15 Março 2021
A Igreja não pode mudar uma vírgula da palavra de Deus. Mas deve estar pronta para mudar todos os preconceitos que inevitavelmente associou à Palavra de Deus. Se a tradição tem um futuro, este passa por essa contínua purificação, na qual a continuidade da Palavra exige a descontinuidade dos preconceitos.
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 13-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Li um texto de Ludovica Eugenio, no site Adista (“E agora homilias e diaconato para as mulheres’, defende o teólogo tcheco Thomas Halik”), que relata uma série de palavras importantes do teólogo tcheco Tomáš Halík, às quais parece oportuno chamar a atenção.
Eis o texto que acho mais interessante: um texto que fala da “vergonha do teólogo”:
“Sobre a teoria do gênero também é presumível que se deem passos: em dez anos, escreve Halík em seu livro, a Igreja olhará para trás com a mesma vergonha que se sente hoje lendo as declarações do século XIX sobre a liberdade de imprensa, a liberdade de consciência e a liberdade religiosa. ‘Sentiremos vergonha de ter recebido os impulsos do Papa Francisco e de não os termos realizado. O mesmo aconteceu com o Pacto das Catacumbas. Houve impulsos muito importantes por parte de alguns bispos conciliares aos seus coirmãos. Não foram ouvidos. O Papa Francisco realizou alguns deles no seu estilo de vida. Esses sinais influenciam o modo de pensar das pessoas. Esse é o motivo pelo qual Deus nos manda profetas.”
Nasceu um sentimento de “vergonha” quando se compreende a inadequação daquilo que foi feito ou dito, em relação àquilo que era necessário e oportuno. A teologia também pode melhorar se ainda souber sentir vergonha. Mas é preciso prestar muita atenção: o escândalo que pode surgir em nós, ao ler algumas afirmações do passado, não pode deslizar em uma espécie de “álibi”.
Seria muito cômodo pedir a Agostinho, a Tomás, a uma proposição tridentina ou a um texto dos anos 1800 que se “envergonhasse” por afirmações que se tornaram inaceitáveis para nós. Somos nós que devemos sentir vergonha quando permanecemos fixados em expressões que não são mais sustentáveis.
A tradição é feita de coisas vivas e de coisas mortas, de coisas saudáveis e de coisas doentes, de fontes autênticas e de fontes espúrias. E nós não somos dispensados do discernimento.
Em “Grandes esperanças” – o grande romance de Dickens –, em um certo momento, o protagonista, o jovem Tip, se envergonha dos seus “velhos”: e, assim, sente vergonha da sua vergonha. Na Igreja, esse justo respeito pelo passado também pode conferir autoridade a tudo o que passou: não só à Palavra de Deus, mas, junto com ela, os axiomas culturais e sociais com que achamos que podíamos identificá-la. Não devemos nos envergonhar do passado: devemos nos envergonhar de nós mesmos quando não conseguimos pensar melhor do que o passado e não conseguimos escapar dos seus erros.
Gostaria de dar dois exemplos dessa “vergonha”, que, para nós, pode ser um fato muito salutar. Tomo o primeiro exemplo de um texto de São Tomás de Aquino sobre o batismo; o segundo, de um número da revista La Civiltà Cattolica de 1853, que dedica um longo texto à “Cabana do tio Tomás”.
As argumentações dos homens medievais, que ainda são muito preciosas para nós, utilizam o saber à sua disposição. Quando Tomás fala da relação entre a mulher e o batismo, ele introduz, en passant, uma referência à fisiologia feminina diante da qual nós sentimos vergonha. Não por ele que o disse, mas sim por nós que o lemos. Trata-se de STh. III, 67, 4, ad 3. A pergunta se refere a “se a mulher pode batizar”.
“Ad tertium dicendum quod in generatione carnali masculus et femina operantur secundum virtutem propriae naturae, et ideo femina non potest esse principium generationis activum, sed passivum tantum. Sed in generatione spirituali neuter operatur virtute propria, sed instrumentaliter tantum per virtutem Christi. Et ideo eodem modo potest et vir et mulier in casu necessitatis baptizare. Si tamen mulier extra casum necessitatis baptizaret, non esset rebaptizandus, sicut et de laico dictum est. Peccaret tamen ipsa baptizans, et alii qui ad hoc cooperarentur, vel Baptismum ab ea suscipiendo, vel ei baptizandum aliquem offerendo.”
A distinção que Tomás propõe entre “geração natural” e “geração espiritual” é iluminadora. Mas é grande a sombra que Tomás não sabe iluminar sobre a questão, pois ele utiliza uma compreensão da “geração natural” em que a realidade fisiológica masculina e feminina é compreendida de acordo com os preconceitos sociais e culturais da época. A atividade masculina é contraposta à passividade feminina. E é significativo que a realidade espiritual mantém uma certa autonomia da natural, mas não impede que se “reconheça culpada” a mulher por ter rompido um “ordo” que nada tem a ver nem com a revelação nem com a criação.
Aqui, ocorre uma “substituição” da criação pelo preconceito cultural e social, que nem mesmo a sutileza de Tomás soube evitar: era mais forte do que o seu gênio. Quando nós estudamos Tomás hoje como “testemunha” da tradição, não devemos confundir o grande requinte das suas distinções com a repetição do preconceito pseudocientífico da sua época. A tradição cristã pretende estar liberta dos preconceitos. Não Tomás, mas quem quer que hoje repita aqueles preconceitos, talvez os deslocando para uma região “revelada” do conhecimento, deveria se envergonhar.
Em um famoso texto, no qual se propunha a “indexação” da “Cabana do tio Tomás”, a revista La Civiltà Cattolica, em 1853, propunha uma descrição dos “escravos” que facilmente poderíamos definir como “escandalosa”. Eis o texto:
“O escravo negro ou de outra tonalidade que não seja branca é, como o mancípio entre os pagãos, estritamente não uma pessoa, mas uma coisa, embora (se entenda) uma coisa viva e semovente... uma raça, digamos, que, colocada no ínfimo grau da espécie humana, na tez negra que desgraça o seu ébano, na crina lanosa e aveludada, na face amassada e estranhamente obtusa, no olho que, quando não é estúpido, ou é feroz ou revela a astúcia de uma raposa, nas faculdades intelectuais lentas, circunscritas, inertíssimas... Assim neles a condição de escravos parece vir a confirmar aquilo que a natureza havia disposto; e a repugnância que as outras raças encontram ao se aproximar deles parece condená-los a uma eterna servidão. Agora todos veem que semelhantes diferenças não são removidas pelos artigos dos códigos. Quer a escravidão seja admitida legalmente ou não em um Estado da Confederação, sempre será verdade que um branco não se sentará eternamente na mesma mesa com um homem de cor, não quererá entrar com ele na mesma carruagem ou compartilhar o banco, não apenas no teatro, mas até no templo...”
Não é difícil nem se escandalizar nem se envergonhar diante de tal texto. Porém, gostaria de me perguntar: o que aconteceu para que nós possamos considerar um texto assim totalmente inaceitável? É fácil demais simplesmente jogar a cruz sobre quem o escreveu há 160 anos. Quem, há 160 anos, realmente se escandalizaria? O próprio autor, perto do fim do texto, permite-nos entender melhor os limites da sua leitura e também a sua verdadeira intenção:
“Que os senhores sejam cristãos e vejam nos escravos verdadeiros irmãos de criação, de redenção, de bem-aventurança; que os escravos sejam cristãos e vejam nos seus senhores as imagens de Deus e os sirvam com fidelidade e com amor; que a legislação seja cristã e que o Evangelho corrija pouco a pouco os arbítrios legais, as prescrições desnaturadas, os castigos atrozes.”
Aqui me parece claro que a passagem de uma leitura “estática” a uma visão “dinâmica” da ordem social e cultural é um dos pontos-chave do desenvolvimento desses 160 anos. Neste caso, não se deve invocar uma “revelação transcendente”, que vincula o pensamento à mera repetição, mas sim uma consciência civil e social, que amadureceu uma visão mais elevada e mais verdadeira. Uma visão que não condiciona mais o Evangelho em estruturas sociais distorcidas e injustas.
Aquilo que se diz aqui do “escravo negro ou de outra tonalidade” responde ao mesmo mecanismo que usamos, e continuamos usando, com o judeu, com o homossexual, com a mulher. As categorias marginais são “condenadas” a permanecer como tais por uma leitura estática da ordem social. Mesmo sem complacência e até mesmo com dor, tendia-se a reconhecer que é Deus quem quer que seja assim. Aquilo que era se identificava com aquilo que deve ser.
Sobre os mesmos temas sobre os quais escreveram Tomás no século XIII e a La Civiltà Cattolica no século XIX, também nós somos chamados à prova. Os argumentos que usamos se fundamentam em “evidências” que não são nem rigorosamente demonstráveis nem incontestáveis.
Sobre a “ordenação da mulher”, não há “palavras irrefutáveis” na Escritura. Há práxis de autoridade, usos dignos de reconhecimento, mas baseados em motivações não irrefutáveis. É muito fácil, até mesmo para nós, em 2021, confundir a tradição com axiomas dos quais nos envergonharemos daqui a 20 anos ou dos quais, em alguns casos, deveríamos ter nos envergonhado há pelo menos tantos anos! Com os limites e as fragilidades de cada geração, é salutar para nós descobrir que uma parte da tradição não é saudável, mas está doente. E está doente não porque está irremediavelmente distorcida, mas porque assumiu imprudentemente, ao longo da história, axiomas, preconceitos, princípios que, depois, se revelaram parciais, incompletos ou desviantes. Não se defende a tradição perpetuando os preconceitos que a fazem adoecer.
A tradição permanece viva apenas quando cada geração sabe abrir mão daquilo que a pesa e sabe valorizar aquilo que a torna viva e vivaz. Como diz Halík, sobre a “teoria do gênero”, frequentemente mostramos apenas “preocupação” com aquilo que se perde. É a mesma atitude de 160 anos atrás a propósito da escravidão: temia-se que, se os escravos estivessem convencidos de “serem iguais” aos outros, o mundo e o próprio Deus seriam subvertidos no seu “ordo”.
Confundir os pressupostos culturais de uma época com a revelação de Deus talvez seja o ponto mais difícil de desvendar em toda passagem histórica. E a vergonha pode nos ajudar, mesmo quando imaginamos descobri-la no rosto dos nossos netos, quando eles lerão as coisas que hoje ousamos repetir, aquelas que quisemos calar ou aquelas novas que não soubemos reconhecer.
Uma tradição permanece viva se ainda sabe se envergonhar das suas palavras arriscadas e dos seus silêncios inoportunos. Palavras e silêncios que, assim, graças às vergonha que provocam, podem mudar, inaugurando uma nova época.
A Igreja não pode mudar uma vírgula da palavra de Deus. Mas deve estar pronta para mudar todos os preconceitos que inevitavelmente associou à Palavra de Deus. Se a tradição tem um futuro, este passa por essa contínua purificação, na qual a continuidade da Palavra exige a descontinuidade dos preconceitos.
Por isso, o acesso da mulher aos “ministérios instituídos” deve ser saudado como a superação do preconceito que separou, por tantos séculos, a mulher do exercício público da autoridade, também na Igreja.
Com Tomáš Halík, podemos, portanto, esperar que agora se possa reconhecer à mulher a possibilidade de acessar o grau do diaconato do ministério ordenado, sem ter a pretensão de utilizar argumentos velhos e vazios para impedi-las disso. Quem ainda quiser usá-los, será reconhecido pelo rosto corado de vergonha. Talvez não o seu, mas certamente o dos seus netos. Precisamos da profecia de netos que coram e permitem que os avós se arrependam. É precisamente a tradição que nos pede isso: não aquela que habita os museus do passado, mas sim aquela que corre nos jardins do futuro.
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A salutar vergonha do teólogo e a autoridade do futuro. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU