08 Julho 2021
Thomas Paine e Thomas Spence viveram no século XVIII, e não compartilharam apenas o nome e a época, mas também o anseio de que o novo mundo que despontava garantisse o acesso de todas as pessoas a um sustento. Em torno desta ideia, escreveram artigos e elaboraram propostas.
Mais de dois séculos depois, o pesquisador Alberto Tena, um ativista a favor da renda básica, imerso nos debates sobre a sua pertinência e viabilidade, resgata alguns de seus textos no livro Los orígenes revolucionarios de la renta básica (Postmetrópolis, 2021).
Por meio da genealogia desta proposta, o autor consegue relocalizar o debate, extraindo-o da urgência do presente e relembrando o contexto de transição para outro modelo no qual essas primeiras defesas das diversas formas de renda básica foram publicadas e difundidas.
A entrevista é de Sarah Babiker, publicada por El Salto, 26-06-2021. A tradução é do Cepat.
Parece um pouco exótico começar a ler essas coisas nesse momento. Como você chega a esses autores?
Há tempo é consenso acadêmico que Paine e Spence estão na origem da ideia. Mas, concretamente, no último livro lançado por Van Parijs e Vanderborght, de 2017 [ Renda Básica: uma proposta radical para uma sociedade livre e economia sã], que já se tornou uma espécie de grande manual, falam da pré-história e a história da renda básica. É aí que contam um pouco do que eu desenvolvo no livro. Também em Capital e Ideologia, Thomas Piketty cita Paine. Este autor está presente em muitos lugares.
Os textos selecionados ressoam muito na atualidade. Qual é a contribuição desta perspectiva histórica, quando muitas pessoas pensam que a renda básica universal é uma ideia relativamente nova, uma ferramenta para enfrentar problemas do presente?
De fato, muitos daqueles que defendem a renda básica pensam que é uma ideia que surge nos anos 1980 e, muitas vezes, inclusive, a acusam de ser neoliberal, por surgir (conforme acreditam) justamente no momento em que há um retrocesso na hegemonia social-democrata e o neoliberalismo vai ganhando espaço. Uma ideia, dizem os críticos, que também se concentra muito no indivíduo e todas estas coisas.
Então, lançar um olhar para trás, além disso, em um momento histórico em que o capitalismo está começando a se assentar como forma dominante de organização social e misturado com a Revolução Francesa, com a independência dos Estados Unidos, é muito interessante. Implica ver como, naquele contexto de muita mudança e efervescência, de repente está surgindo uma ideia que – vista com os olhos de hoje – é a ideia de fundo das propostas de renda básica em geral, abordada como uma espécie de defesa da vida frente à propriedade, ou ao que agora chamamos de capitalismo, que naquele momento ainda não tinha esse nome.
Claro, porque quando pensamos na renda básica, existem aqueles que a compreendem ou defendem como reação à robotização ou à crise de emprego. Em sua avaliação, qual é a força de se recuperar este debate que, naquele momento, não era uma reação frente a alguns fatores que então não existiam, mas criação, proposta?
O que me atrai e fisga muito é justamente isso, a justificativa da renda básica em um momento no qual os conceitos de robotização ou desemprego não existem, a discussão está totalmente centrada na ideia teísta de que Deus deu a propriedade da terra como herança para todos, igualmente, e que, portanto, as propostas de renda básica ou capital básico de Paine é uma forma de nos devolver esta herança do comum, e a propriedade comum da terra. Olhar para esse passado traz uma perspectiva mais comunitária e menos individualista da renda.
Em um dos textos, Paine fala em igualdade vinculada à liberdade, apela aos franceses e sua revolução aos quais lembra que a desigualdade não é um problema de caridade, mas de justiça. São as mesmas palavras que, agora, são utilizadas para defender a renda básica.
Paine é um tipo muito interessante, que eu conheci graças a Sin Permiso, Daniel Raventós, etc., porque além de ele ter essas frases colossais que permanecem: “é justiça e não caridade, é questão de direito”, vive pessoalmente a independência dos Estados Unidos e escreve um dos textos chamado Senso Comum, que é o maior best-seller da história e se torna um personagem muito importante dentro do processo de independência.
Contudo, depois, vai para a França e também vive pessoalmente a Revolução Francesa. O que é curioso e interessante é que o texto Justiça Agrária, que é o mais conhecido, surge em meio aos debates muito profundos que existem durante a Revolução Francesa sobre o que fazer com a questão da propriedade e a redistribuição da riqueza.
Tudo isso, conforme você destaca, acontece em um momento de construção, de mudança de regime. Como retomar esses debates em momentos de reação, quando muitos esforços estão concentrados em não perder o que se conquistou, mais do que em transformar o que existe?
É difícil fazer paralelos muito claros, mas acredito que, sim, é um paralelo que é possível fazer ou que é interessante pensar assim. Aquele era um momento de transição entre dois mundos: o início da modernidade. E agora estamos em transição para outra coisa que ainda não está escrito o que pode ser. Penso que não é por acaso que, em tais momentos, surjam ideias semelhantes.
Também – digo isso no final do livro, no contexto de Paine e também de Spence, na Inglaterra – existem as leis dos pobres que, com todas as exceções do mundo, são sistemas semelhantes às rendas mínimas que agora podemos ter. Os autores as conhecem e, em muitos momentos, estão em conflito com elas.
Paine tinha sido administrador dessas leis dos pobres: estavam exercendo uma função dentro desse processo de transição, em apoio às pessoas que tinham ficado sem terras para poder produzir, após ser privatizadas. Daí a necessidade dessas leis que davam sustento às famílias pobres.
Vendo os problemas que surgiam, e inclusive os problemas que existiam nos Estados Unidos, chegar à América do Norte era chegar a um mundo inteiro aberto para todas as possibilidades, essa ideia aparece e parece razoável. Sendo assim, penso que existe um paralelo interessante em como é razoável, naquele momento, e é razoável agora pensar em que podemos ter uma ferramenta de seguridade com as características da renda básica.
Lendo o seu livro, lembrei-me de ‘Calibã e a Bruxa’, de Silvia Federici, e de como os cercamentos de terras despertam grande resistência na época, pois as pessoas entendem que esses espaços são comuns e que deles dependem. Quando Paine e Spence escrevem esses textos, a memória dos comuns está mais recente. Parece que mais de dois séculos depois, essa ideia foi diluída.
Este é um dos pontos centrais da razão pela qual me parece útil voltar a ler essas pessoas. Por exemplo, o texto dos direitos das crianças de Spence gira em torno da mesma ideia de como o direito à vida deve e pode ser garantido em uma sociedade. Fazem uma abordagem teológica, mas que é de sentido comum. Trabalham em muitos sentidos como uma defesa frente ao que está naquele momento, com a economia dominante. Parece-me algo muito forte.
Chamou muito a minha a atenção ver que o debate contra o processo de cercamento de terras de Federici – que retoma de Marx – é um dos inputs principais para começar a escrever e terminar introduzindo a ideia da necessidade de uma renda básica. Spence o cita como um problema local de Newcastle, que é uma cidade do norte da Inglaterra, apresentando-o como um problema muito restrito, mas que com a perspectiva histórica sabemos da importância que esse debate teve para a formação do que chamamos de capitalismo. Considero que esse é dos pontos que me levou a pensar que fazia sentido traduzir esses textos.
É um pouco chocante ver como a ideia do republicanismo: que a liberdade e a igualdade estão ligadas e que não há liberdade sem seguridade material, já tão evidente há dois séculos, pareça quase uma proclamação revolucionária, atualmente.
Uma das coisas que você percebe quando estuda o texto de Justiça Agrária é que foi escrito em um contexto de debate, quase 10 anos após o início da Revolução Francesa, quando conseguem retirar os jacobinos e começa o momento chamado de revolução termidoriana, quando ocorre uma série de retrocessos, um deles é o de voltar a ligar – na nova constituição que os termidorianos querem fazer – o direito ao voto, os direitos políticos com os direitos de propriedade, que era uma coisa que os jacobinos haviam suprimido.
Quando Paine está escrevendo Justiça Agrária, entra nesse debate dizendo: não, a revolução só pode continuar sendo a grandiosa revolução da qual participei, caso permaneça com a ideia de que sem direitos materiais, os direitos políticos não são possíveis e, portanto, a redistribuição em forma de capital básico da propriedade é fundamental para que todos tenham os mesmos direitos políticos. Mistura as duas coisas de uma forma muito intuitiva, de fato, não fala em direitos políticos e direitos econômicos porque é uma coisa muito posterior. Mas explica dessa maneira: não podemos desviar uma coisa da outra porque, caso contrário, os princípios da revolução vão cair.
É muito interessante, além disso, que nos debates sobre a renda mantidos por Paine e Spence, sobretudo pelo primeiro, há uma mesma estrutura: primeiro uma espécie de debate ético normativo sobre o quanto é positiva e filosoficamente justa a medida, mas depois o cara começa a fazer contas - como fizeram Daniel Raventós, Lluis Torrens e Jordi Arcarons -, vai ver os orçamentos da Inglaterra, pega o dinheiro nas projeções e explica para você como se implementa, a partir de paróquias locais, etc., que eram as que sustentavam, naquele momento, a ajuda aos pobres.
Também chama a atenção quando falam em dar uma quantidade de dinheiro aos maiores de 21 anos nos Estados Unidos, para que possam iniciar sua vida. Declara que começar tendo um pouquinho não é a mesma coisa do que não tendo nada. Algo que parece óbvio e, no entanto, ainda continuamos com a discussão da meritocracia por aqui.
O texto em que Paine fala sobre isso é escrito em 1775, mais de 20 anos antes de Justiça Agrária e antes da Revolução Francesa, quando estava há pouco tempo nos Estados Unidos. O dado de um décimo [que uma décima parte do herdado passe para o comum] aparece em Justiça Agrária, mas neste que assina como Amicus, fala como inglês recém-chegado aos Estados Unidos, que diz: estamos aqui fazendo uma revolução, vamos ganhar em breve a guerra da independência, como não ter uma proposta que diga que todos os jovens que começam a sua vida neste novo país devem receber um mínimo básico para que depois possam se desenvolver e fazer sua vida com liberdade [?].
O artigo é muito bom porque diz isso com total naturalidade. Diz: na Inglaterra, temos uma série de coisas que não estão funcionando muito bem. Mas já que viemos aqui e estamos fazendo uma coisa nova, vamos tentar realizar essa proposta.
Claro, mas agora e naquele momento, uma coisa são as ideias, os debates entre os intelectuais ou na academia. E outra coisa é quem as disputa.
O que estou estudando agora é como esses debates surgem nos Estados Unidos, uma coisa que também não costumamos lembrar é que Martin Luther King e o movimento pelos direitos sociais – uma parte do movimento se chamava movimento pelo bem-estar – tinham projetos de renda básica ou, caso se queira ponderar, medidas como garantia de renda em suas agendas. Depois, haviam também os técnicos ou os economistas que elaboravam propostas, mas esta via era defendida por meio da mobilização popular. Sobretudo o movimento afro-americano. Aparecem e dizem: estão deixando um quarto do país fora do bem-estar.
Também dentro do feminismo você vê que existe uma história de debates sobre este tema. Em inícios do século XX, também na Inglaterra, com o salário de dona de casa e todas essas discussões, surgem propostas de renda básica. De fato, eu acredito que o sujeito de mobilização são os movimentos mais fortes agora: o feminismo e o ecologismo. Penso que são dois grandes movimentos que poderiam incorporar em suas propostas formas de renda básica.
Contudo, há tensões na esquerda quanto a apoiar ou não a renda básica, no feminismo também há controvérsia, ao passo que no ecologismo acredito que está começando a surgir agora o debate sobre qual poderia ser a função de uma renda básica. Em minha opinião, essa deve ser a direção.
Agora que estamos na Iniciativa de Cidadania Europeia, parece que está sendo difícil conseguir as assinaturas, um milhão em toda a Europa. Assinar é rápido, por que acredita que existe esta espécie de desinteresse? Considera-se pouco possível? Ou pouco desejável?
Penso que as duas coisas. Em nível de não enxergar como algo desejável, penso que a epopeia do trabalho é central. Existe aí uma luta da renda básica que é cultural e é muito forte. Por exemplo, com os benefícios universais por filho ou as aposentadorias universais, as pessoas aceitam que se você é idoso, com certa idade, com muita ou pouca contribuição, tem direito a uma pensão. E temos as pensões não contributivas, que cobrem esse espaço, ainda que sejam muito baixas.
Haveria um certo senso comum para aceitar que se você é menor de idade também deveria ter a existência garantida. A tradução dos direitos das crianças é muito interessante neste debate. É Spence quem escreve, mas como se fosse uma mulher discutindo com um aristocrata, e aponta justamente o direito à existência das crianças como uma disputa básica que as mulheres precisam travar contra os proprietários da época. O mais difícil é defender esta ideia em relação aos que estão na idade de trabalhar, porque aí, sim, essa epopeia do trabalho opera de forma muito forte, com o tema dos pagamentos e outros.
Por isso, para mim, os debates sobre a renda básica são muito poderosos, pois tocam em pontos centrais da ideologia dominante. E sobre o financiamento, penso que o maior êxito das propostas feitas por Raventós, Torrens e Arcarons é que demonstraram que matematicamente é possível, o que ajuda a romper um pouco com esta ideia da impossibilidade, além do mais, considerando casos muito específicos, com números aproximados para nos dar uma ideia. Obviamente, é uma medida cara e complexa de ser realizada, mas acredito que houve muita luta para combater essa ideia de que não é financiável.
Para encerrar, quais focos dessa retrospectiva histórica considera que podem ser mais férteis para o nosso presente e futuro?
Voltando aos cercamentos, algo que os historiadores marxistas ingleses fazem – o grupo integrado por gente como Eric Hobsbawn, E. P. Thompson ou Christopher Hill –, nos anos 1960, é começar a reconstruir e pesquisar todos estes movimentos populares da Inglaterra, que são muito visíveis em fins do século XVII, a Commonwealth of England, Cromwell e outros. Resgatam estas tradições que são muito conhecidas como os Levellers, ou os True Levellers, que vêm de uma série de seitas protestantes que se opunham à igreja oficial daquele momento, a partir de noções comunitárias da terra. Encerro o livro com uma citação de um desses caras do século XVII que basicamente já promulga a ideia dos direitos humanos à propriedade comum da terra, e que daí também surja a ideia da renda básica me parece uma ideia importante, da qual não se fala.
Frente à acusação que se faz a essa ferramenta de querer dissolver o comunitário, a intenção que eu tinha ao resgatar esses textos é romper essa ideia. Como Milton Friedman fez sua proposta do imposto negativo, que é uma ideia semelhante à renda básica em muitos sentidos, há muitas pessoas que acusam a renda básica de ser uma proposta neoliberal porque surge nos anos 1980, mas não, há ideias de fundo que estão na base da renda básica que vêm de um mundo que buscava resistir à chegada do capitalismo e encontrar formas alternativas de vida e de existência que não fossem só trabalhar para outras pessoas, para o proprietário.
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“Há ideias de fundo na renda básica que vêm de um mundo que resistia à chegada do capitalismo”. Entrevista com Alberto Tena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU