A experiência de viver e refletir o sofrimento de uma pandemia durante a Semana Santa repete-se em 2021. No ano passado, chegava-se ao Domingo de Páscoa com a dor de 113 mil mortos, destes 1.223 eram vítimas da covid-19 no Brasil. A tragédia que se prolongou durante todo o último ano não cessou nem mesmo com o início da vacinação em dezembro. Os males das desigualdades na distribuição dos antígenos, a falta de estrutura dos sistemas de saúde e o desrespeito às medidas de prevenção à covid-19 fizeram um crescimento de 2.145% no número de mortos no mundo, totalizando 2,81 milhões de vidas perdidas - destas, mais de 321 mil de brasileiros.
A tragédia humana, o caos político, econômico e social intensificaram as buscas por proteção divina, ou o questionamento sobre o poder de Deus. Afinal, a pergunta que tantos teólogos buscam responder é, se Deus é bom e onipotente, por que permite o mal no mundo? Dando continuidade ao artigo publicado no ano passado Páscoa IHU. O silêncio de Deus em tempos tempestuosos, o Instituto Humanitas Unisinos reúne nesta página reflexões sobre o mal, o sofrimento humano e como a Paixão e a Ressurreição de Cristo inspira esperança.
Papa Francisco, em 27 de março de 2020, celebra missa em uma vazia Praça São Pedro, pelo fim da pandemia. Foto: Vatican News
"Deus dos sem deuses,
deus do céu sem Deus,
Deus dos Ateus.
Rogo a ti cem vezes.
Responde quem és".
"Invocação", de Chico César, na interpretação de Maria Bethânia
O problema da onipotência ou impotência de Deus fora discutido por diversos teólogos. Dado como um dos princípios da fé cristã, Deus é afirmado como Onipotente dos primeiros aos últimos livros da Bíblia. Paolo Ricca procura responder às confusões sobre a onipotência e impotência de Deus neste artigo, traduzido ao português e publicado pelo IHU, a partir da pergunta "é possível ser cristão sem acreditar que Deus é onipotente?". O teólogo italiano então resgata as explicações de Karl Barth, Dietrich Bonhoeffer, protestantes, e Hans Jonas, judeu, sobre o tema.
Para Barth "falar da impotência de Deus significa simplesmente esquecer que se fala dele (...) Deus não é nada semelhante a uma sombra, a um fantasma inofensivo, é o contrário da impotência. Mas também é o contrário da onipotência humana".
Para Bonhoeffer, "Deus se deixa empurrar para fora do mundo, sobre a cruz. Deus é impotente e fraco no mundo, mas é justamente assim que ele permanece conosco e nos ajuda. Claramente se diz em Mateus 8, 17 que Cristo não nos ajuda em virtude da sua onipotência, mas sim em virtude da sua fraqueza, de seu sofrimento! [...] Deus da Bíblia, que conquista poder e espaço no mundo por meio da sua impotência"
Para Jonas, a crueldade do Holocausto o fez questionar a bondade e a onipotência de Deus: "Foi-me ensinado, quando criança, que Deus é bom e onipotente. Depois de Auschwitz, não posso mais acreditar que Deus seja ambas as coisas, porque, se fosse verdadeiramente bom e onipotente, teria impedido Auschwitz. Se não fez, quer dizer ou que ele não é bom (portanto, permaneceu indiferente diante daquela tragédia inaudita), ou que não é onipotente (portanto, não pôde ou não soube impedi-la). Assim, devo escolher entre acreditar em um Deus onipotente, mas que não é bom, ou em um Deus bom, mas que não é onipotente. Prefiro acreditar em um Deus bom, mas não onipotente".
Por fim, Ricca, conclui: "Deus é verdadeiramente onipotente por saber também renunciar à sua onipotência (como fez Jesus: Filipenses 2, 5-11!), assim como Deus é verdadeiramente Deus por saber se tornar homem, é verdadeiramente santo por também saber que se "fez pecado por nós" (II Coríntios 5, 21), é verdadeiramente Criador por querer e poder também se tornar criatura. Esse é o mistério do Deus no qual acreditamos, um mistério do qual emana uma grande luz. Deus é onipotente? Sim, no sentido de que é amor, e o seu poder nada mais é do que o poder do amor. Com a sua vida e a sua morte, Jesus retratou esse amor ao vivo, diante de nossos olhos, e nós vimos que é um amor desarmado, ou seja, um amor que não se trai impondo-se com a força".
"A deposição da Cruz", de Rogier van der Weyden, 1435
Bonhoeffer, que era da resistência alemã contra o nazismo, foi preso em 1943 e executado em 09 de abril de 1945 pelo governo. Suas cartas no cárcere foram de profunda teologia, e essa produção foi comentada em entrevista com o teólogo luterano Harald Malschitzky à Revista IHU On-Line: "para Bonhoeffer não existe o deus ex-machina que, de uma hora para a outra, inverte as coisas. O ser humano secularizado precisa assumir o seu papel no mundo etsi deus non daretur (como se deus não existisse). Cabe aos cristãos apontar rumos éticos de convivência e partilha. Aqui uma razão a mais para a decisão pessoal e radical de Bonhoeffer como cristão. É ilustrativo que nos campos de concentração ele passava muito tempo conversando com funcionários e guardas que o vigiavam, porque, antes de tudo, eram criaturas amadas por Deus e muitos sofriam com o que acontecia".
O suíço Jacques Neirynck também aponta como a afirmação sobre Deus onipotente perde presença com o tempo, e reforça a resposta de que Deus não é onipotente, nem impotente. "O Criador, que não é onipotente, também não é impotente, pois a sua criação se desenrola diante dos nossos olhos. Nada explica isso melhor do que o fenômeno da evolução biológica, cuja descoberta escandalizou tanto por nada menos do que dois séculos. Ela combina a aleatoriedade das mutações com a necessidade da sobrevivência: ela não tem mais nada mágico, porque aplica leis intangíveis, mas cria perfeição, tentando todas as possibilidades e eliminando as imperfeições. Essa concepção permite responder claramente a uma pergunta contínua: 'Por que Deus permite isso?' – porque não é onipotente. Se nos esforçarmos para ler os Evangelhos, descobrimos aí que Jesus, no despojamento da manjedoura ou na infâmia da crucificação, dá a imagem de um Pai que não é onipotente", escreve em artigo publicado pelo IHU.
"O mundo é um moinho", de Cartola
Neirynck aponta que a compreensão de Deus onipotente está relacionado com o poder político da Antiguidade. Por isso, o teólogo Andrés Torres Queiruga tem dedicado suas pesquisas a pensar uma teodiceia moderna, que não é maniqueísta e assume que o mal é inevitável no mundo. Esse é o tema do seu novo livro publicado na Itália, e comentado por Bruno Scapin, em artigo traduzido e publicado pelo IHU.
Queiruga adota o termo ponerologia, para o estudo do mal. Segundo o teólogo, em artigo publicado pelo IHU, há duas consequências que uma teodiceia atualizada propicia: "A primeira refere-se a preservar a integridade da própria imagem de Deus. A incapacidade de dar uma resposta válida ao falso dilema levou muitos teólogos a negar a onipotência divina, tornando quase na moda, mesmo entre os pregadores, falar da 'impotência' de Deus e que ele próprio estaria sujeito ao sofrimento. A segunda consequência oferece um interesse mais direto: a relação entre os dois caminhos da teodiceia. Na realidade, eleva-o ao ponto culminante, porque, ao liberar a confiança da sombra insidiosa da suspeita, permite que seja vivida de forma limpa e totalmente segura. Além disso, em resumo, retorna a primazia frente ao registro lógico".
Queiruga também abordou o problema do mal em evento promovido pelo IHU em 16-03-2021. Confira abaixo o vídeo da conferência e a cobertura do evento neste link.
Ainda no contexto da pandemia, nesse março de 2021, o jornal italiano Adista repercutiu o debate entre dom Massimo Camisasca, do movimento Comunhão e Libertação, e o teólogo Vito Mancuso. Para o primeiro, a pandemia era um sinal de como "Deus usa o mal para a nossa conversão, para nos chamar de volta ao que é essencial, ao que resta, à vida que não acaba". Ao que Mancuso respondeu rotundamente: "Afirmar que Deus ‘usa’ o mal para a nossa conversão significa afirmar que Deus usa a dor e a morte de alguns seres humanos (que ele, o Todo-poderoso, poderia impedir) para converter outros seres humanos, neste caso ‘nós’. A história do século XX é mais do que suficiente para perceber que já não é possível manter unidas onipotência de Deus e essência divina como amor". Os trechos do debate foram traduzidos e publicados pelo IHU.
Mateus 27, 45-50:
“E desde a hora sexta
houve trevas sobre toda a terra,
até a hora nona. E por volta da hora nona Jesus gritou alto e disse:
'Eli, Eli, lamá sabactâni?'
'Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?'”
Paixão segundo São Mateus, BWV 244, de Johann Sebastian Bach.
A posição de Camisasca pode ser vista como uma violência ainda maior sobre o sofrimento de tantas vítimas da covid-19 e seus familiares. A lenta morte de Jesus sob tortura, seu grito desesperado na cruz à procura de Deus, é a dor das milhões de pessoas que perderam a vida sufocadas, isoladas, sem ao menos uma despedida.
O pastor Alonso Gonçalves, em entrevista ao IHU, reflete sobre o peso da pandemia na fé das pessoas: "as pessoas se questionam onde está Deus quando as tragédias acontecem. Esse questionamento é perfeitamente compreensível. Mas o que não podemos esquecer é que o próprio Deus já presenciou e participou do sofrimento. Uma segunda experiência de Deus com o sofrimento se deu no Calvário, outra tragédia que Deus participa e sofre junto com o seu filho. No Gólgota, aparece a impotência divina. Deus não planeja, muito menos permite, mas suporta a morte como algo inevitável por amor. Ele sofre com Jesus na cruz e por essa razão ele sabe muito bem o que é passar por tragédias".
Para o teólogo espanhol José María Castillo é sobre o sofrimento que Jesus se ocupou. "Mas Jesus entendeu e praticou a religião de tal maneira que o primeiro e mais importante para ele nunca foi seguir exatamente os rituais e normas da religião. Tampouco foi prioridade, para Jesus, submeter-se aos sacerdotes. A prioridade, para Jesus, era sempre aliviar e remediar o sofrimento dos enfermos, dos pobres, dos mais desamparados deste mundo. É claro que Jesus veio nos dizer que ele é o Filho de Deus. Jesus é Deus. Mas no fundo, o que isso significa? Significa que Deus está onde o sofrimento dos enfermos e a fome dos necessitados são remediados", escreve em artigo publicado pelo IHU.
O problema do sofrimento remete também à história de Jó, como explicou o jesuíta José Luis Caravias, neste artigo. Para Caravias, Jó não era paciente, mas enfrentava o sofrimento com rebeldia: "Jó havia se dirigido a Deus várias vezes para protestar; agora ele o faz para aceitar e se submeter; não por resignação, mas por humilde contemplação. Apesar de todos os seus protestos, ele sempre manteve sua fé na proximidade de Deus. Sua queixa e protesto nunca foram maiores do que sua esperança e confiança".
Caravias - que faleceu na última semana de março, aos 85 anos - afirmava que o livro de Jó apresentava como se pode acreditar em Deus pelo sofrimento dos inocentes que se rebelam e lutam para sair de sua dor: "É uma questão de rezar a Deus do ponto de vista da rebelião, mas respeitando seu mistério. Deus gosta que protestemos contra nossos males, desde que nos dirijamos a Ele com toda sinceridade, sem que o façamos responsável por nossos sofrimentos".
Para Alonso Gonçalves, porém, o sofrimento ainda pode se tornar esperança "à luz da experiência de Cristo". "Diante da tragédia da morte, Deus ressuscitou um crucificado. Portanto, a ressurreição é uma esperança no horizonte, porque ela (a esperança) não morreu com o crucificado, antes ela ressuscitou com o ressuscitado", escreveu.
"O Senhor prometeu o bem para mim.
Sua palavra minha esperança assegura.
Ele será meu escudo e parte de mim.
Enquanto a vida durar".
"Amazing Grace", interpretada por Andrea Bocelli, no domingo de Páscoa, 12-04-2020, no Duomo de Milão, vazio devido à pandemia.
Na Festa da Anunciação, em 25-03-2021, o Papa Francisco publicou a Carta Apostólica Candor lucis aeternae – Esplendor da vida eterna, pelos 700 anos da morte de Dante Alighieri. O papa afirmou que Dante é um "profeta da esperança", por mostrar os caminhos de superação dos males, dos pecados às bem-aventuranças, da saída do Inferno ao Reino dos Céus.
O exemplo de Dante também foi citado pelo cardeal Gianfranco Ravasi, em entrevista publicada pelo IHU: "Dante é realmente um profeta da esperança, como o Papa Francisco o considera. Em tempos de pandemia, vivemos um período de dor, medo e desconforto. Dante também viveu um período assim, e mostrou-nos como a grande poesia e a fé podem florescer mesmo numa terra devastada".
Cesar Kuzma, teólogo e professor da PUC-Rio, na palestra proferida no XVIII Ciclo de Páscoa do IHU, procurou responder como encontrar a esperança em meio a tantas mortes causada pela pandemia. Para ele "estamos passivos politicamente, passivos diante da doença, ao mesmo tempo em que a dor nos incomoda, nos aniquila, nos mata. Como ter esperança se o mundo parece não ter esperança? Penso que a teologia da cruz, de Jurgen Moltmann, deve nos interpelar, nos incomodar, nos fazer lutar pela vida, para que a experiência de ressurreição, nos traga uma experiência de insurreição".
O teólogo Carlos Mendoza Álvarez, do Boston College, também em palestra do XVIII Ciclo de Páscoa, procurou responder como falar de Deus em meio ao sofrimento humano. Para Álvarez, o processo de cuidado reconstrução dos corpos e laços são os passos necessários para ver Deus e chegar à esperança da eutopia de Deus. "Precisamos nos redescobrir como sobreviventes [em meio à violência], temos uma vulnerabilidade compartilhada, somos corpos 're-membrados' do Messias. Num segundo momento precisamos da eucaristia, da mesa comunal, de reconstrução do tecido social, não apenas político, mas teologal, de vivermos 're-membrados' na mesa comum - como na mesa comum das vacinas. E então poderemos celebrar a esperança, à medida que vivemos na mesa comum, remembramos os corpos, a 'eu-topia do Abbá de Jesus', pode se fazer presente como um gesto eucarístico, uma espiritualidade da vida, do cuidado dos corpos, porque se trata da redenção das violências que estamos enfrentando".
Mas é justamente no Domingo de Páscoa que a esperança se realiza. Depois do sofrimento e da morte, a Ressurreição "é a concretização da utopia pregada por Jesus, o Reino de Deus que implica a superação da morte e do morrer", afirma Leonardo Boff, em entrevista ao IHU.
Em outra entrevista concedida ao IHU, Boff ressalta porque a Ressurreição é uma revolução na evolução: "A Ressurreição é mais que a superação da morte ou um fato que mostra aos inimigos de Jesus que ele tinha razão e que Deus estava do lado dele. Isso seria um espírito menor e vingativo. A Ressurreição é muito mais: é a plenificação do ser humano. Somos, como humanos, um projeto infinito. Nada que encontramos neste mundo é adequado ao nosso impulso infinito. A Ressurreição comparece como aquele momento em que a nossa ânsia de infinito se realiza". Em suma, é "irrupção do ‘novissimus Adam’", o "novo homem".
"Quero a alegria de um barco voltando
Quero ternura de mãos se encontrando
Para enfeitar a noite do meu bem.
Ah, como este bem demorou a chegar
Eu já nem sei se terei no olhar
Toda pureza (ternura) que eu quero lhe dar"
"A noite de meu bem", de Dolores Duran, interpretada por Maysa.
Paixão Segundo São João de Bach: fraqueza humana e consolação divina. Audição comentada por Yara Caznok
Do encontro entre música e espiritualidade se abrem possibilidades de vivência do Mistério Pascal. Pela maestria de Johann Sebastian Bach (1685-1750), com sua obra Paixão Segundo São João – BWV 245, composta em meados de 1724, um grupo de pessoas atentas e dispostas vai se deixando conduzir pela beleza, profundidade e dinamismo desta obra-prima do barroco, comentada pela professora de música Yara Caznok (UNESP-SP). A partir dos capítulos 18 e 19 do Evangelho de São João, Bach consegue oferecer uma obra musical capaz de integrar os sentimentos e vivências da Paixão de Jesus Cristo, conduzindo os ouvintes a uma intensa meditação a respeito do genuíno sentido da entrega do Filho de Deus em favor de toda a humanidade.
A transcendência da voz e a beleza de Deus
A transcendência da música é capaz de traduzir a fé em beleza artística. Sustentada pelo mais belo dos instrumentos, a voz, a Missa Papae Marcelli de Giovanni Pierluigi, da Palestrina, é uma composição da segunda metade do século XVI e uma das mais belas composições de todos os tempos construída especialmente para ser executada por um coral. “Palestrina, como é conhecido Giovanni Pierluigi, é considerado o príncipe da música, até hoje ele é estudado. Quem pretende escrever para música precisa estudá-lo”, destaca Yara Caznok, professora da Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho - Unesp.