Palavras de arrependimento e atos de penitência não são suficientes para curar as feridas e ajustar a Igreja.
O artigo é Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, EUA, publicado por La Croix International, 08-06-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A Igreja Católica entrou em uma pequena e renovada lua de mel com a mídia global depois do anúncio de 21 de maio do “processo sinodal 2021-2023”.
Mas a festa de amor durou apenas uma semana.
O momento teve um fim abrupto e desagradável quando os policiais do Canadá descobriram 215 túmulos não marcados de crianças indígenas em uma antiga escola residencial gerida por católicos na Colúmbia Britânica.
Organizações internacionais exigiram rapidamente que a Igreja no Canadá e a Santa Sé admitissem a responsabilidade pela tragédia.
O Papa Francisco expressou sua “proximidade com os canadenses traumatizados pela notícia chocante”, ao se dirigir aos peregrinos na Praça São Pedro, no Angelus do último domingo. Mas ele finalizou antes de emitir um pedido de desculpas direto.
O primeiro-ministro católico do Canadá, Justin Trudeau, insistiu que a Igreja e a Santa Sé devem assumir a responsabilidade pelo que aconteceu na escola.
Em uma declaração em vídeo em 4 de junho, ele até mesmo aludiu à possibilidade de que as autoridades da Igreja fossem levadas ao tribunal.
Aconteceu que foi no mesmo dia em que o cardeal alemão Reinhard Marx fez o anúncio chocante de que havia pedido ao papa para aceitar sua renúncia como arcebispo de Munique e Freising.
Marx é um dos aliados mais próximos de Francisco e, aos 67 anos, ainda tem alguns anos até chegar a idade normal de aposentadoria, 75 anos.
Ele disse que o motivo de sua renúncia foi assumir a responsabilidade pela “falha sistêmica” da Igreja Católica em lidar com a crise dos abusos sexuais.
A carta do cardeal foi um sinal para alguns de seus colegas bispos na Alemanha. Mas também foi uma mensagem ao Vaticano e ao papa de que há uma grande frustração com o ritmo lento da reforma da Igreja.
Estas duas últimas semanas demonstram a situação difícil da Igreja Católica hoje. Cada vez que a hierarquia eclesiástica tenta virar uma nova página, o passado volta para mordê-la.
Em certo sentido, é a história do catolicismo pós-Vaticano II.
Primeiro, no período entre o Concílio Vaticano II (1962-65) e os primeiros anos do pontificado de João Paulo II na década de 1980, a Igreja se desculpou pelo anti-semitismo.
E, ainda assim, há coisas que o Vaticano ainda não pode se dar ao luxo de dizer ao Estado de Israel sobre seu tratamento aos palestinos, como testemunhamos no capítulo mais recente (mês passado) do conflito israelense-palestino.
Então, na década de 1990, João Paulo II se preparou para inaugurar o novo milênio e o Grande Jubileu de 2000, emitindo uma série de desculpas pelos pecados que “membros da Igreja Católica” haviam cometido ao longo dos séculos.
Isso incluía pecados contra os judeus, contra a paz, os direitos dos povos, o respeito pelas culturas e religiões, a dignidade da mulher, a unidade da humanidade, os direitos fundamentais da pessoa e assim por diante.
E, no entanto, o falecido papa polonês tinha uma cegueira fundamental em relação ao escândalo de abuso sexual na Igreja Católica.
O Grande Jubileu de 2000 deveria abrir uma nova página na longa saga da desejada reconciliação da Igreja com o mundo. Em vez disso, o início do novo milênio se desenrolou sob uma nuvem negra – revelações de abuso sexual em Boston.
Alguns cardeais acreditavam que a lista de pecados da Igreja que João Paulo compilou para a “purificação da memória” era muito longa. Olhando para trás, podemos ver que acabou sendo muito curto.
Bento XVI começou então a prática de encontrar vítimas de abuso sexual durante viagens papais ao exterior. Ele fez isso em suas visitas à Austrália, Estados Unidos, Malta e Alemanha.
E ele até se encontrou com um grupo de pessoas das Primeiras Nações do Canadá que visitaram o Vaticano.
E, no entanto, a leitura de Bento XVI sobre a crise dos abusos sexuais não levou a uma punição séria dos abusadores (por exemplo, o padre Marcial Maciel).
Em vez disso, foi moldado pela ideia de que a praga do abuso sexual vinha de fora da Igreja, uma das doenças da modernidade liberal disseminada dentro do catolicismo por falta de diligência doutrinária.
Então veio o Papa Francisco.
Embora tenha permanecido em silêncio sobre a questão dos abusos durante o primeiro ano de seu pontificado, ele acelerou a resposta institucional à crise em 2014. Ele está ainda mais determinado a fazê-lo desde 2018 e em fevereiro de 2019 realizou uma cúpula extraordinária no Vaticano.
O cardeal Marx desempenhou um papel importante nessa reunião crucial, assim como na estratégia geral do Vaticano para lidar com a crise dos abusos desde 2010.
No entanto, mesmo as ações de Francisco sempre parecem ficar aquém do que se espera da Igreja e do papado em termos de resposta institucional à crise dos abusos sexuais.
E desde que a crise explodiu no início dos anos 2000 como uma questão de “padres pedófilos”, ela se estendeu a outros escândalos, como o abuso de mulheres religiosas e pessoas vulneráveis, abuso espiritual em novas comunidades leigas, os túmulos não identificados de crianças em instituições administradas pela Igreja na Irlanda e Canadá, e assim por diante...
Para a Igreja Católica no século XXI, o presente é incontrolável, o futuro continua a se esvair e a esperança de um novo começo tornou-se elusiva.
É a Igreja que continuamente quer professar para si e para o mundo, “Ecclesia semper refomanda” – uma Igreja em constante necessidade de reforma.
Mas, de fato, está sendo forçada pela pressão externa a ser uma “ecclesia semper penitens” – uma Igreja que é constantemente penitente.
Não há dúvida que, em algumas questões, a penitência precisa ser a modalidade da Igreja Católica atual. Dado os termos de sua história obscura é uma tarefa essencial no movimento para o futuro.
O problema é que não está claro qual o tipo de futuro.
A esperança de mudança no catolicismo hoje é chamada de sinodalidade. Visa uma forma de ser Igreja menos clerical e mais corresponsável.
Mas há uma diferença importante entre a sinodalidade na Igreja do passado e hoje.
Seria mais fácil ser uma Igreja sinodal em uma autopercepção triunfante – como foi o caso das experiências sinodais da Idade Média, do período pós-tridentino e, em certo sentido, mesmo da Igreja imediatamente pós-Vaticano II – do que na Igreja de hoje, onde o arrependimento público é constantemente percebido como inadequado e falso.
É um arrependimento que não tem sido capaz de convidar ao perdão e à reconciliação – não apenas de governos seculares e ateus militantes, mas mesmo de fiéis católicos dizimistas.
Esta é uma grande ruptura com apenas algumas décadas atrás. A visão do Concílio Vaticano II para o futuro da Igreja estava muito mais nas pegadas do tradicional “semper reformanda” do que nos “semper penitens” de hoje.
É por isso que a situação da Igreja hoje é muito diferente da época do Vaticano II, e a invocação da “hermenêutica da continuidade e da reforma” é tragicamente inadequada se a continuidade for melhor que a reforma.
O futuro continuará a ser uma ideia elusiva na Igreja se a elevação da dimensão existencial da fé se tornar apenas estética verbal; e se a dimensão pastoral se tornar maneirismo clerical e, portanto, o instrumento para uma apologética institucional, uma defesa do status quo, como observou o teólogo italiano Marcello Neri em seu último livro.
Mas isso poderia muito bem acontecer com o processo sinodal se ele não estivesse aberto a reformas institucionais e teológicas em resposta à crise dos abusos.
Não está claro se uma reforma corajosa tirará a Igreja de sua situação atual. Mas é certo que, sem tal reforma, a Igreja dificilmente terá uma chance.