07 Julho 2021
“O cenário é animador: o Novo Chile dificilmente será monocromático, com uma única língua oficial, uma única bandeira e uma única forma de organização e produção. Certamente, a Nova Constituição não resolverá todas as demandas históricas do Povo Mapuche, mas a comporta do hermético sistema político chileno começa a se abrir, iluminando novos caminhos para a paz, a justiça e o cuidado da Casa Comum”, escreve Nicolás Rojas Pedemonte, colaborador da Comunidade Jesuita de Tirúa, Arauco, Chile, é doutor em sociologia e diretor do Centro Vives SJ, da Universidade Alberto Hurtado, em artigo publicado por Jesuítas da América Latina, 02-07-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O Chile vive desde outubro de 2019 um processo de transformação política sem precedentes. Uma disruptiva mobilização cidadã, de massiva convocatória e níveis de violência coletiva inusitada contra a propriedade pública, pôs em xeque a ordem social e o sistema político herdado da ditadura civil-militar de Augusto Pinochet. A surpreendente mobilização não vinha de território apartados, como ocorreu em Chiapas, em 1994, nem de clássicas organizações sociais, partidárias ou sindicais, como se observou historicamente na política chilena, mas sim de organizações urbanas e juvenis com bandeiras independentes e causas multicolores, destacando entre elas o emblema mapuche, wenufoye e uma bandeira chilena negra com linhas brancas, representando o luto e necessidade refundacional. Desatada contra a alta de trinta pesos chilenos no transporte público, a mobilização amplificou-se, conectou diversas causas e questionou as raízes estruturais da desigualdade e as injustiças sociais do “milagre chileno”: “não são 30 pesos, são 30 anos” (de neoliberalismo e vigência da Constituição de Pinochet), foi a principal consigna da mobilização.
As demandas históricas do feminismo, do ambientalismo, dos setores populares por moradia digna, da classe trabalhadora por aposentadoria e condições laborais justas e as do Povo Mapuche pelo reconhecimento e autodeterminação, se articularam com transversalidade inédita no que se denominou “el estalido” ou “a revolta social”. A bandeira mapuche foi hasteada com destaque nas principais cidades do país, empunhada com orgulho, tanto por ativistas mapuches urbanos quanto por chilenos. O mártir mapuche Camilo Catrillanca, assassinado apenas um ano antes pelas forças especiais dos Carabineros do Chile, tornou-se um ícone da mobilização.
O movimento autônomo mapuche, implantado principalmente em comunidades rurais, manifestou simpatia pelas mobilizações urbanas e, embora não explicitamente se juntou a elas, identificou oportunidades políticas nesta nova solidariedade e ressonância de sua causa em todo o país. Geralmente, as organizações rurais Mapuche não apareciam nas manifestações, mas várias delas participavam nas ações de desmonumentalização (demolição das estátuas de ícones de colonização), enquanto as comunidades intensificavam suas demandas territoriais em suas localidades.
Em novembro de 2019, pouco menos de um mês após a rebelião social, com as medidas repressivas mostrando total ineficácia e temendo que o primeiro aniversário do assassinato de Camilo Catrillanca intensificasse os protestos, Governo e Parlamento concordaram com o desenvolvimento de uma constituinte. O acordo não reduziu mecanicamente a capacidade disruptiva do movimento de “explosão” ou das organizações autônomas rurais Mapuche, que apresentam uma agenda e atividade política de longa data. Setores importantes da mobilização urbana e mapuche viram o acordo com desconfiança, tanto pelos mecanismos propostos quanto pela falta de transparência e participação do cidadão na discussão. No entanto, a abertura de um canal institucional para a canalização do conflito, reduziu a massividade do protesto urbano e mobilizou várias organizações e lideranças Mapuche que viram uma oportunidade histórica de transformar as relações entre o Estado chileno e os povos indígenas [1]. Desde 1997, a agenda do movimento mapuche vem se desdobrando de forma complementar tanto no sistema político quanto na arena extrainstitucional, mas a partir do acordo para uma Nova Constituição esses caminhos tornaram-se mais claros e distintos.
Desde março de 2020, já em meio à pandemia, com um governo mais focado em restringir a livre circulação e fortalecer a militarização do território Mapuche do que em atender a população, a atividade do movimento Mapuche se intensificou, tanto em sua versão insurrecional nas áreas rurais do Wallmapu, bem como na arena institucional, em escala local e nacional. A atuação do movimento autonomista mapuche foi marcada pela necessidade de autossustentar o bem-estar e o cuidado, em um território negligenciado pelo Estado para a saúde, mas também pela resistência à investida do capital extrativista, principalmente florestal, dotado de imensos recursos policiais e econômicos destinados à consolidação de novas relações de subordinação, clientelistas e comerciais, com as comunidades. O confronto não se deu apenas entre militantes e policiais, mas também entre as organizações mapuche que lutam pela descolonização do território e as comunidades que querem trabalhar pelo capital extrativista. O conflito, principalmente na zona de Arauco, tornou-se comercializado com a injeção paternalista e clientelista de recursos empresariais, e a erosão progressiva do tecido comunitário e confronto interno [2].
Por sua vez, a disputa também foi marcada pelo cenário de transformação política institucional que o país enfrenta. No segundo semestre de 2020, os setores mais conservadores que se organizavam para deter eleitoralmente a Nova Constituição, exacerbaram – sob a proteção do atual governo – seus discursos odiosos e racistas contra a causa mapuche, ícone e emblema do levante popular que pavimentou o caminho para uma nova Carta Magna. No entanto, esses setores foram sucessivamente derrotados na arena eleitoral pelo clamor dos cidadãos por um Novo Chile e por novos atores políticos fortemente enraizados em seus territórios, entre eles as organizações e lideranças Mapuche que se envolveram na disputa institucional. Após o plebiscito que aprovou a elaboração de uma Nova Constituição, o movimento político institucional mapuche conseguiu capitalizar as oportunidades políticas abertas pelo surto. Participaram ativamente da discussão sobre os mecanismos de representação dos povos indígenas na Convenção Constitucional, conquistando 17 cadeiras reservadas aos povos indígenas de um total de 155 constituintes, sendo 7 deles mapuches.
Apesar desta proporção sub-representada dos povos originários e do Povo Mapuche, supõe-se um antes e um depois na política chilena. A recente eleição popular dos delegados constituintes configurou um cenário propício para que as demandas históricas do Povo Mapuche se consagrem em direitos e reconhecimento constitucional. Os sete constituintes mapuches eleitos (dos 39 que se candidataram) são históricos militantes do movimento autonomista, contam com larga experiência e vinculação com seus territórios, e mostram grande afinidade ideológica com a maior parte de uma assembleia, onde os independentes, o mundo progressista, a esquerda e a social-democracia são ampla maioria.
Em suma, o povo Mapuche hoje mostra capacidade política, tanto nas “ruas” como na arena institucional e é de se esperar que isso se traduza na consagração de um novo status político para si. Nos próximos meses, seus representantes políticos estarão elaborando a primeira Constituição do mundo escrita por uma assembleia inclusiva, tanto com paridade de gênero quanto com representação indígena. E tudo indica que as organizações territoriais mapuche não cessarão, apesar da pandemia e de suas restrições, de levantar suas vozes. O cenário é animador: o Novo Chile dificilmente será monocromático, com uma única língua oficial, uma única bandeira e uma única forma de organização e produção. Certamente, a Nova Constituição não resolverá todas as demandas históricas do Povo Mapuche, mas a comporta do hermético sistema político chileno começa a se abrir, iluminando novos caminhos para a paz, a justiça e o cuidado da Casa Comum.
[1] Tricot, V. y Bidegaín, G. (2021). «Escaños reservados para los mapuche en la Convención Constitucional: una rendija institucional gracias a la revuelta». Artigo para o Anuario del Conflicto Social: Territorio Mapuche 2020. Centro Vives UAH, Observatori del Conflicte Social de la U. de Barcelona y la Comunidad Jesuita de Tirua-Fundación Lican. Disponível neste link.
[2] Uma lógica similar de ingerência do capital externo poderia estar se instalando no território mapuche da Província de Malleco, onde a Polícia de Investigações, PDI, denunciou a presença de economia ilegal informal em torno da plantação de cannabis. Em territórios assim de excluído e vulneráveis, a injeção de recursos não orientados à promoção e ao exercício de direitos, sejam da grande capital ou do crime organizado, colocam em risco o bem-estar e a paz social.
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O povo Mapuche como sujeito político no Novo Chile - Instituto Humanitas Unisinos - IHU