14 Junho 2021
O arcebispo de San Francisco, Salvatore J. Cordileone, apreciava Dom Viganò, o difamador do Papa Francisco. Agora, ele está na primeira fila do pedido de uma linha dura contra o presidente católico
O comentário é de Riccardo Cristiano, jornalista e escritor italiano, publicado em Globalist Syndication, 11-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fala-se disso há semanas, e, com o passar dos dias, parece que se aproxima o momento do acerto de contas na Igreja Católica dos Estados Unidos da América. A data desse fato, quase um desafio entre dois mundos que não conseguem mais se comunicar, poderá ser o dia 16 de junho, quando os bispos se reunirão na modalidade online.
Olhando para o que está acontecendo entre eles, é possível ter a sensação de que muitos estão incomodados com a ideia de ter, pela segunda vez na sua história, um presidente pertencente à sua Igreja. A proximidade com o poder, como se sabe, pode ser considerada perigosa...
Mas, lido um pouco à luz da ansiedade com que setores do episcopado estadunidense se propõem a votar já em meados do mês a elaboração de um documento que indique que o segundo presidente católico da história dos EUA, Joe Biden, não estaria em condições de pedir a Comunhão (participar da mesa eucarística), tem-se a impressão de que o verdadeiro objetivo é outro.
Há um nome que ajuda a levantar essa ideia: é o nome do ex-núncio vaticano nos EUA, aquele Dom Viganò que pediu a renúncia de Francisco pelo caso McCarrick, o cardeal que Francisco removeu do Sacro Colégio e depois do estado clerical por ser acusado de abuso.
Viganò argumentou que McCarrick estava secretamente submetido a vínculos restritivos da sua atividade, que o inibiam de muitas atividades. No entanto, às vezes, eles participavam juntos dessas atividades, em um caso com manifestações públicas de estima por parte de Dom Viganò.
Alguns bispos estadunidenses, estranhamente, mais do que com o papa, se solidarizaram com o seu acusador. Entre os primeiros, destaca-se o arcebispo de San Francisco, Salvatore J. Cordileone, que imediatamente escreveu uma carta de apreciação a Dom Viganò. É precisamente ele quem hoje aparece na linha da frente do pedido de uma linha dura contra o católico Joe Biden.
Biden trouxe os EUA de volta às negociações pelo clima? Fala de justiça social? Tudo isso interessa pouco ao arcebispo: para ele, é preciso uma linha firme, porque, se é verdade que os valores morais católicos são diferentes, o preeminente é o “não” ao aborto.
Mas Biden nunca disse “sim” ao aborto, nunca incentivou uma mulher a abortar. Ele votou “sim” à lei que permite que se escolha.
O cardeal Joseph Ratzinger, na época prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, disse que um católico que pretendesse votar em um candidato favorável à lei do aborto por outros motivos teria o direito de fazê-lo. Além disso, um parecer solicitado e obtido precisamente pelos bispos estadunidenses sobre a “coerência eucarística” sublinhou que os princípios morais católicos são o “não” aborto, o “não” à eutanásia, a defesa da liberdade religiosa, a defesa da família, a proteção dos menores contra as formas modernas de escravidão, a liberdade religiosa, o desenvolvimento de uma economia a serviço da dignidade de cada indivíduo, a rejeição da violência e a promoção da paz.
É por isso que os bispos contrários a essa linha defendem que a ideia de uma preeminência do aborto parece ser uma questão política mais do que doutrinal.
Entre aqueles que hoje apoiam a linha dura contra Biden, encontram-se outros admiradores de Dom Viganò, como o arcebispo de Denver, Samuel Aquila, o arcebispo de Kansas City, Joseph Naumann, o bispo de Phoenix, Thomas Olmsted, todos convencidos, pelo menos na época, da integridade do “grande acusador”.
O National Catholic Reporter reuniu merecidamente as suas posições sobre o caso Viganò e o “caso Biden” agora.
Sabe-se que um príncipe da Igreja hoje santo, John Henry Newman, beatificado pelo Papa Bento XVI e depois canonizado por Francisco, ficou famoso por ter dito que todo bom católico é fiel ao papa, mas, antes ainda, à sua consciência. Para um político, a liberdade de consciência não pode significar ser contra o aborto, como qualquer bom católico, mas votar a favor da lei que permite a escolha para evitar outras chagas, por exemplo o aborto clandestino?
Mas não é apenas a liberdade de consciência que dá corpo ao debate que os bispos desejam realizar online, sem sequer se verem pessoalmente, entre os próximos dias 16 e 18 de junho. Obviamente, há a suposta preeminência da questão do aborto, alheia à doutrina, porque tornaria evidentemente todo o restante menos grave.
Recordando o parecer de 2002, o novo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Ladaria, destacou também a urgência de discutir para unir e não para dividir. Esse ponto aparentemente pacificado indica que a discussão toca uma convicção de fundo, expressada infinitas vezes por Francisco: “A Eucaristia não é o prêmio dos santos, mas o Pão dos pecadores”, disse ele várias vezes, definindo-a como “remédio para os pecadores”, ou ainda – já em 2015 – que “a Eucaristia não é um prêmio para os bons, mas uma força para os fracos, um vínculo de comunhão”.
É o confronto entre a Igreja missionária, a Igreja em saída, e a Igreja identitária, em que o que está em jogo, mais do que os próprios valores, é a concepção de si mesma. Não é uma discussão nova: para Francisco, a mensagem cristã não pode ser reduzida (a preeminência) descontextualizando o anúncio cristão daquilo que lhe dá sentido e, para ele, beleza.
É o cerne do choque entre a sua visão e a da ideologia neocon, firme no “não” ao aborto e no “sim” às guerras preventivas: há casos em que os defensores do “não” à comunhão de Biden acabam sendo favoráveis à pena de morte.
Então, é interessante tentar entender como esses bispos anti-Biden ou, mais provavelmente, anti-Francisco veem o mundo. O lugar mais indicado para fazer isso é o Instituto Napa, do qual muitos deles são animadores.
No seu site, pode-se ver entre os convidados de honra do congresso de verão o bispo texano Strickland, contrário às vacinas por serem produzidas com células retiradas há várias décadas de fetos abortados.
De lá, pode-se chegar facilmente a uma televisão, a EWTN, na qual Dom Viganò parece ser muito amado. Em 2020, essa emissora recebeu o presidente Trump e premiou o seu ministro da Justiça, Barr, que reintroduziu a pena de morte federal, hostilizada pelos bispos e pela doutrina da Igreja. Foi-lhe conferido o prêmio Christifideles Laici.
Para Francisco, ao invés disso, “o Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. [...] Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior perigo” [EG 39].
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Igreja Católica dos EUA rumo a um acerto de contas: quem são os inimigos de Joe Biden - Instituto Humanitas Unisinos - IHU