22 Fevereiro 2021
Durante os anos de João Paulo II e Bento XVI, o Vaticano teve um conselho de cardeais de todo o mundo que supostamente supervisionavam as relações financeiras. Membros desse órgão rotineiramente reclamavam que as informações que recebiam eram incompletas, que faltava credibilidade e era fundamentalmente não-confiáveis.
Dois dos prelados que vociferaram essas objeções mais consistentemente eram os cardeais Jorge Mario Bergoglio, de Buenos Aires, Argentina, e George Pell, de Sydney, Austrália. Então, quando o novo “Papa Bergoglio” fez de Pell seu ponta de lança para a reforma financeira do Vaticano em fevereiro de 2014, isso significou um reformador veterano voltando-se a outro, apesar de suas claras diferenças ideológicas em outras frentes.
Infelizmente, a parceria entre Francisco e Pell decaiu antes que a reforma pudesse começar. A divisão não teve nada a ver com as acusações de abuso sexual contra Pell na Austrália, que vieram depois – era sobre a transição do que os dois homens tinham sido contra, para o que eles realmente defendiam.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 21-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Para Pell, reforma significava adotar virtualmente um conjunto as “melhores práticas” de finanças internacionais, baseado em minimizar despesas (em parte pelo combate de perdas devido à corrupção, mas também pela aquisição de economias de escola e aparando folhas de pagamento) e maximizando o lucro. A peça central dessa visão era consolidar um fundo de investimento do Vaticano, o qual seria então administrado e adepto do jogo do mercado internacional de ações e moedas, que outras entidades católicas poderiam se juntar, criando até maior influência financeira.
No fim, esse nunca foi realmente o cenário de Francisco.
Famoso defensor dos oprimidos e inveterado crítico de uma economia globalizada “que mata”, Francisco via a reforma mais em termos de uma integridade pessoal, estilo de vida simples, e uma opção pelos pobres. Ele nunca quis ser uma versão eclesiástica de uma corporação multinacional, e ele estava desconfortável com alguns dos novos agentes que queria tocar nesse show.
Em outras palavras, as coisas romperam porque “reforma” não é apenas sobre encerrar uma forma de fazer as coisas; ela requer uma visão compartilhada do que se deve fazer.
Esse fragmento da história veio à mente nesta semana quando Mario Draghi, ou “Super Mário” como é chamado pelos italianos, assumiu como primeiro-ministro da Itália, depois de vencer com maioria massiva em ambos parlamentos italianos.
Um papa é tradicionalmente o Primaz da Itália, e inevitavelmente, o que acontece nos pátios do Vaticano consume uma desproporcional parcela de tempo e energia de qualquer papa. Um artigo recente da AGI, um serviço de notícias de propriedade da empresa de gás italiana Eni, observou que os papas estão sempre tentando reconciliar “seu próprio pátio [na Itália] e suas disputas com o escopo universal de sua missão apostólica, e geralmente, ou, pelo menos, não raramente, o primeiro prevalece sobre o último”.
À primeira vista, parece que Francisco e Draghi estão preparados para uma era de bons sentimentos.
Draghi é fruto da educação jesuíta em Roma, com fortes laços com vários membros da ordem do papa. Ele também é membro da Pontifícia Academia de Ciências Sociais e, pessoalmente, é um católico devoto. Além disso, como o papa, Draghi acredita firmemente na solidariedade europeia – sua fama é que, como governador do Banco Central Europeu, ele salvou a moeda comum da UE durante a crise da zona do euro. Ele se opõe veementemente às correntes nacionalistas e populistas na Europa de hoje, que parecem uma bête noire na retórica política de Francisco.
No entanto, como Pell, a versão de Draghi de “reforma” pode muito bem diferir da de Francisco, neste caso não em termos de finanças do Vaticano, mas de política pública.
Banqueiro e economista, a visão de Draghi de reforma parece implicar redução da dívida pública, incentivo ao crescimento econômico, flexibilização das regulamentações de negócios e redução do infame “spread” da Itália, que significa quanto mais o país tem que pagar para tomar dinheiro emprestado do que a Alemanha. É considerado um índice de quanto os credores acham que Roma é mais arriscada em comparação com Berlim.
Tudo isso pode tranquilizar os mercados de ações e as salas de direções corporativas, mas isso não tem muita semelhança com a visão de baixo para cima que Francisco tem da vida econômica.
Dez dias atrás, o economista italiano Luigino Bruni, que convocou o recente seminário “Economia de Francisco” e que é um pensador próximo do papa, advertiu, em uma entrevista para a revista Famiglia Cristiana, que Draghi pode não ser o líder dos sonhos do papa.
“A Igreja nunca expressou muita simpatia pelas altas finanças”, disse Bruni. “O Papa Francisco, seguindo os passos de seus predecessores, disse tudo e mais um pouco sobre os problemas de quando as finanças se tornam a dimensão primária da economia”.
Bruni expressou ceticismo de que Draghi realmente tenha uma visão da vida econômica enraizada no ensino social católico.
“Que um economista cuja tese de doutorado foi em teoria monetária, que trabalhou para o Goldman Sachs, que chefiou o Banco da Itália e o Banco Central Europeu, na verdade tem uma visão baseada na subsidiariedade, é inteiramente visível”, disse ele.
“No currículo de Draghi, não há medidas em relação aos pobres ou justiça social”, disse Bruni.
Claro, o fato de que dois líderes podem ter sotaques diferentes quando se trata de política não significa que eles não possam fazer negócios juntos.
Teremos uma indicação inicial de como os dois centros de poder da Itália, o Vaticano e o Palazzo Chigi (residência do primeiro-ministro), querem administrar seu relacionamento em 2 de março, quando Draghi se encontra com o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, em um evento que marca o aniversário do Tratado de Latrão.
Para Bruni, o primeiro teste de ácido real virá no final de março, quando um congelamento de disparos devido à pandemia do coronavírus deve expirar. Se Draghi não renovar essa medida, pelo menos para os setores mais afetados – restaurantes, catering, hotéis, operadoras de turismo e assim por diante – Bruni prevê que um relacionamento aparentemente ensolarado com Francisco pode azedar.
O tempo dirá se Francisco e Draghi realmente combinam. Até então, o conselho de Bruni pode estar adequado: “Eu esperaria para beatificar Draghi”, disse ele, “até que o víssemos no trabalho”.
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O Papa terá um “Problema Pell” com “Super Mário” sobre as visões de reforma? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU