19 Junho 2021
"Não se pode viver sem desejar, mas se pode, aliás, se deve viver, orientando o desejo. O desejo orientado e elevado é chamado de aspiração", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Teologia Moderna e Contemporânea da Universidade San Raffaele de Milão, e ex-professor de História das Doutrinas Teológicas da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 17-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo as maiores tradições de sabedoria da humanidade, a proliferação do desejo caracteriza as pessoas instáveis e imaturas à mercê de desejos sempre novos e imprevisíveis, enquanto o sábio tem poucos ou nenhum desejo. Sócrates, por exemplo, ao passar pelo mercado de Atenas, dizia alegremente a si mesmo: "De quantas coisas eu não preciso!" O tolo adora fazer compras, mas o sábio evita isso de bom grado. O desejo nesta perspectiva é uma doença da alma, não é por acaso que a etimologia já designa uma falta. E se você pensar bem, há alguma verdade nessa posição: quando estamos em paz conosco mesmos? Quando não há desejos. Mas assim que surge o desejo, o equilíbrio é quebrado e aparece a instabilidade. Alguns lembram das palavras da rainha má no espelho para conseguir o oráculo? "Espelho, espelho meu (em italiano, espelho dos meus anseios, NT), existe alguém mais bela do que eu?" Pois bem, o desejo é muitas vezes dito como anseio e desperta a ganância, a cobiça, a avidez, nos leva a agarrar com as mãos e os olhos. Quanto ao seu conteúdo, é bastante previsível, pois quase sempre e só é endereçado para riqueza, prazer e poder.
No entanto, a instabilidade nem sempre é negativa. Aliás, é só graças a ela que se iniciam os processos, a começar pela vida, cuja dinâmica consiste na busca do equilíbrio para depois rompê-lo de novo de acordo com uma dinâmica processual implementada pela necessidade e pelo desejo. E o que é o amor pelo estudo, pela pesquisa, pelo empenho social, pela prática espiritual, senão precisamente um desejo que busca a realização? E o que é o próprio amor? O desejo é, portanto, ambíguo, sua presença é necessária para a vida, mas também pode envenená-lo. E dessa ambiguidade básica surgiram dentro do pensamento três posições diferentes em relação ao desejo: aumento, extinção, orientação.
O aumento do desejo que se expande em uma miríade de desejos é o que nos propõe a sociedade em que vivemos chamada "dos consumos" e que nos torna "consumidores", sujeitos que nutrem os mais variados desejos dependendo do momento, dos encontros, dos caprichos, das vontades, das estações e sobretudo das modas, porque o ego consumista que se acredita senhor de seus desejos está, na verdade, à mercê das estratégias do desejo concebidas por outros.
A segunda posição visa extinguir os vários desejos e com eles também o desejo, como o estóico Epiteto afirmava: "Você deve extinguir completamente o desejo". Trata-se de um ensinamento não muito diferente do da escola epicurista rival, visto que Epicuro defendia a chamada ataraxia ou imperturbabilidade, em sua opinião a única garantia de tranquilidade interior, enquanto bania a proliferação dos desejos como uma doença perigosa.
Muitos padres da Igreja foram igualmente inimigos do desejo, Orígenes, por exemplo, chegou a emascular-se aos dezoito anos de idade, tendo interpretado literalmente as palavras de Jesus: "Há eunucos que se fizeram tais para o reino dos céus", nem Máximo, o confessor estava distante quando almejava "o estranhamento voluntário da carne graças à completa circuncisão de seus movimentos naturais".
A Regra de São Bento prescrevia, aliás, prescreve: “Quanto à nossa vontade, sabemos que estamos proibidos de cumpri-la; de fato, a Escritura diz: Não siga os seus desejos”. Também podemos recordar a prática de indiferença de Inácio de Loyola, o fundador dos Jesuítas: “É necessário tornarmo-nos indiferentes a todas as coisas criadas para que, da nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que breve”.
O Buda também se coloca nesta perspectiva, pois identificava a origem do sofrimento no "anseio" e, consequentemente, na erradicação do anseio a chave para a superação do sofrimento. De acordo com a tradição budista, quando ele atingiu a iluminação, pronunciou estas palavras relatadas pelo Dhammapada: “Por incontáveis vidas eu vaguei procurando em vão o construtor da casa do meu sofrimento. Mas agora eu te encontrei, construtor de nada de agora em diante. Tuas tábuas foram removidas e a viga do cume quebrada. O desejo está todo extinto; meu coração, unido ao incriado”. Entre os modernos podemos lembrar Schopenhauer e Simone Weil que propôs e implementou a descriação.
Por fim, existem filosofias e espiritualidades que se propõem a orientar o desejo de maneira diferente, cultivando um desejo alternativo, mas não menos intenso. Elas propõem não indiferença, mas cuidado, não adequação ao presente, mas utopia de um futuro diferente. Aqui devem ser mencionados, em primeiro lugar, Platão e Jesus, para os quais desempenha um papel decisivo o amor, que por definição é desejo. Em particular, Jesus disse: “Eu vim lançar fogo à terra, e que tenho eu a desejar se ele já está aceso?”, e ao mesmo tempo proclamava: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”, ampliando ao máximo o desejo.
Em perfeita continuidade com o espírito da profecia hebraica, Jesus foi um grande despertador do desejo. De forma um tanto surpreendentemente nesta linha, encontramos Leopardi, que escreveu em seu Zibaldone: "A vida acaba quando o amor próprio perdeu o seu ressort", termo francês que significa “ímpeto” e, em sentido translado, “energia”. Poucos dias depois, prosseguia: "A esperança é uma paixão, um modo de ser, tão inerente e inseparável do sentimento da vida, isto é, da própria vida, como o pensamento, e como o amor de si mesmo, e o desejo do próprio bem. Vivo, portanto, espero, é um silogismo perfeitamente correto”. Nós poderíamos dizer: vivo, portanto, desejo, é um silogismo perfeitamente correto. Não se pode viver sem desejar, mas se pode, aliás, se deve viver, orientando o desejo. O desejo orientado e elevado é chamado de aspiração.
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Vivo, portanto, desejo. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU