A força sedutora das 'margens'

Foto: cathopic

18 Junho 2021

 

“Vamos para a outra margem!” (Mc 4,35). 

 

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 12º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de Marcos 4,35-41.

 

Eis o texto.

 

O evangelho deste domingo fala de movimento, de deslocamento em direção a outras perspectivas, de saída dos próprios espaços de proteção e segurança, para acolher outras vidas, outras histórias, abrir-se ao novo, ao diferente. Que significa, para cada um, a outra margem? Desde logo, não há resposta padrão; ela é muito pessoal, como é pessoal a adesão à pessoa de Jesus. Convite pessoal e comunitário, de relação amistosa profunda, para encontrar n’Ele nossa segurança e, assim, continuar a vida com mais inspiração. É uma grande riqueza ir às margens de nossos irmãos, não como turista, mas como peregrinos.

 

Jesus convida a todos nós a cruzar o mar em direção à outra margem. Estamos tão acostumados em nossa margem rotineira que não é fácil arriscar e fazer a travessia; nem sequer estamos convencidos de que exista outra Margem, mais além das comodidades e das seguranças que buscamos. No entanto, nossa meta está do outro lado do risco e do perigo. A falta de confiança continua sendo a causa de não nos atrevermos a dar o passo; resistimos acreditar que Ele vai em nossa própria barca.

 

 

 

“A nossa fé não é uma fé laboratório, mas uma fé caminho, uma fé histórica. Deus se revelou como história, não como um compendio de verdades abstratas... Não é preciso levar a fronteira à casa, mas viver em fronteira e ser audazes” (Papa Francisco). Entrar na barca com o Mestre significa “embarcar” na vida d’Ele, correndo riscos de sofrer rejeições, abalos e tempestades.

 

O contexto social pós-moderno desencadeou uma complexa turbulência em todos os domínios da vida, gerando novos desafios para a adaptação do ser humano a seu ambiente. As pessoas sentem-se cada vez mais ameaçadas, por realidades externas e internas, a sensação de insegurança aumenta e torna-se mais indefinida; por conseguinte, os níveis de ansiedade e angústia são cada vez mais elevados, conduzindo a verdadeiras situações de ruptura e desespero.

 

Reforçam-se e elevam-se os gradeamentos, mudam-se e sofisticam-se as fechaduras, as pessoas armam-se, as sociedades ficam cada dia menos seguras e estáveis. É um círculo dramático e infernal cujo resultado é o desenvolvimento crescente de uma espiral de medo, de violência, de stress..., tornando as pessoas insensíveis, passivas e conformadas. É com esta situação que temos de aprender a lidar e a conviver. De fato, a pressão rotineira vivida cotidianamente nos diferentes ambientes demanda uma enorme competência e uma capacidade de adaptação diante de situações altamente adversas, agressivas e até violentas.

 

Como seguidores(as) de Jesus que bebemos das fontes do Evangelho, duas são as “margens” que nos seduzem, nos mobilizam e nos fazem chegar onde outros não chegam ou encontram dificuldades para chegar; estas duas “margens” constituem a originalidade de nossa vivência cristã e de nossa missão no mundo de hoje: a “margem” da interioridade e a “margem” da universalidade. São “margens” que nos humanizam, pois nos mobilizam a “descer” em direção àquilo que é mais humano, em nós e na realidade que nos interpela.

 

 

Em primeiro lugar, “passar para a outra margem” nos evoca o chamado a assumir um deslocamento social e religioso que tem um componente de risco e mudança. Implica sair do conhecido, abandonar as próprias seguranças; mudar de lugar, geográfico e/ou existencial, ir aonde ainda não temos ido e enfrentar uma travessia incerta; e, por último, atrever-nos a entrar em contato com o diferente e desconhecido e aceitar ser transformados. Esse desafio hoje nos sacode e pode gerar em nós inquietude e desassossego, como a tormenta que ameaça os discípulos depois de entrarem na barca.

 

Precisamos também fazer a travessia em direção à outra margem de nós mesmos, aquela que não costumamos visitar. Descobrir nosso tesouro escondido: a quantidade de qualidades e recursos que ativamos com medio-cridade, ou simplesmente não usamos. Porque, se nos níveis mental e emocional tendemos a nos instalar, no mais profundo, no entanto, nos habita o desejo do “mais”, que nos impulsiona, a partir de dentro, numa expan-são aberta a horizontes cada vez maiores.

 

A “outra margem” é a novidade do presente, a descoberta incessante, a amplitude sem limites. Mas só poderemos começar a cruzá-la se estivermos dispostos a deixar nossos caminhos trilhados e nos entregarmos com docilidade à Vida – outro nome de nosso “mestre interior”. O primeiro desejo de chegar à outra margem nasce de dentro, do coração, que entende sua missão como busca e peregrinação interior, como um colocar-se em movimento... Sair da margem conhecida, “velha”, rotineira... para encontrar a nova margem: lugar de relação, de questionamento, de criatividade, de encontro com o novo e diferente…

 

 

 

A outra margem, lugar provocador, incitador, que desperta curiosidade... Aqui brotam as grandes experiências religiosas, as intuições, projetos, ideais vitais. Caminhar para a outra margem é sair do centro, da segurança, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de caminhar para os “confins da terra”, para regiões desconhecidas em seu próprio interior... Precisamos, para isso, ativar nossa “inteligência espiritual”, como a capacidade que nos permite acessar e conectar com essa dimensão profunda, à qual nos referimos com o termo “espiritualidade”.

 

Aderir à pessoa de Jesus, portanto, é arriscar-nos à travessia do mar da vida; não estamos sozinhos; talvez nos encontramos perdidos em alto mar esperando resgate e não somos capazes de perceber que no interior de nossa barca há uma presença que nos pacifica. Ao chegarmos à outra margem descobriremos uma experiência pessoal e comunitária de fé na pessoa de Jesus, que nos ressuscita por dentro, que nos injeta vida nova e alegria profunda.

 

No entanto, é na vivência da adversidade que se dá o encontro das oportunidades para o crescimento. Muitas vezes, são justamente as circunstâncias adversas, extremamente difíceis, que despertam na pessoa as condições mais criativas, que enriquecem suas possibilidades práticas de atuar sobre a realidade em que vive e transformá-la ou transformar-se. Isto quer dizer que, diante da adversidade, a pessoa mobiliza um conjunto de recursos dos quais não tinha consciência anterior, mas cujo efeito é potencializa-dor de crescimento e enriquecimento pessoal.

 

Para meditar na oração:

 

 

 

Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a buscar dentro de nós mesmos a razão da nossa existência.

 

- A nossa vida é um êxodo, um sair constante de uma realidade para entrar em uma outra realidade nova.

 

O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.

 

- Existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, pensamentos por experimentar e experiências por aceitar; falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...

 

- No “mapa espiritual” de nosso interior ainda existe uma “terra desconhecida”, que desperta interesse à vida, suscita curiosidade, nos põe a caminho... Grandes surpresas interiores estão à nossa espera, e a capacidade de continuar buscando é que dá sentido ao esforço e vigor à vida.

 

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