06 Novembro 2018
“A escolha do modelo de mercado é hoje a questão central para os cristãos. Os mercados não são todos iguais. Existe um mercado que reduz as desigualdades sociais e um que as exacerba. O primeiro é chamado civil, porque expande os espaços da civitas. O segundo é o mercado incivilizado que exclui e conserva as "periferias existenciais" ao longo do tempo”, escreve Stefano Zamagni, em artigo publicado por Vita Pastorale, novembro de 2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
O recente Magistério social do Papa Francisco, que se enquadra no âmbito da Doutrina Social da Igreja inaugurada por Paulo VI com a encíclica Populorum progressio (1967), caracteriza-se por uma dupla insistente marca. Por um lado, pela ênfase colocada na fragilidade dos mecanismos da economia de mercado. Por outro, pela condenação da arrogante invasão das finanças sobre a ação econômica.
Um relatório recente da OCDE evidencia que o crescimento econômico em nível mundial, nas últimas três décadas, ao mesmo tempo em que aumentou de uma forma inacreditável o PIB e a riqueza, aumentou a taxa de fragilidade de grandes segmentos da população. Isto é devido ao fato de que a entrada de novas tecnologias no processo de produção dilata o espaço das possibilidades de inserção dos trabalhadores, mas apenas daqueles em condição de poder desfrutar das novas oportunidades.
É por isso que o Papa Francisco não pode deixar de criticar a famosa teoria "do gotejamento", (trickle-down economics) tão cara ao pensamento neoliberal. A tese é claramente apresentada pelo aforismo segundo o qual "uma maré alta levanta todos os barcos". Como se dissesse que basta se preocupar em ampliar o bolo do PIB, porque depois haverá benefício para todos. Mas, em vez disso, quando a maré sobe, os barcos atolados na lama do fundo do mar ficam submersos. Hoje, a maré alta só levanta os iates!
Uma segunda grande fragilidade do mecanismo de mercado foi trazida à luz por dois Prêmios Nobel de economia, George Akerlof e Robert Shiller. A tese central de seu livro (2016) é que a realização de transações de mercado tende, por si só, a proporcionar fortes incentivos para buscar também benefícios através do engano e manipulação, especialmente nos mercados financeiros. Escrevem os dois prêmios Nobel: "Raramente mercados livres e não regulados premiam o heroísmo (sic!) daqueles que se abstêm de tirar partido das fraquezas psicológicas ou das assimetrias de informação do consumidor. A concorrência faz com que os gestores que se autodisciplinassem dessa maneira tenderiam a ser substituídos por outros com menos escrúpulos morais”.
Quando, então, Francisco insiste na urgência de agir para mudar as regras do jogo econômico, colocando no centro a pessoa humana, não faz um discurso piedoso-sentimental. Pelo contrário, demonstra compreender a natureza profunda do problema melhor do que muitos dos chamados especialistas.
A uma terceira grande lacuna no mecanismo de mercado, Francisco dedica atenções crescentes. Trata-se da progressiva desresponsabilização dos sujeitos econômicos. Sabe-se que uma ordem social, como o mercado, se quiser se conservar no tempo precisa de uma organização que, por um lado, permita antecipar as escolhas de quem trabalha nela e, pelo outro, permita prever as consequências que delas derivam. É por essa razão que o comportamento inspirado pelo princípio da dádiva como gratuidade cria sérios problemas para as organizações empresariais. Como podem estas neutralizar o impacto desestabilizador dos comportamentos inspirados pela gratuidade? A estratégia mais comum é aumentar a distância entre a ação e suas consequências, até o ponto além do qual não pode ir o juízo moral.
A ação torna-se de adiaforia e, como tal, avaliada em relação a parâmetros técnicos, não morais. Uma vez transformada em adiaforia, a ação não é mais suscetível ao juízo de responsabilidade. O sujeito é instruído sobre o fato de que sua ação é um ato moralmente "neutro". E como tal, não dá origem a nenhum juízo de responsabilidade. A organização torna-se assim uma máquina que serve a tranquilizar aqueles que fazem parte dela. A responsabilidade não pertence a ninguém, porque a ação "aqui" (em uma determinada parte da organização), e o efeito "lá" (em outra parte da organização), são tão distanciadas entre si a ponto de entorpecer o sentido de culpa.
É o próprio conceito de responsabilidade que perde toda saliência na atualidade, assim como todo poder de vínculo. Essa realidade da organização do mercado corresponde à noção de "estrutura de pecado", que foi introduzida por João Paulo II na Sollicitudo rei socialis (1987).
Passo para a segunda marca. A boa finança permite agregar economias para usá-las de maneira eficiente e alocá-las aos trabalhos mais lucrativos. Sem esse encontro, a criação do valor econômico de uma comunidade permaneceria no estado potencial. No entanto, as finanças atuais escaparam amplamente do nosso controle. Os intermediários financeiros geralmente financiam apenas aqueles que já têm dinheiro. A grande maioria dos instrumentos de derivados construídos potencialmente para garantir benefícios de segurança é, ao contrário, comprada e vendida em prazos muito curtos, por motivos especulativos com o resultado paradoxal de colocar em risco a sobrevivência das instituições que os têm em suas carteiras. Outro elemento de instabilidade perigosa é a orientação dessas organizações para um único objetivo: a maximização dos lucros.
Não só isso, mas foi tolerado que se difundisse, entre as pessoas comuns, a crença segundo a qual a liquidez dos mercados financeiros seria um substituto perfeito para a confiança, bem como para a honestidade e a integridade moral. Ao mesmo tempo, considerando que a avaliação do mercado de ações é tudo que o investidor deve considerar para suas decisões, resulta que o crescimento da renda pode ser facilmente baseado na dívida. Foi assim distorcido o modo de conceber o nexo entre renda de trabalho e renda da atividade especulativa. Se a financeirização for forçada bastante – levou-se a crer - não há necessidade de as famílias recorrerem à poupança para suas próprias necessidades. Ao se dedicar à especulação, elas podem obter por outro caminho o necessário. A financeirização está transformando o poupador tradicional em um especulador.
Nunca, como no caso da evolução das finanças nas últimas décadas, ficou tão claro que os mercados de forma alguma tendem espontaneamente à concorrência, mas ao oligopólio. O gradual afrouxamento de regras e formas de controle levou progressivamente à criação de um oligopólio de intermediários bancários grandes demais para falir e complexos demais para serem regulados. O sono dos reguladores produziu um sério problema de equilíbrio de poderes para a manutenção da própria democracia.
A escolha do modelo de mercado é hoje a questão central para os cristãos. Os mercados não são todos iguais. Existe um mercado que reduz as desigualdades sociais e um que as exacerba. O primeiro é chamado civil, porque expande os espaços da civitas. O segundo é o mercado incivilizado que exclui e conserva as "periferias existenciais" ao longo do tempo.
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Uma economia que mata - Instituto Humanitas Unisinos - IHU