grego-romana, o seu protagonismo tenha sido cuidadosamente diluído com o motivo da incredulidade por parte dos discípulos (Mc 16, 11; Lc 24, 11). Na verdade, ele é até inclusive reforçado. O fato de que nenhuma preocupação apologética tenha sido capaz de expurgar-lo das narrativas pascoais é a prova de suas raízes nas mais antigas tradições históricas: há pouco tempo de distância dos eventos, quem poderia ter calado sobre detalhes que tinham que ser, evidentemente, de domínio público? Aliás, se na segunda conclusão do Evangelho de Marcos, acrescentada mais tarde, é retomado o motivo da aparição do Cristo ressuscitado a Maria de Magdala, isso só confirma o quanto era importante para as igrejas emergentes preservar a memória dessa discípula como líder do grupo das mulheres que seguiam e serviam Jesus.
É, porem, especialmente o evangelho de João que perfila com grande força o papel apostólico de Maria de Magdala. Na realidade, dentro da narrativa de João são as figuras femininas - a mulher samaritana, Marta, Maria de Betânia e Maria de Magdala e, por duas vezes, a mãe de Jesus - que desempenham um papel decisivo. Tal estratégia narrativa, que traz as personagens femininas nos momentos cruciais para a revelação de Deus por parte de Jesus, não pode ser casual e, portanto, é lícito pensar que dentro das comunidades joaninas, as mulheres crentes fossem particularmente importantes também no que diz respeito à elaboração da fé cristológica. Absolutamente em linha com o resto do evangelho, o protagonismo pascoal de Maria de Magdala não pode então surpreender.
Dever-se-ia dar maior destaque à presença sob a cruz, ao lado de Maria de Nazaré e do discípulo a quem ele amava, a Maria de Magdala, testemunha da cena da “entrega" a partir da qual começa a vida da comunidade daqueles que acreditam no ressuscitado. Sob a cruz, a discípula galileia, em silêncio, é testemunha da última vontade de Jesus para a nova comunidade do discipulado: a comunidade do discípulo a quem ele amava deve acolher Maria, isto é, deve permanecer fiel à encarnação, aceitando que aquele que foi exaltado é aquele que nasceu da mulher (19: 25-27). Para João, a sua participação na morte de Jesus não tem então o valor de testemunho ocular, como para os Evangelhos sinópticos, mas é mais propedêutica para a investidura apostólica que receberá "no primeiro dia da semana" no jardim, onde José de Arimateia e Nicodemos haviam enterrado o corpo de Jesus (19: 38-42).
De fato, logo depois, naquele jardim da sepultura, será ela que terá que aceitar, por primeira, não permanecer ancorada à memória do mestre morto, e tornar-se uma discípula daquele que, agora, já ascendeu ao Pai. Para Maria a experiência do Ressuscitado comportará a transição de um para o outro conhecimento, do conhecimento do mestre para o conhecimento do ressuscitado, e será investida pelo próprio ressuscitado para o papel de anunciar aos discípulos a qualidade totalmente nova da relação que a exaltação de Jesus estabeleceu tanto entre o ressuscitado e os seus, como com os discípulos entre si (20, 17-18). Maria de Magdala, portanto, encarna a síntese da cristologia joanina, tão fortemente caracterizada pela polaridade encarnação-exaltação.
Uma questão então se impõe: ao que se deve a amnésia que levou a tradição sucessiva a desviar Maria de Magdala da história de Jesus e da sua comunidade de discípulos antes e depois da Páscoa para uma sucessão interminável de lendas que, mesmo preservando a sua memória, a alteraram e a tornaram insignificante para a história da grande igreja? Mesmo apenas um olhar para as tradições chamadas apócrifas deixa claro que em certas comunidades marginais, ao contrário, o papel desta mulher foi reconhecido e respeitado. Na realidade, mesmo na tradição da grande Igreja surgiu ocasionalmente alguma voz que trazia à luz a importância de Maria de Magdala. Basta lembrar as palavras de Rabano Mauro quando afirma que Cristo escolheu Maria de Magdala "apóstola da sua ascensão, premiando-a com uma digna recompensa de graça e de glória, e com privilégio de honra para ela que, por seus méritos, dignamente foi guia de todas as suas cooperadoras, tendo acabado de ser instituída como evangelista da ressurreição".
A voz deste abade de Fulda e arcebispo de Mainz do século IX permaneceu, no entanto, como a de muitos outros, apenas uma voz marginal. Podemos apenas esperar que isso não aconteça também com dois Papas como João Paulo II e Francisco, que restituíram para a Igreja latina a Maria de Magdala evangélica, discípula de Jesus, testemunha da ressurreição e, por isso, como a definiu o papa Francisco na catequese de 17 de maio de 2017, "apóstola da nova e maior esperança".
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Maria de Magdala - Instituto Humanitas Unisinos - IHU