18 Fevereiro 2021
Conversamos com o neurologista e psiquiatra francês Boris Cyrulnik (Bordeaux, 84 anos), uma autoridade mundial em resiliência, a capacidade do ser humano em superar a adversidade, um conceito sobre o qual escreveu mais de vinte livros. No último, intitulado Me acuerdo (Gedisa), traça sua autobiografia, marcada precocemente pela morte de seus pais nos campos de concentração nazistas.
A entrevista é de Carlos Manuel Sánchez, publicada por XL Semanal, 12-02-2021. A tradução é do Cepat.
O esgotamento está passando a fatura.
É normal. Partimos para uma longa aventura e não sabemos para onde nos levará. Se o caos tiver data para caducar, nos reorganizamos e a vida volta a ser como antes. Mas se durar muito e não vislumbrarmos que acabará logo, ficam sequelas.
De que tipo?
Estresse, depressões... A mente se adapta aos confinamentos, mas essa adaptação nem sempre é positiva. Por exemplo, foi descrito que muitos reclusos têm delírios e alucinações, que são um sucedâneo psíquico da vida no reduzido espaço da cela.
Há muitos profissionais da saúde e cuidadores que também estão esgotados.
Damos status de heróis para aquelas pessoas que cuidam de nós, mas não as protegemos, nem as pagamos como merecem. Quando uma sociedade tem a necessidade de que seus cidadãos se tornem heróis, algo não funciona.
De onde tiram forças em momentos assim?
A resiliência nunca é individual, é uma habilidade social. Não pode haver resiliência na solidão. A neurociência mostra que o cérebro é modelado pelo ambiente e se perdemos o contato com o ambiente ou se o ambiente é caótico, o cérebro funciona mal. O confinamento nos protege contra o vírus, mas é uma agressão psicológica, é inclusive uma agressão neurológica pelo isolamento sensorial.
A quem afeta mais?
Aos jovens. Permanecerem um ou dois anos nesta situação, fará com que percam um tempo precioso quando o cérebro está construindo seus circuitos. A maturidade é retardada em períodos de isolamento. O cérebro precisa ser estimulado mediante a conversa, os gestos, a atividade física... As telas só oferecem uma compensação parcial. E para as crianças são muito tóxicas...
Mas os mantêm entretidos...
É um erro colocar os bebês diante do celular para ver desenhos e canções. Não compreendem a mensagem, mas ficam hipnotizados. Não aprendem a decodificar o fluxo de palavras do adulto, nem suas expressões faciais. Portanto, não desenvolvem a empatia.
Muitos pais também precisam teletrabalhar.
Na França, as casas de campo subiram de preço. Muitas famílias jovens foram para o campo com seus computadores, mas trabalhar na frente de uma tela causa um grande entorpecimento. Os estudantes também percebem isto. Rendem menos do que nas aulas presenciais. E se recordam muito menos. É preciso a emoção, a gargalhada, para ancorar a memória.
Quem poderia imaginar que iríamos estar assim, a esta altura?
Não deveria nos surpreender. A pandemia é a história do eterno retorno. A primeira morte por epidemia foi no Neolítico, quando começamos a acumular os excedentes de alimentos da agricultura e os ratos vinham aos celeiros com pulgas que transportavam o bacilo da peste.
A peste negra que matou um em cada dois europeus, a partir de 1348, foi produto da velocidade. Encurtou-se a viagem realizada pelas caravanas da Rota da Seda, levando a carga no barco de Antioquia a Marselha. E os ratos iam nesses barcos. Hoje, a gripe é propagada pelas aves e os porcos em condições de confinamento. Com a pandemia, percebemos que o homem não está acima da natureza. Somos parte do ecossistema, não os donos.
E o que podemos fazer?
Temos três opções. Uma é seguir como estávamos. E então, a cada poucos anos, aparecerá uma nova combinação de genes que formará um novo vírus. Se continuarmos como até agora, um século de epidemias nos espera. A segunda é nos encomendar a um ditador que nos prometa soluções fáceis. A terceira é fazer mudanças profundas em nossa maneira de viver.
Estamos vivendo algo mais profundo do que uma crise. É uma catástrofe. Mas a palavra catástrofe vem do grego. Significa dar a volta. Sua origem é o teatro. Ao final da obra, uma guinada inesperada surpreende o espectador. O trauma deveria nos lançar a explorar caminhos surpreendentes.
Por exemplo?
Temos a oportunidade de mudar nossa maneira de consumir. Talvez pudéssemos ter uma pecuária menos extensiva, comer menos carne, fazer com que a economia europeia seja mais local. Havia fábricas têxteis magníficas na França e as deslocalizamos. Talvez seja o momento de importar menos da China e fabricar mais na Europa. E é preciso redescobrir a lentidão!
Refere-se à mobilidade?
Não falo apenas das viagens e do transporte. Falo em realizar uma produção mais pausada. Falo de que a mudança climática apagou as estações. E a pressa apagou os rituais. A urgência sanitária eliminou o luto. Enterrar sem um funeral provoca um grande sentimento de culpa nos familiares. Isto aflorará, cedo ou tarde, na forma de transtornos de conduta. Em um sentido mais amplo, falo em respeitar os tempos de amadurecimento do ser humano.
Propõe um novo modelo de ensino?
Sim, menos competitivo. Em alguns países do norte da Europa já não se dá nota para os alunos antes dos 11 anos. As crianças ganham em confiança e autoestima. Na cultura japonesa, no entanto, os estudantes são muito pressionados, sobretudo os homens. Muitos abandonam a universidade. Há uma grande proporção de jovens adultos que renuncia inclusive a sexualidade com mulheres. Fecham-se em suas telas. É um fenômeno que já começa a ser visto na França.
Também será necessário repensar as relações de casal?
Quando eu era um menino, o casal se via obrigado a permanecer unido. Não havia fundos de pensões, nem seguridade social. O marido era o provedor e a mulher cuidava dele. Mas um jovem de 20 anos, em 2021, terá de oito a dez trabalhos ao longo de sua vida. E terá três ou quatro uniões. Na França, onde há uma alta taxa de divórcios, muitas mulheres criam seus filhos sozinhas. Antes eram ajudadas pelos avós, agora, muitas não têm essa ajuda e estão esgotadas.
Vimos o aumento da violência doméstica com os confinamentos.
Houve uma geração de homens jovens franceses que passou sete anos mobilizada, entre o serviço militar, a Segunda Guerra Mundial e os campos de prisioneiros. Só aprendeu a desfilar e a disparar. Então, foram as mulheres que sustentaram a economia. Quando acabou a guerra, a França não podia devolvê-las à condição de donas de casa. Receberam o direito ao voto. Foi uma revolução que precedeu a de Maio de 68. O homem ficou para trás. Já está na hora de que colabore mais e de que assuma a parte que lhe cabe.
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“O trauma deveria nos lançar a explorar caminhos surpreendentes”. Entrevista com Boris Cyrulnik - Instituto Humanitas Unisinos - IHU