01 Junho 2021
"A pessoa que passou por uma jornada da meia-idade pode moldar e também transformar a sua própria comunidade, como fez Inácio de Loyola".
O comentário é de Gerald O’Collins, padre jesuíta australiano e professor emérito da Universidade Gregoriana de Roma. O artigo foi publicado por La Croix International, 29-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há apenas 500 anos, em 20 de maio de 1521, uma bala de canhão disparada pelas forças francesas que atacavam uma fortaleza em Pamplona ricocheteou em uma parede próxima e despedaçou a perna direita de Inácio de Loyola. O ferimento pôs fim à sua carreira de soldado e diplomata.
Depois de sobreviver a várias operações e a uma longa convalescença, Inácio saiu de casa para passar 17 anos viajando até o seu último lar em Roma como superior geral de uma nova ordem religiosa, a Companhia de Jesus ou jesuítas.
Muitas vezes descritos como o tempo da sua conversão religiosa e crescimento espiritual, esses anos constituem a jornada da meia-idade de um santo que, ao longo de sua autobiografia, chama a si mesmo de “o peregrino”.
Há mais de 40 anos, eu usei a tese de doutorado de Bridget Puzon para produzir o livro “The Second Journey” [A segunda jornada] e refletir sobre as jornadas da meia-idade.
A história humana, como percebi à época e mais tarde, lança em todos os lugares exemplos de tais jornadas: de Abraão e Sara a Moisés, de Paulo de Tarso à Madre Teresa de Calcutá, de Dante Alighieri a Eleanor Roosevelt, de John Wesley a Jimmy Carter, de John Henry Newman a Dietrich Bonhoeffer.
A literatura ocidental também consagra vários exemplos dessas jornadas da meia-idade. Obras como a “Odisseia” de Homero, a “Eneida” de Virgílio e “O Peregrino” de John Bunyan apresentam heróis levados a abandonar, na meia-idade, o seu ambiente familiar, tentar novos projetos e viajar por estradas estranhas.
Isso é estar “no caminho do meio”, como afirma T. S. Eliot em “East Coker”. Ele nos leva de volta à imagem da jornada da meia-idade com a qual Dante abre a “Divina Comédia”: “Da nossa vida, em meio da jornada, achei-me numa selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada” [trad. de José Pedro Xavier Pinheiro].
A imagem da jornada da meia-idade deriva do nosso imaginário literário, assim como de uma história incontestável. O mundo “real” das jornadas da meia-idade criou a sua contraparte de faz de conta que reflete e ilumina essas jornadas.
Mapear o padrão característico de tais jornadas permitirá que os leitores reconheçam Inácio como um caso em questão. Pelo menos seis fatores definem o padrão básico.
Primeiro, uma jornada da meia-idade acontece. As pessoas não entram nela voluntariamente. Elas podem ser levadas a isso por diferentes fatores. Podemos classificar suas histórias em duas classes, se a causa é algum fenômeno observável ou algo interior e menos óbvio publicamente.
Muitas vezes, o catalisador parece obviamente “negativo”.
Um acidente de trânsito, uma doença grave, a morte ou a infidelidade de um cônjuge, a perda inesperada de um emprego ou a desilusão sobre o que o sucesso público lhes trouxe podem mergulhar as pessoas em uma crise inesperada.
Entregues a si próprias, elas nunca teriam escolhido a dor de tal situação. Ela simplesmente aconteceu para elas.
A batalha de Pamplona e uma longa convalescença deram início a uma jornada da meia-idade para Inácio. Seu encontro com a morte fez com que o seu mundo de cavalheirismo e diplomacia se desintegrasse.
Sem querer ou sem planejar, Inácio sofreu aquela profunda reviravolta que ele registra em sua autobiografia, e a sua jornada da meia-idade teve início. Muitas escolhas deliberadas aparecem nos estágios posteriores da sua história. Mas o início da peregrinação lhe foi imposto.
Logo do Ano Inaciano.
Em segundo lugar, uma jornada da meia-idade inclui caracteristicamente um componente externo – alguma jornada específica ou uma inquietação física que mantém a pessoa viajando na seguinte esperança: “Se eu me realocar, encontrarei a solução”.
A jornada externa pode ser uma verdadeira “Odisseia” ou “Eneida”. Mas pode ser nada mais do que uma mudança do subúrbio para o centro da cidade, ou algo um pouco mais longo, como a viagem de trem da Madre Teresa em 1946 saindo de Calcutá.
É claro que é o componente interno que traz uma verdadeira jornada da meia-idade. A viagem externa tem apenas uma função subordinada.
Ao mesmo tempo, alguma mudança de um lugar para outro parecem ser uma característica constante das autênticas jornadas da meia-idade.
A viagem de Wesley à Geórgia, a segunda visita de Bonhoeffer a Nova York às vésperas da Segunda Guerra Mundial, a viagem de Newman pelo Mediterrâneo e as andanças de Inácio se enquadram nisso.
Ele viajou de Loyola para a Terra Santa, de volta para a Espanha, depois rumo ao norte até Paris, novamente de volta para a Espanha e finalmente encontrou o fim da jornada na sede dos jesuítas em Roma.
Em terceiro lugar, a jornada de meia-idade envolve uma crise de sentimentos, simbolizada pelo terror de Dante por estar perdido em uma floresta. Tal crise pode surgir principalmente a partir de algum fracasso pessoal atual (Wesley e Carter), conflitos não resolvidos do passado (São Paulo) ou temores quanto ao futuro (Bonhoeffer).
Seja qual for o caminho em particular, uma poderosa crise de sentimentos sempre parece explodir quando alguém é arrastado para uma jornada da meia-idade.
Ao longo dos meses de recuperação dos seus ferimentos, Inácio experimentou emoções de conforto e angústia – “pensamentos tristes e felizes”, como ele os chamava.
Aprender a interpretar e a lidar com esses sentimentos flutuantes constituiu uma etapa vital na sua jornada. As Regras para o Discernimento dos Espíritos (encontradas nos Exercícios Espirituais) transmitem a outros aquilo que Inácio descobriu dolorosamente por conta própria.
A tarde da vida, segundo Carl Gustav Jung, traz “a reversão de todos os ideais e valores que eram acalentados pela manhã da vida” (“Psychological Reflections” [Reflexões psicológicas]).
São palavras fortes. Quer enfatizemos esse quarto ponto com força ou o tornemos mais suave, as jornadas da meia-idade trazem uma busca por novos significados, valores atualizados e metas diferentes.
Os papéis com os quais as pessoas se identificam não parecem mais importantes. Os velhos propósitos desaparecem. Os valores e metas que davam sentido à vida perdem a sua força.
Os ferimentos que Inácio sofreu durante a batalha em Pamplona curaram, mas deixaram um osso sobressalente de um jeito não bonito. Ele estava tão ansioso para manter o seu papel de elegante oficial que convenceu os cirurgiões a cortarem o pedaço de osso sobressalente.
Sem nenhum gemido, ele suportou a cirurgia primitiva – movido pelo medo de perder uma identidade com a qual ele havia definido a sua existência. Mas, então, uma jornada da meia-idade levou Inácio a prezar por outros valores e a encontrar uma identidade diferente.
Na linguagem dos Exercícios Espirituais, Inácio se perguntou: “O que eu fiz por Cristo? O que estou fazendo por Cristo? O que devo fazer por Cristo?”.
Em quinto lugar, as pessoas em jornadas da meia-idade repetidamente manifestam um profundo senso de solidão.
Essa solidão, no fim, deve se transformar na solidão de um autodomínio silencioso e integrado. Mas, antes que isso ocorra, as pessoas se encontrarão na “floresta escura” de Dante.
Elas podem sofrer profundamente nas mãos da sociedade. No caso de Inácio, isso começou com a prisão pela Inquisição na Espanha e durante a sua peregrinação solitária à Terra Santa.
DSanto Inácio no mosaíco de Marko Rupnik na casa dos jesuítas de Roma. (Foto: Josef Bartkovjak | Vatican Media)
Por fim, a pessoa que passou por uma jornada da meia-idade pode moldar ou mesmo transformar a sua comunidade.
Elas podem até mesmo se parecer com Eneias na formação de um novo grupo de pessoas. Os seguidores que Inácio reuniu ao seu redor tornaram-se “os mestres das escolas da Europa” e missionários para toda a humanidade.
A sexta e última característica no padrão das jornadas da meia-idade diz respeito ao fim da jornada. Idealmente, essas jornadas terminam silenciosamente, com uma nova sabedoria e um retorno a si mesmo que libera um grande poder.
As jornadas da meia-idade geralmente começam de forma dramática: uma bala de canhão varre as muralhas de uma fortaleza espanhola (Inácio); uma grave doença quase acaba com a vida de Newman quando ele viajava para a Sicília sem seus amigos; Hitler mergulha o mundo na guerra (Bonhoeffer).
O fim dessas jornadas tende a ser silencioso e pouco dramático. Inácio entra mancando em Roma depois de 17 anos na estrada. Newman vai para casa, sentindo que tem “um trabalho a fazer na Inglaterra”.
As jornadas da meia-idade terminam com a chegada da sabedoria de um verdadeiro adulto. É a sabedoria de quem recuperou o equilíbrio, estabilizou e encontrou propósitos renovados e novos sonhos.
Eles voltaram a si mesmos em uma autodescoberta e autoidentificação finais, o que lhes permite ir ao encontro dos outros e se mostrar surpreendentemente produtivos para o mundo.
As suas jornadas da meia-idade terminam com novos sonhos, nos quais novas responsabilidades começam. Por meio dos seus Exercícios Espirituais e da fundação da Companhia de Jesus, Inácio viveu em benefício dos outros aquilo que experimentou por conta própria.
Essas são as seis características da jornada da meia-idade, exemplificadas pela história de Inácio.
O “Little Gidding” de Eliot interpreta essas jornadas como odisseias que, no fim, nos levam de volta para o lugar onde começamos: “Não devemos parar de explorar / E o fim de todas as nossas explorações / Será chegar onde começamos / E conhecer o lugar pela primeira vez”.
E Inácio? Em vez de se mostrar como uma “Odisseia”, a sua jornada da meia-idade tomou a forma de uma “Eneida”. A sua exploração finalmente o levou a um novo lugar e à inesperada tarefa de fundar uma família mundial de seguidores. Nos nossos dias, um deles lidera a Igreja Católica como Papa Francisco.
Existem, é claro, outras formas de se ler a história de Santo Inácio de Loyola depois que ele foi gravemente ferido em 20 de maio de 1521. Mas refletir sobre a sua jornada da meia-idade também lança muita luz sobre o que aconteceu.
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Santo Inácio de Loyola e a jornada da meia-idade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU