02 Março 2021
Diretor do Instituto Butantan diz que, se não fosse governo, Brasil já teria vacina desde dezembro, e aponta obscurantismo científico das autoridades como responsável direto por nova onda explosiva de covid-19.
Fazia exatamente três anos que o médico hematologista Dimas Tadeu Covas estava à frente do Instituto Butantan quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o mundo vivia uma pandemia: a de covid-19.
Na corrida aberta em busca de uma vacina, ele apostou em um parceria internacional que, meses à frente, se revelou minimamente eficaz: em janeiro de 2021, a campanha de imunização brasileira começou justamente com produto desse acordo, no caso a vacina Coronavac, desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac.
No momento em que o Brasil vive seu pior momento desde o início da pandemia, com mais de 250 mil mortos e hospitais operando no limite de suas capacidades, Covas diz que "a interferência política na saúde pública tem sido uma grande barreira para o combate adequado à epidemia e explica muito a posição do Brasil como vice-campeão mundial em mortes pelo covid-19".
"A negação da gravidade da pandemia, a disseminação de tratamentos sem comprovação científica, o combate deliberado ao uso de máscaras e às medidas de restrição de circulação são os grandes responsáveis, neste momento, pela segunda onda explosiva que o país está sofrendo”, diz ele. "A história colocará essa tragédia na conta desses negacionistas".
O Instituto Butantan é uma entidade pública ligada ao governo estadual paulista. Nos bastidores da crise com o governo federal estão os dividendos políticos de dois protagonistas do cenário político brasileiro: o governador de São Paulo, o tucano João Doria — que desde o princípio busca para si o capital político da vacina do Butantan — e o presidente da República Jair Bolsonaro — que em diversos episódios buscou difamar o imunizante.
O diretor do Butantan, contudo, frisa que à despeito dessa batalha, o instituto paulista "continuará como o principal fornecedor [de vacinas ao Ministério da Saúde] por muito tempo ainda”.
A entrevista é de Edison Veiga, publicada por Deutsche Welle, 01-03-2021.
Há um ano, o Brasil teve o primeiro caso oficialmente registrado de covid-19. Desde essa época, estava aberta uma corrida mundial pelo desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus. Quando o Butantan decidiu procurar um parceiro para a produção de vacinas?
O Instituto Butantan mantém-se alerta para o surgimento de epidemias, inclusive participa de organismos internacionais como o CEPI [Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias] cujo objetivo maior é a preparação para o enfrentamento de epidemias. Com o surgimento da epidemia de covid-19, imediatamente iniciamos o trabalho de prospecção de vacinas e de rotas tecnológicas para a sua produção. Neste caminho, já tínhamos conhecimento prévio da Sinovac, [empresa] que visitamos em 2019 e da qual também recebemos uma visita para discutirmos cooperação em vacinas. Já existindo esse aproximação e considerando que a Sinovac já tinha uma vacina em desenvolvimento em cuja tecnologia [de vírus inativado] temos experiência, nada mais apropriado. A parceria foi firmada preliminarmente em maio e assinada em junho do ano passado. O acordo, amplo, incluía o desenvolvimento de estudo clínico de fase 3 para a vacina no Brasil.
Na época em que foi firmada essa parceria, como o senhor avaliou os riscos — no sentido de a vacina não se demonstrar eficaz ou viável? Houve momentos em que conviveu com dúvidas se daria certo a parceria, se os resultados viriam?
A parceria foi firmada já com o conhecimento dos resultados preliminares das fases pré-clínica e clínica de fase 1 e 2. Os resultados promissores nos animaram para prosseguir para a fase 3, que seria importante para a vacina em termos mundiais. Obviamente, todo estudo científico pode não ter resultados de acordo com o desejado, mas sempre acreditamos e trabalhamos duramente para conseguir realizar o estudo no menor tempo possível e com o maior rigor necessário para demonstrar a utilidade da vacina no combate ao covid-19. Riscos são inerentes a todo processo inovador e o cientista e gestor responsável deve avaliar corretamente e assumir estes riscos, principalmente quando se trata da vida de milhões de pessoas. Assumimos o risco e felizmente hoje temos uma excelente vacina que é a base do programa nacional de imunização nesse momento.
Em que momento o senhor teve a certeza de que a vacina desenvolvida pela empresa Sinovac funcionaria?
No momento em que recebemos os resultados dos estudos pré-clínicos e clínicos de fase 1 e 2 que já demonstravam o grande potencial da vacina. Passou-me pela cabeça a grande oportunidade de contribuirmos de forma positiva para dotar o Brasil de uma alternativa viável e tornar-se autossuficiente nessa vacina no momento do maior desafio que o país enfrentava em termos de saúde pública.
Como o senhor avalia o movimento antivacina, que já era grande antes da pandemia e agora tem sido turbinado com teorias conspiratórias sobre as vacinas? Como conscientizar as pessoas da importância da vacinação?
O movimento antivacina no Brasil era incipiente até muito recentemente. A postura de autoridades federais negando a sua utilidade e, inclusive, usando de uma campanha subterrânea de fake news e mentiras a respeito da vacina e da própria pandemia vieram a alimentar esse movimento. Recentemente, no entanto, com o início da vacinação, esse movimento sofreu um grande revés e hoje a procura e o apoio à vacina é muito grande. Ao contrário do que alguns esperavam, a vacina se tornou assunto nacional com grande apoio popular que se traduziu inclusive em manifestações da cultura popular como o rap [funk Vacina Butantan, de Mc Fioti].
O senhor declarou à Folha de S. Paulo que nunca existiu interferência política tão grande na saúde pública quanto agora. Como lidar com essas pressões?
A interferência política na saúde pública tem sido uma grande barreira para o combate adequado à epidemia e explica muito a posição do Brasil como vice-campeão mundial em mortes pelo covid-19. A negação da gravidade da pandemia, a disseminação de tratamentos sem comprovação científica, o combate deliberado ao uso de máscaras e às medidas de restrição de circulação são os grandes responsáveis, neste momento, pela segunda onda explosiva que o país está sofrendo e que vai se agravar pela presença da chamada variante P1. Esse obscurantismo científico das mais altas autoridades do país causou um dano irreversível ao país, que ultrapassou as 250 mil mortes, uma catástrofe sem precedentes. A história colocará essa tragédia na conta desses negacionistas. Para o cientista preocupado e engajado como eu nessa luta resta, além de apontar esses absurdos, trabalhar em todas as frentes para minorar o sofrimento da população, inclusive na frente da comunicação e na batalha política da ciência.
A relação com o Ministério da Saúde deveria ser melhor? O que precisaria ser feito para aparar as arestas, principalmente considerando que vivemos uma pandemia?
O Instituto Butantan é o principal fornecedor de vacinas e soros para o Ministério da Saúde, e o nosso relacionamento sempre foi excelente. O ponto fora da curva aconteceu nesse governo que vem negando, por motivos políticos e obscurantistas, essa importância. A despeito dessas barreiras que ocorreram esse ano passado e nesse ano, o Instituto Butantan continua cumprindo o seu papel e é o responsável pelo fornecimento das vacinas para covid-19 que permitiram o inicio da vacinação no Brasil. Sem o Butantan o Brasil não teria vacinado mais de 7 milhões de pessoas. O Butantan entregou mais de 12 milhões de doses até esse momento ao Ministério e continuará como o principal fornecedor por muito tempo ainda.
Por que a aposta do Butantan foi no sentido de firmar uma parceria internacional em vez de desenvolver uma própria vacina?
O Butantan tem três vacinas [contra covid] em desenvolvimento, mas optou pela parceria inicial para ganhar tempo na incorporação da vacina e permitir o acesso do Brasil mais rapidamente. Não tivéssemos tido os problemas de relacionamento com o governo federal, teríamos vacinas disponíveis desde dezembro de 2020.
Essas vacinas em desenvolvimento não chegarão tarde demais?
As vacinas que o Butantan desenvolve terão seu papel nesta pandemia visto que se prevê que ela venha a se tornar endêmica e possivelmente sazonal como a influenza. Trabalhamos nessa perspectiva e, em 2022, teremos vacina totalmente feita aqui, adicionalmente à vacina feita em parceria com a Sinovac.
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“Tragédia entrará na conta dos negacionistas”, diz diretor do Butantan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU