25 Março 2021
"Ninguém mais duvida que a pandemia seja um daqueles eventos que marcam um divisor de águas na história da humanidade, um momento decisivo. Talvez nem mesmo em tempo de guerra a vida tenha mudado tão radicalmente. É legítima a previsão que uma mudança dessa magnitude esteja destinada não apenas a marcar nosso modo de vida atual, mas também a deixar rastros profundos sobre aquele que teremos quando a pandemia acabar", escreve Giuseppe Savagnone, professor de doutrina social da Igreja no departamento de jurisprudência da LUMSA (Libera Università degli Studi Maria SS Assunta de Roma.), sede de Palermo, em artigo publicado por Settimana News, 24-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ninguém mais duvida que a pandemia seja um daqueles eventos que marcam um divisor de águas na história da humanidade, um momento decisivo. Talvez nem mesmo em tempo de guerra a vida tenha mudado tão radicalmente.
É legítima a previsão que uma mudança dessa magnitude esteja destinada não apenas a marcar nosso modo de vida atual, mas também a deixar rastros profundos sobre aquele que teremos quando a pandemia acabar.
Provavelmente, aliás, esses rastros se fixarão em nosso próprio ser. Como serão, quando crescerem, os filhos da geração lockdown, aquela que não pôde frequentar, na melhor das hipóteses, a escola regularmente por um período de tempo que ainda não há como determinar? Quem não pôde viver aquelas experiências de relações, lazer, viagens, que as gerações anteriores, pelo menos nos países industrializados, haviam vivido?
Quanto às consequências do fechamento de escolas, é previsível que essas crianças terão para sempre lacunas culturais, mais ou menos graves dependendo de suas condições sociais e econômicas, pois está comprovado que o ensino à distância (EAD) penaliza muito mais os pobres (menor disponibilidade de dispositivos técnicos adequados, casas apertadas onde não é fácil isolar-se, falta de apoio familiar, coisas das quais muitas vezes desfrutam os filhos de famílias mais favorecidas socialmente). As diferenças nas oportunidades de emprego e de ganho, já agora enormes, irão inevitavelmente aumentar.
Mas até mesmo os filhos dos ricos carregarão o estigma de uma experiência de isolamento sem precedentes que está afetando sua alegria de viver e sua capacidade de ter esperança. Mesmo os mais maduros e equilibrados não podem deixar de sentir o sofrimento por meses e anos naturalmente destinados à expansão de sua experiência de vida e, ao invés, de fato perdidos. O que isso acarretará em seu equilíbrio como adultos? Não podemos dar respostas, mas a questão continua a ser inquietante.
No entanto, é verdade que esses efeitos duradouros da pandemia podem ser vistos não apenas como uma consequência negativa de uma catástrofe, mas também, por outros ângulos, como uma oportunidade.
Por exemplo, o smart-working. O vírus nos obrigou a descobrir que em muitos casos não era necessário enfrentar longos e cansativos trajetos para ir trabalhar (ida e volta!), de trem ou de carro, para chegar ao escritório todos os dias, e que grande parte do que se poderia fazer dentro das grandes estruturas físicas de concreto, aço e vidro, também podia ser desempenhado confiando nas vias impalpáveis da rede.
Não se trata apenas do trabalho dependente. O mesmo também está acontecendo para muitas reuniões de negócios ou mesmo para encontros que envolviam a convergência de participantes de diferentes localidades, levando dias inteiros para a viagem e a estadia longe de casa. Pelo menos para alguns deles, está ficando claro que, encontros via zoom ou meet, podem igualmente permitir trocar ideias e estabelecer entendimentos, olhando-se nos olhos (esta é uma diferença fundamental em relação ao telefone).
Uma descoberta que é difícil que seja esquecida quando se voltar à vida "normal". São demasiadas as vantagens - em termos econômicos, mas sobretudo em termos de tempo e qualidade de vida - desta redução drástica dos deslocamentos para o trabalho.
Se essa perspectiva, que não parece arriscada, se confirmar, as consequências serão enormes. Já agora, os especialistas preveem que, em cidades como Milão, enormes espaços atualmente usados como escritórios terão que ser remodulados para novas finalidades. Isso é verdade para todas as grandes metrópoles, que verão sua cara mudar. Fala-se em novos espaços para acolher atividades que favoreçam a vida comunitária dos respectivos bairros. Mas está em aberto todo um leque de possibilidades que ainda precisam ser exploradas. Também no que se refere à redistribuição das áreas destinadas à construção e aquelas, ao contrário, dedicadas a parques públicos.
Tudo isso já acarreta e acarretará cada vez mais uma recaída nas relações entre as periferias e o centro. Com a ausência do êxodo cotidiano que levava os habitantes das primeiras a se deslocarem diariamente para o segundo, será mais plausível uma requalificação de bairros até aqui usados como simples dormitórios, devolvendo-lhes uma plena dimensão humana.
Aliás, muitos pensam que a possibilidade de trabalhar em casa, junto com o problema do distanciamento (que provavelmente permanecerá mesmo quando a pior fase da pandemia tiver passado), favorecerá um renascimento dos vilarejos - em nosso país alguns belíssimos e quase desabitados -, onde a qualidade de vida, graças ao contato com a natureza, certamente será melhor do que nas cidades superlotadas de hoje.
Com benefícios para o trânsito, que inevitavelmente será aliviado por essa rarefação dos deslocamentos físicos. Até porque a necessidade de evitar transportes públicos lotados está favorecendo a disseminação de patinetes e bicicletas elétricas, fazendo com que muitos descubram sua comodidade e permitam prever que, mesmo após o fim da pandemia, esses veículos continuarão a ter uma difusão impensável até alguns anos atrás.
Mesmo para o smart-working, entretanto, seria unilateral nos limitarmos aos aspectos positivos do legado que a covid parece destinado a nos deixar. Já hoje existem aspectos extremamente problemáticos que devem ser considerados, para evitar que se perpetuem e pesem no nosso futuro.
Porque é verdade que trabalhar em casa resolve uma série de problemas, mas ainda assim deixa outros e às vezes cria novos. Um destes é o relacionamento com os filhos, especialmente se forem crianças. Sabe-se que no período de covid o acesso das mulheres ao trabalho está diminuindo, mesmo de casa. E a razão é evidente: o fechamento de escolas impossibilita não só deixá-los sozinhos em casa - e isso, aliás, o smart-working o evitaria - mas também outras atividades distintas do cuidado. Aqui, porém, a responsabilidade não é o tipo de trabalho, mas sim a ausência de creches e outras estruturas aptas a entreter os filhos menores. Desde antes da covid, a Itália não é um país para mães.
Por outro lado, outro problema, que todos os trabalhadores sofreram muito neste período, está intimamente ligado à fórmula do trabalho em casa, que é a invasividade das atividades profissionais na vida pessoal. Na verdade, se trabalha mais, porque se trabalha sempre.
A vingança do espaço, derrotado com a possibilidade de evitar sua tirania, se manifesta no fato de que, sem ele, a fronteira entre o ambiente de trabalho e aquele da vida pessoal e familiar se estreita e se torna permeável. Aquele que saia da escola ou do escritório podia deixar para trás os problemas que tinha naquele âmbito. Agora, porém, tudo se tornou, por assim dizer, um ambiente de trabalho. Nunca nos afastamos totalmente dele.
Uma das ameaças mais graves à vida de nossas sociedades "evoluídas" era a natureza excessivamente absorvente do trabalho. Não que essa dimensão não faça parte da vida de forma essencial e não constitua um valor em si mesma. Não se trabalha apenas para viver. Mas não pode e não deve esgotar o ser humano em todos os aspectos de seu ser e de sua realização. Não se vive apenas para trabalhar. O trabalho em casa corre o risco de agravar esta tendência e torná-la incontornável.
Alguns podem perguntar por que - em um momento em que, na Itália e no mundo, a catastrófica "terceira onda" da pandemia está sendo registrada, com dezenas de milhares de pessoas infectadas e um número de mortes correspondente - se dedicar a previsões que não dizem respeito às urgências mais candentes do presente. A resposta, muito simples, é que os seres humanos, ao contrário dos animais não humanos, sempre foram capazes de olhar para o presente não apenas para enfrentá-lo de imediato, mas para interpretá-lo e captar os sinais de desenvolvimentos potencialmente presentes nele.
A covid não deixará o mundo como está. E é ilusório acreditar que o amanhã deverá ser necessariamente melhor do que o presente, que já deixa muito a desejar. A verdade é que poderia ser ainda pior. Somos nós, seres humanos, que determinamos os efeitos dos eventos naturais em nossa convivência.
Mas, para fazer isso com responsabilidade, precisamos aprender a ler o impacto que eles têm na sociedade e compreender seu sentido. O smart-working é apenas um exemplo. Planejar o futuro, sentindo-se responsável por ele, não é menos importante do que administrar o presente. O nosso destino não está escrito nas estrelas. E também não o é aquele da nossa civilização após o coronavírus.
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Covid e seu legado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU