14 Abril 2021
"Naquele abril, parece como a reversão da doutrina medieval que tratava o judeu como um menor sem direitos: e rabi Toaff a tornaria sua, sem medo. A viagem de um quilômetro e que durou dois mil anos também significava isso: aceitar o ato de assumir a culpa e retribuí-la com a confiança", escreve Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado por La Repubblica, 13-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
No dia seguinte do ataque palestino à Sinagoga de Roma em 9 de outubro de 1982, o Papa João Paulo II expressou no Angelus "profunda deploração" por um ato que inseria entre os "episódios criminosos de ódio antissemita" e lembrava "com o coração profundamente entristecido" uma anônima criança judia "que ontem perdeu a vida aqui em Roma". Aquela condenação sincera, mas tão descaradamente estereotipada, revelava de forma dramática um ponto de gargalo no pensamento católico e de outros (demoraria 43 anos e Sergio Mattarella para lembrar pelo nome aquele "menino", Stefano Gaj Taché, com a devida solenidade).
Apesar do concílio, apesar de um Papa que viveu como amigo próximo ao mundo Ashkenazi, a morte do judeu se incluía no grupo de "episódios" em uma contabilidade na qual se limitava prantear os "inocentes". Não foi uma gafe: foi a prova da exigência indizível de uma mudança de ritmo que ocorreria em 13 de abril de 1986, quando o rabi Elio Toaff recebeu João Paulo II na sinagoga, derrubando os ritos de submissão impostos pelo regime pontifício aos judeus do Gueto depois de cada conclave. Aquela visita foi fruto de um ousado ato de assumir a culpa por parte do bispo de Roma e uma ousada abertura por parte do rabino chefe.
Um primeiro contato entre Wojtyla e o judaísmo italiano havia ocorrido em San Carlo ai Catinari em 1981, mas havia sido posto na sombra pela história de Monsenhor Hilarion Capucci, pela recepção na Secretaria de Estado do cofundador do Fatah Faruq Qaddumi, pela audiência com Arafat pouco antes do atentado à sinagoga. O fio do diálogo só se retomaria em 1985 e com a conferência dedicada ao vigésimo aniversário da Nostra Aetate, durante a qual Arrigo Levi se pergunta: “mas é possível que este Papa que já viajou por todo o mundo [...] não tenha dado aquele pequeno passo do outro lado do Tibre?”.
Era uma esperança fundada nos contatos retomados entre o rabi Toaff, o Cardeal Etchegaray e o teólogo argentino D. Jorge Mejía, que receberam uma aceleração quando em janeiro de 1986 Wojtyla pergunta a Mejía se ele recomendava uma visita à sinagoga de Los Angeles: “Eu disse que se o bispo de Roma devia visitar uma sinagoga talvez fosse melhor começar por aquela de sua cidade. João Paulo II aprovou imediatamente a ideia e perguntou-me se era factível. Por um momento, mordi minha língua, mas depois respondi que precisava perguntar ao Rabino Chefe Toaff. O Papa pediu-me que o fizesse”.
E Toaff abre as portas, com o forte consenso da comunidade e dos rabinos da Europa, e marca a visita do Papa à Sinagoga em 13 de abril. Naquele dia, o Papa profere um discurso que ficou famoso, escrito pelo próprio Mejía. O pontífice menciona com credibilidade a herança Roncalliana, a Aliança, o Vaticano II. Mas, sobretudo, assume a responsabilidade histórica de uma culpa (amenizada no texto final, onde "fatos que apontam o dedo acusador contra nós" se tornam "fatos deploráveis"); e a solene repetição da condenação do antissemitismo “de qualquer um e de qualquer tempo”.
João Paulo II visita a Sinagoga di Roma. (Foto: Vatican Media)
Uma citação decisiva de Nostra Aetate, porque com aquele "qualquer um" o papado aceita responsavelmente o peso de uma história onde estavam pensamentos, palavras e omissões: as discriminações, o gueto, a queima do Talmud, os batismos forçados, o caso Mortara, as leis raciais, o ataque de 16 de outubro, a incapacidade de reler o Holocausto sem capciosas autoabsolvições. É aquele ato de assumir responsabilidade que torna aceitável que o Papa cite erroneamente o Salmo 135 (pulando as palavras "a casa de Aarão assim o diz") e defina os judeus como "irmãos mais velhos". Dado que na tradição bíblica, onde os menores derrubam os maiores, essa expressão poderia aparecer como a adesão ao “substitucionismo” com que a Igreja tenta se substituir a Israel e que é a enzima de todo antissemitismo.
Mas naquele abril, parece como a reversão da doutrina medieval que tratava o judeu como um menor sem direitos: e rabi Toaff a tornaria sua, sem medo. A viagem de um quilômetro e que durou dois mil anos também significava isso: aceitar o ato de assumir a culpa e retribuí-la com a confiança.
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Dois mil anos eliminados em um quilômetro. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU