03 Julho 2021
Mariana Mazzucato deu a si mesma uma missão. Não é apenas o título de seu livro Mission Economy. A Moonshot Guide to Changing Capitalism (Penguin Books). Sua missão começou há muito tempo, quando era uma jovem estudante nos Estados Unidos - filha de italianos em Nova Jersey, por motivo de trabalho (seu pai Ernesto era físico no Plasma Physics Laboratory, da Universidade de Princeton) - e começou a se preocupar com o impacto da tecnologia nos trabalhadores menos qualificados.
A reportagem-entrevista é de Marco Girardo, publicada por Vida Nueva Digital, 02-07-2021. A tradução é do Cepat.
“Enquanto frequentava a universidade, foi fundamental a minha aproximação com a atividade sindical nos Estados Unidos dos anos 1980. Deixei a Itália, em 1973, em uma década na qual a juventude estadunidense de esquerda, depois do Vietnã, interessava-se pelo que acontecia para além de sua casa, buscando construir um mundo melhor. Interessava-se pela guerra civil na Nicarágua ou a situação em El Salvador. Poucos, especialmente entre os jovens, fixaram-se nas profundas fraturas que estavam sendo criadas no tecido social dos Estados Unidos. Houve muitas greves, não só pelas horas de trabalho, mas pelas condições de vida em geral. Penso, por exemplo, nos latinos que trabalhavam nos hotéis de Boston”.
Após se formar em História e Relações Internacionais, pela Universidade Tufts, Mariana fez um mestrado e começou um doutorado em Economia, na New School for Social Research. “Era 1990 e eu continuava estudando a atividade sindical e me perguntando sobre as primeiras consequências da tecnologia no emprego”.
Algo estava mudando em um sistema econômico que havia perdido seu poder inovador e que já não conseguia encontrar o equilíbrio entre Estado e Mercado, motivo pelo qual, a partir de então, geraria sérias desigualdades, cidades poluídas, marginalização de grandes setores da população e, em muitos países desenvolvidos, crescimento lento e insustentável ou até mesmo estagnação. A partir desse momento, a missão de Mariana Mazzucato se concentrou em repensar o capitalismo. De forma radical.
E redescobrir quem realmente gera “valor” em uma economia moderna, indo à raiz teórica do conceito, por meio do binômio pesquisa e trabalho de campo: “A pandemia está nos ensinando como é importante repensar, por exemplo, a relação entre o público e o privado ou entre Estado e Mercado, que precisam ser simbióticos, não opostos, nem sequer de mera substituição pelo Estado lá onde o setor privado não gere lucros ou exista uma denominada falha de mercado. Como escreveu Karl Polanyi, os mercados estão enraizados nas instituições políticas e sociais. São o resultado de processos complexos, de interações entre os diferentes atores da economia, incluído o Estado. Não se trata de uma questão normativa, mas estrutural: como nascem os novos sistemas socioeconômicos orientados ao desenvolvimento social. O bem público se constrói através do planejamento conjunto, recuperando o papel dos governos na criação de valor econômico e social. Justamente o contrário do que está acontecendo com as grandes farmacêuticas, expressão de um sistema econômico parasitário, que extrai valor social ao mesmo tempo em que produz lucro econômico”.
The entrepreneurial State foi o seu primeiro livro e o mais conhecido, duramente criticado por uma leitura distorcida por um viés estatista. Mazzucato segue combinando dimensões teóricas e empíricas e é considerada uma das economistas mais influentes a nível internacional.
Por isso, é consultora de governos e organismos públicos. Em Mondragón, Espanha, acompanha o trabalho de uma das maiores cooperativas europeias, com 87.000 trabalhadores. “A cooperação é um modelo que é preciso estudar em profundidade, por sua capacidade de gerar o bem comum”, aponta.
De volta à Europa e com quatro filhos, Mariana se tornou professora de Economia da Inovação e o Valor Público, no University College London, em 2017, e fundou e dirigiu o Institute for Innovation and Public Purpose. Em 2019, recebeu o Prêmio Madame de Staël de Valores Culturais de Todas as Academias Europeias. No ano seguinte, ganhou o Prêmio John Von Neumann.
No início de abril, o presidente da República, Sergio Mattarella, concedeu-lhe a honra da Grande Ordem do Mérito da República Italiana.
Conversamos por telefone, em inícios de março, quando Londres estava fechada. Mariana ocasionalmente publica algumas fotos da cidade deserta nas redes sociais.
A crise sanitária e social provocada pelo coronavírus também gera um compromisso renovado de repensar o nosso modelo de desenvolvimento em que, com frequência, “os riscos sãos sociabilizados e os lucros privatizados. A crise financeira global, que iniciou em 2008, já acarretou grandes críticas ao sistema capitalista moderno por ser muito “especulativo” e por premiar os “buscadores de renda”, em vez dos “criadores de riqueza”. E permitiu o rápido crescimento das finanças, favorecendo que o comércio especulativo de ativos financeiros seja mais recompensado do que os investimentos que conduzem a novos negócios reais e à criação de emprego”, explica.
Os debates sobre o crescimento insustentável têm se tornado cada vez mais frequentes nos últimos anos, suscitando preocupação não só com a taxa de crescimento, mas também com a sua direção. Uma séria reforma deste sistema “disfuncional”, para Mazzucato, incluiria uma mistura de medidas, como tornar o setor financeiro mais concentrado nos investimentos a longo prazo, mudar a estrutura de governo das empresas para que sejam menos dependentes dos preços das ações e os resultados trimestrais, tributar mais fortemente as transações especulativas e limitar os excessos nos salários dos altos executivos.
“Mas estes delineamentos e propostas não alcançarão uma reforma real do sistema econômico, enquanto não penetrar no debate sobre os processos com os quais se cria valor econômico. Precisamos ir às bases do modelo de valor, padronizar toda a cadeia e analisar como as grandes empresas distribuem ou criam valor. Uma gigante como a Pfizer é um bom caso de estudo neste sentido. A Pfizer conseguiu produzir uma excelente vacina em pouco tempo, distribuindo valor, mas com operações de buyback (recompra de ações próprias) para pagar menos impostos. O valor é extraído financeiramente do sistema econômico”.
Dito de outra forma: “Para conseguir uma mudança real, precisamos ir além dos problemas individuais e desenvolver um cenário que nos permita dar forma a um novo tipo de economia, uma que funcione para o bem comum”.
Não basta medir e incluir no que chamamos “crescimento” o valor implícito do trabalho não remunerado do cuidado dos outros, da educação ou da comunicação gratuita pela internet. Nem basta tributar a riqueza ou medir o bem-estar. “O maior desafio é definir e quantificar a contribuição coletiva para a criação de riqueza, para que seja menos fácil que a extração de valor passe por uma criação de valor”, explica a professora.
Se a economista ítalo-americana contribuiu para reabilitar o papel do Estado com capacidade de gerar valor, o passo seguinte é vincular os sistemas de bem-estar e a aceleração tecnológica: “Gostaria de dedicar o próximo à combinação do tema do cuidado com o da inovação. Colocar a inovação no centro do Estado de bem-estar, passar do Estado de bem-estar ao Estado de inovação. Unir estes dois conceitos a nível cultural, dado que, por exemplo, não há afastamento do bem comum no âmbito digital. E para isso é necessário voltar a olhar para a produção, o que cada um faz no mundo da saúde, no da energia, na educação e inclusive na economia espacial”.
Um desafio para uma mente feminina, capaz de pensar em diferentes dimensões. No pós-guerra, encontramos um radicalismo de pensamento semelhante, no campo filosófico, em pensadoras como Hannah Arendt, Simone Weil e María Zambrano, mulheres protagonistas do século XX. Entre os economistas de referência de Mariana estão os clássicos, de Ricardo a Adam Smith, de Schumpeter a Marx.
“Economistas que pensaram tanto na criação de valor como em sua redistribuição juntas, diferente do que ocorrerá no paradigma neoclássico, onde o valor se reduz à dimensão subjetiva do preço”, aponta.
Entre suas referências, não poderiam faltar os nomes de várias mulheres economistas, como Elinor Ostrom ou a mais próxima dela, Carlota Pérez. Também há ecos de Jane Austen e Rosa Luxemburgo em seus livros e em suas conferências públicas.
“Ter uma visão feminina na economia não é suficiente e não é preciso ser só mulheres. Trata-se de estender essas habilidades típicas do cuidado das crianças, dos idosos e da família à necessidade de cuidar da comunidade, do trabalho e da própria Terra, também na análise e na proposta teórica”.
São os temas desenvolvidos em nível antropológico e teológico pelo Papa Francisco nas encíclicas Laudato Si’ e Fratelli Tutti. “Uma referência profética para compreender a diferença entre o bem público e o bem comum. E para a necessária mudança de paradigma econômico”, explica Mazzucato. Ou de narrativa, como diria outro Prêmio Nobel de Economia, Robert Shiller.
Sim, porque a economia também é composta por histórias. Ou melhor, existem histórias que podem influenciar na economia. É preciso coragem para reconhecer estas boas histórias e contá-las com clareza.
Mariana Mazzucato conta que “o presidente John F. Kennedy, que esperava enviar o primeiro astronauta estadunidense à lua, usou uma linguagem corajosa ao falar da necessidade de que o Estado tivesse uma missão. Resolver os problemas sociais de hoje é mais difícil do que ir à lua, mas nada nos impede de tentar. Podemos começar a encontrar respostas para tentar reestruturar o capitalismo, para que aborde problemas concretos e torná-lo mais inclusivo e guiado pela inovação. Os objetivos para os governos já deveriam estar claros: são os 17 Objetivos da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas para um desenvolvimento verdadeiramente sustentável”.
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Mariana Mazzucato: “O Papa é uma referência profética sobre a mudança de paradigma econômico” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU