‘Redescobrir Jesus de Nazaré: o que a pesquisa sobre o Jesus histórico esqueceu’, segundo James Dunn

O Sermão do Mar da Galiléia, pintura de Jan Brueghel (Fonte: Wikimedia Commons)

24 Julho 2021

 

“A fé não está em conflito com a erudição e muito menos é irreal e suspeita... talvez seja completamente o contrário, e uma via muito brilhante para apoiar esta posição é a que James Dunn, este brilhante autor, nos convida a considerar nestas páginas”, escreve Alfonso Pérez Ranchal, em resenha do livro Redescubrir a Jesús de Nazaret: lo que la investigación sobre el Jesús histórico ha olvidado, publicada por Religión Digital, 15-06-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis o artigo.

 

“Nestes capítulos, argumentei que a pesquisa sobre o Jesus histórico foi malsucedida, em grande medida, porque os pesquisadores anteriores começaram seus trabalhos do lugar errado, ou seja, iniciaram de premissas errôneas e contemplaram os dados importantes em uma perspectiva errada.” (James Dunn).

 

Em uma resenha anterior, que eu realizava sobre este autor, iniciava dizendo que James Dunn era, mundialmente, um dos maiores eruditos do Novo Testamento, e que era reconhecido por muitos como o maior especialista em Paulo de Tarso. Claro que ainda é, mas durante este tempo em que eu lidava com uma resenha e outra, tristemente nos deixou. O falecimento deste reconhecido autor ocorreu no último mês de junho de 2020.

 

Em um artigo por ocasião do falecimento de Dunn, o teólogo Xabier Pikaza dizia o seguinte: “Acaba de falecer (26-06-2020), e com ele desaparece um dos grandes exegetas, historiadores e teólogos do fim do século XX e início do XXI. Era um erudito universal, um pensador perspicaz, um grande teólogo, respeitoso, ecumênico, tradicional e moderno, no melhor sentido da palavra (...). Foi e continuará sendo um dos pesquisadores bíblicos mais significativos, do ponto de vista científico e da fé”.

 

Ser cientista e crente para alguns é como óleo e água, o que não deixa de ser um preconceito no sentido negativo do termo e não como o utilizaria a filosofia hermenêutica de Gadamer. E mais, alguns utilizam o qualificativo “independente” para se referir a si próprios e a outros que não pertencem a nenhuma confissão eclesiástica. Como se isso lhes conferisse certo grau de objetividade, de um peso acadêmico que outros não tivessem.

 

Dito isso, é fato que do lado crente houve muitos excessos quando pesou mais um dogma, um credo ou uma declaração de fé de não sei quantos pontos do que um estudo sério e abrangente sobre o tema. Mas com Dunn estamos em terra firme e as palavras anteriormente citadas de Pikaza para um colega de outra confissão são uma boa demonstração disso. O assunto abordado por este livro é de primeira grandeza, e o subtítulo, certamente, não deixa ninguém indiferente.

 

Jesus de Nazaré é o elemento essencial da religião que mais influenciou e deu forma à cultura ocidental, e uma figura central da história. No caso dos cristãos, o interesse por Jesus é ainda maior, pois consideram que Deus se revelou através deste homem de uma forma especial, como nunca antes.

 

A chamada pesquisa sobre o Jesus histórico começou há mais de dois séculos e para este autor “apresenta, desde seus inícios, importantes falhas na forma de perceber tanto Jesus como a própria pesquisa” (pp. 10, 11)... e isto já diz muito.

 

Para Dunn, existiu uma tripla falha a esse respeito que é, justamente, o que irá abordar nos três capítulos que formam este livro, uma falha em cada um. Portanto, temos o seguinte conteúdo:

 

A primeira fé. Quando a fé se tornou um fator na tradição de Jesus? Antes dos evangelhos. O que significava lembrar de Jesus nos primeiros momentos? O Jesus emblemático. Da exegese atomizada às ênfases sistemáticas.

 

No capítulo um, como eu dizia, é apresentado o primeiro esquecimento da pesquisa histórica que foi o impacto que Jesus teve sobre aqueles ouvintes originais, que fez com que se tornassem seus discípulos e que a fé irrompesse neles. Para Dunn, este deve ser o ponto de partida essencial, já que é aí que nasce o cristianismo.

 

Esta consideração da fé muito antes da morte e ressurreição de Jesus não foi devidamente pensada. Na sequência, fará um percurso pelas chamadas buscas do Jesus histórico, com seus principais expoentes.

 

A primeira fase desta busca foi o período liberal. Tinha o objetivo de trazer à luz, de libertar o Jesus histórico do que havia sido o Cristo da . Este último teria sido o resultado de uma sucessão de dogmas eclesiais e agora a questão estava em ir se desfazendo deles, camada por camada.

 

O resultado não poderia ser outro, e assim a busca liberal apresentou um Jesus que não tinha nada a ver com o Cristo do dogma. Neste processo, ficou claro que se os credos e os dogmas eram deixados de lado, também implicava em suprimir a fé dos primeiros cristãos.

 

Adolf von Harnack argumentou que foi Paulo quem desenvolveu o cristianismo que seria considerado ortodoxo. Foi uma autêntica transformação, pois a única coisa que o judeu Jesus pregava era uma mensagem moral, e Paulo a transformou em uma religião de traço helenístico, com o seu culto sacrificial.

 

Isto também significava – segundo Harnack – que Paulo havia transformado o próprio Jesus na mensagem, distanciando-se novamente do Jesus real, visto que o Galileu centrava sua mensagem no Reino de Deus. Ao final do século XIX, o consenso era que o Cristo da havia engolido o Jesus histórico. Os evangelhos eram o resultado dessa fé.

 

A busca seguinte começou com Günther Bornkamm, na década de 50 do século XX, mas muito marcada pela anterior, de tal modo que em seu livro, Jesus de Nazaré, Bornkamm defendia que em toda a narrativa sobre Jesus estava presente a fé da comunidade, inclusive se fosse autêntica.

 

É esta tradição que fala sobre Jesus da qual procede o kerigma e não é possível buscar nos evangelhos simplesmente o histórico, uma vez que neles o que encontramos é a confissão de fé da comunidade na figura de Jesus Cristo, resultado da união do homem Jesus e do Cristo da . Mais uma vez, o Jesus histórico permanecia oculto pelo kerigma pós-pascal.

 

O último episódio desta história é representado pelo Jesus Seminar [Seminário sobre Jesus], com Robert Funk à frente. Qualquer coisa que possa ser identificada como resultado da fé das comunidades deve ser considerada não autêntica. Por isso, o Jesus que aparece para Funk é “um espírito” ou um “sábio errante”, conforme aponta em seu livro Honest to Jesus, de 1996.

 

Esta forma de proceder considera que a fé desorienta o estudioso: “A fé é má, a história é boa. O Cristo da fé é justamente o que precisamos deixar para trás. A perspectiva da fé obscurece e engana” (p.26). O que começou como um protesto contra tantos dogmas, na prática levou a uma suspeita total em relação aos evangelhos.

 

Para Dunn, esta ofensiva possui dois erros básicos. Por um lado, a fé dos discípulos está presente desde o primeiro momento e é a partir dela que nos chega qualquer informação sobre Jesus. Por outro, “temos de reconhecer a falácia que supõe considerar que o Jesus real deve ser um Jesus desprovido de , diferente do Jesus dos evangelhos” (p.26).

 

Capa do livro: "Redescubrir a Jesús de Nazaret: lo que la investigación sobre el Jesús histórico ha olvidado", de James Dunn

 

No segundo capítulo, James Dunn começa dizendo que, na Europa do século XVI, Gutenberg provocou uma revolução com a imprensa, e que também impactou na mentalidade de tal modo que, com o passar do tempo, era normal pensar que para que as palavras fossem preservadas, no decorrer do tempo, tinham que ser escritas.

 

No presente, esta mentalidade permanece e assim quando olhamos para o passado com sua forma de ensinar e aprender, automaticamente, aparece em nossa mente o texto escrito. É assim que acreditamos que a informação pode chegar a cada geração de forma confiável..., mas a Palestina do século I era uma cultura oral. Eram conhecidos textos escritos, mas o oral predominava, e isto também manifesta a nossa pouca compreensão de um tipo de cultura como esta.

 

Devemos ter presente que na Palestina do tempo de Jesus a taxa de alfabetização não chegava a 10%, menos de 10% no Império e, possivelmente, em torno de 3% na Palestina romana. Outros estudiosos debatem estes 10% para a Palestina do tempo de Jesus, mas podemos considerar essa porcentagem aceitável.

 

Eram os sacerdotes, os fariseus, escribas e funcionários, uma minoria na qual se concentrava a alfabetização. Para a grande massa da população, o conhecimento da Torá era adquirido ouvindo alguém quando a lia.

 

Diante disso, devemos considerar que os seguidores de Jesus eram em bom número analfabetos, exceto, pelo que sabemos, Mateus. E mais, seria possível aceitar que alguns de seus seguidores, sabendo escrever, pudessem ter feito anotações, mas “continua sendo sumamente provável que a mais primitiva transmissão da tradição sobre Jesus tenha sido realizada de forma oral” (p.51).]

 

É com essa mentalidade de textos escritos que a pesquisa sobre o Jesus histórico iniciou. Além disso, partiam da ideia de que quanto mais primitiva fosse a fonte em torno de Jesus, mais confiável era. A partir daí, abordou-se o estudo dos sinóticos, e embora se apontasse para as tradições orais, em fins do XIX, a pesquisa se concentrou no que foi chamado de teoria das duas fontes ou dos dois documentos.

 

Foi neste contexto que surgiu a crítica das formas, com o propósito expresso de ultrapassar e desfazer o paradigma literário e se concentrar na fase oral. Bultmann é o teólogo mais conhecido no tocante a este tipo de crítica.

 

Mas os que se dedicam ao estudo da tradição sinótica aceitam que não é possível recuperar a tradição oral, o material original, já que esta forma de transmissão se transformava e variava dependendo do contexto em que se repetia. Por isso, a maioria se satisfaz caso o material possa ser explicado no contexto em que nos chegou. É o que temos, a última das versões e, além disso, escrita. Sendo assim, para Dunn este procedimento, esta concepção e conclusões significam “a segunda grande falha da pesquisa sobre o Jesus histórico” (p. 60).

 

Em seguida, passa a comentar alguns estudos que foram realizados sobre culturas orais e como, com os mesmos, buscou-se lançar alguma luz à época dos evangelhos. Para Dunn, todos estes estudos têm uma enorme lacuna, pois ignoram o impacto que Jesus e suas palavras produziram nos discípulos originais. É aí, com este impacto inicial, que se inicia a tradição e assim ficaria bastante fixada, desde os seus primórdios, antes da páscoa.

 

Dito isso, Dunn citará a importante e pouco conhecida obra de K. E. Bailey, resultado de três décadas em contato com aldeias do Oriente Médio. São aldeias com uma cultura oral que mantiveram sua identidade, ao longo do tempo, e que serviriam como um adequado paralelo ao modo como deve ter sido a cultural oral na Galileia em que Jesus viveu.

 

O último capítulo aborda o terceiro erro: buscou-se um Jesus que fosse diferente ao esperado em seu ambiente. Isto levou a outro erro que foi o de “encontrar” um Jesus que simplesmente não era judeu, com uma premissa que foi aceita e que indicava que era necessário identificar tudo aquilo que se destacasse neste sentido.

 

Diante desta visão do judeu em Jesus como algo não desejado é que surgiu a terceira busca que chega até os nossos dias. Esta nova pesquisa parte justamente da premissa: Jesus era judeu, ou melhor, Jesus, o judeu. É aí que Dunn se enquadra com o seu Jesus lembrado.

 

Dunn também não deixa de fazer uma crítica aos chamados critérios “de autenticidade” que foram colocados em prática pelos seguidores de Bultmann.

 

Por fim, nosso autor passa a traçar o Jesus emblemático, a respeito do qual, sim, é possível conhecer palavras, ações e experiência essenciais, registradas nos evangelhos.

 

Pessoalmente, penso que estamos diante de um autor e um livro magníficos. Pouco me resta a acrescentar, pois me concentrei em realizar uma apresentação do essencial para que o potencial leitor possa conhecer com antecedência o que vai encontrar.

 

Como dizia no início, a fé não está em conflito com a erudição e muito menos é irreal e suspeita... talvez seja completamente o contrário, e uma via muito brilhante para apoiar esta posição é a que este brilhante autor nos convida a considerar nestas páginas.

 

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