07 Junho 2021
"Marx não tem ilusões sobre a situação interna da Igreja. Portanto, ele quer deixar o palácio", escreve Marco Politi, jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 05-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Reinhard Marx deixa o cargo. O cardeal alemão, figura destacada na frente da reforma, o homem que pôs em marcha o "caminho sinodal" da Igreja alemã, onde serão abordados os temas quentes que ainda são tabu no Vaticano (celibato dos padres, responsabilidades eclesiais das mulheres, bênção a casais homossexuais), o cardeal que dirige o Conselho Econômico na Cúria Romana e faz parte do Conselho dos Cardeais em estreita colaboração com Francisco, escreveu ao Papa pedindo a renúncia à liderança da diocese de Munique e retornar a ser um simples padre ordenado bispo. Falar em "duro golpe" não é uma expressão exagerada. Aliás, é pouco.
Marx, uma figura equilibrada, mas firme na busca do que considera necessário para a mudança da Igreja, é um pilar do campo reformista e sua disposição de se retirar lança uma luz inquietante sobre os desenvolvimentos da Igreja Católica no futuro próximo. Porque todos sabem que nesta terceira década do terceiro milênio quase certamente se dará a eleição de um novo pontífice e há uma grande incerteza sobre o rumo que tomará o próximo conclave.
Marx, na carta enviada há duas semanas ao Papa Francisco, faz um juízo negativo sobre como a Igreja como um todo geriu a "catástrofe do abuso sexual perpetrada pelos representantes da Igreja nas últimas décadas". As investigações e perícias dos últimos dez anos, acrescentou o cardeal, demonstram constantemente que, para além dos fracassos pessoais ou erros na administração, foi um fracasso institucional e sistêmico. A Igreja chegou a um “beco sem saída”, ressalta Marx, e nesta situação o purpurado decidiu assumir a sua parte de corresponsabilidade e por isso - escreve ao pontífice - “cheguei à conclusão de lhe pedir que aceite minha renúncia ao cargo de arcebispo de Munique e Freising”.
A carta contém também uma alusão contra aqueles “representantes da Igreja (que) não querem aceitar esta corresponsabilidade e, portanto, também o compartilhamento da culpa da Instituição”. Isso impede que as reformas e inovações necessárias sejam lançadas. A referência diz respeito ao recente escândalo da diocese de Colônia, onde os últimos levantamentos trouxeram à luz a existência entre 1975 e 2018 de mais de 300 vítimas e 200 culpados nas fileiras eclesiais.
Desde 2014, o Cardeal Rainer Maria Woelki está à frente da diocese, que se protegeu por trás de um estudo confiado a um criminalista, pelo qual resultam 11 "violações de deveres de ofício" atribuíveis ao ex-vigário geral da diocese que mais tarde se tornou bispo de Hamburgo, Mons. Stefan Hesse, e zero falhas do próprio cardeal. O caso já provocou a renúncia do bispo de Hamburgo, na suspensão de um bispo auxiliar de Colônia e as demissões de outro bispo auxiliar também em Colônia.
Francisco decidiu há poucos dias enviar dois inspetores de alto escalão, os chamados "visitantes apostólicos" à diocese: um cardeal sueco e o presidente da conferência episcopal holandesa. Paradoxalmente, a Igreja alemã sob seus presidentes de conferência episcopal (o próprio Marx e seus predecessores) construiu um sistema de vanguarda de escuta a tratamentos dos escândalos de abuso sexual. Com uma rede de referentes em cada diocese e um bispo encarregado em nível nacional de seguir a observância nas dioceses das diretrizes emanadas do episcopado. Algo que na Itália, por exemplo, só começou a ser construído no último biênio. Os bispos alemães também tiveram a coragem de confiar a grupos de pesquisadores de três universidades diferentes uma investigação independente sobre os abusos cometidos no âmbito eclesial desde o pós guerra até 2014. Resultado: 3671 vítimas e 1670 predadores entre padres, diáconos e religiosos. Na Itália, uma iniciativa desse tipo ainda é esperada.
O gesto do cardeal Marx, portanto, tem raízes mais profundas. É verdade que, em nível internacional, a esperança de que a grande cúpula dos presidentes das conferências episcopais de todo o mundo - organizada pelo pontífice em fevereiro de 2019 para estabelecer em todo lugar sistemas eficientes de "guichês" para a denúncia e equipes de escuta e tratamento de casos – levasse a uma ampla virada acabou desapontando. Apesar da disponibilidade da Congregação para a Doutrina da Fé em ajudar as conferências episcopais a definir diretrizes rigorosas, a iniciativa é muito lenta e demorada em grande parte do universo católico. Marx está certo desse ponto de vista.
O ponto de virada ainda não aconteceu. As resistências em reconhecer as culpas da hierarquia e do sistema clerical são enormes. Contudo, há algo que a carta do cardeal não diz. Em demasiadas frentes, a resistência curial e a oposição silenciosa do campo conservador, tradicionalista e dos núcleos abertamente reacionários dentro da Igreja Católica estão atrapalhando o processo de reforma do catolicismo. Francisco não pode fazer tudo. Os opositores (incluindo o ex-pontífice Ratzinger) impediram a possibilidade de ter um clero casado em áreas do mundo onde é necessário esperar um ano ou mais para ver um sacerdote. A massa conservadora provocou a absurda proibição de abençoar os casais homossexuais. Os atiradores tradicionalistas se posicionam com suas espingardas apontadas para o "caminho sinodal" da Igreja alemã para impedir que propostas verdadeiramente inovadoras surjam do "povo de Deus”.
Seria necessário um Concílio, mas como o grande teólogo recentemente falecido Hans Küng e o cardeal Carlo Maria Martini, que morreu na véspera do advento de Francisco, a composição do episcopado mundial ainda amplamente escolhida por João Paulo II e Bento XVI levaria a uma regressão em vez de um salto à frente. Reinhard Marx sabe de tudo isso. No ano passado, ele havia desistido de se candidatar novamente à liderança da conferência episcopal e isso já era um sinal. Marx não tem ilusões sobre a situação interna da Igreja. Portanto, ele quer deixar o palácio.
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Vaticano, o cardeal Marx deixa o cargo: é pouco falar em “um duro golpe”. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU