11 Janeiro 2021
“Foi justamente a normalidade de ontem que preparou o desastre de hoje. O trumpismo é o resultado de meio século de demolição do sentido do bem comum e das instituições: quando Reagan dizia que o Estado é o problema e não a solução, ele abria as portas para uma antipolítica qualquer, legitimada por uma ideologia neoliberal à qual a esquerda não soube opor uma resistência significativa (às vezes, permanecendo enfeitiçada por ela, veja-se Clinton)”.
O comentário é de Alessandro Portelli, historiador italiano referência nos estudos de História Oral, ex-professor da Universidade de Roma “La Sapienza” e fundador do Circolo Gianni Bosio, um coletivo dedicado ao estudo do folclore, história oral e cultura popular.
Segundo ele, as raízes da atual situação "estão no lado obscuro da mais luminosa tradição estadunidense: por exemplo, em uma visão da liberdade conjugada desde o início em termos individuais (sem fraternidade, sem igualdade) e, portanto, disponível para ser lida em termos antiestatais".
O artigo foi publicado por Il Manifesto, 08-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Muitos anos atrás, desarmado diante da tragédia do 11 de setembro, eu começava um artigo no jornal Il Manifesto citando Kurt Vonnegut: “Não há nada de inteligente a ser dito sobre um massacre”.
Diante dos fatos de hoje, sinto-me do mesmo modo: não há nada de inteligente a ser dito, porque não sabemos suficientemente como e por que aconteceu aquilo que aconteceu. Ouço comentaristas renomados que insistem nas mentiras de Trump e no fato de que os seus seguidores vivem em uma realidade alternativa feita de notícias falsas; tudo verdade, mas a maldade de um homem e a credulidade das massas não bastam para nos fazer entender como foi possível e como é possível que isso ainda aconteça – ainda mais em um país nascido do Iluminismo, onde se pensava que a democracia estivesse interiorizada e o analfabetismo havia sido erradicado há dois séculos.
Mas existe um coração de treva nos Estados Unidos. Vemos os seus contornos, mas não conseguimos ver o que há dentro dele. Se hoje há mais de 70 milhões de cidadãos estadunidenses que votam em Trump, e milhares deles (até mesmo dentro da polícia) prontos para pegar em armas em seu nome, devemos nos perguntar de que modo nós, progressistas e liberais cultos, contribuímos para tornar possível essa realidade.
Por isso, trata-se de entrar nesse coração de treva e tentar entender, não para lhe dar razão, mas para reconhecer as causas e tentar enfrentá-las e resolvê-las. Falar de “caipiras”, de “bárbaros”, de “inimigos da democracia” só serve para exorcizá-los, para afastá-los de nós, para dizer que nós não temos nada a ver com isso (talvez cutucando implicitamente os velhos preconceitos sobre um EUA totalmente feito de caubóis ignorantes, violentos e ingênuos – como se não fôssemos um país onde metade das pessoas se recusam a se vacinar, como se as mesmas pulsões que desencadearam a agressão em Washington não atravessassem toda a Europa, hoje de forma nem tão direta e violenta, mas não menos assustadora.
Por que cada vez menos pessoas acreditam na mídia? Por que cada vez menos pessoas confiam nas instituições e no Estado? Por que cada vez menos pessoas acham que têm os meios para decidir sobre sua própria vida? Que mídia, que instituições, que democracia estamos lhes oferecendo? Por que, enquanto enchemos a boca para falar dos valores da democracia, há tão pouca democracia, e cada vez menos, na vida das pessoas? E por que a essa demanda implícita de importar alguma coisa, de ter algum controle sobre a própria vida, não somos capazes de dar respostas democráticas, de esquerda, de igualdade, dignidade e direitos, e deixamos que o pior da direita alimente e cavalgue o rancor disforme com as suas explicações envenenadas e falsas?
Olhando as imagens na TV, fiquei impressionado com uma coisa que não foi enfatizada por ninguém: havia muitíssimas mulheres (três das quatro vítimas mortas nos confrontos são mulheres). O que elas estavam fazendo lá? E me lembrei de uma manchete que havia lido no dia anterior no site da Bloomberg Wealth, não exatamente uma fonte de esquerda: “Milhões de estadunidenses esperam perder suas casas na tempestade da Covid”.
Isso tem algo a ver? Diretamente, talvez não, mas, como estado de ânimo generalizado, certamente sim. Isso só acontece lá, depois da crise de 2008? O que nós fazemos diante disso? Elas também não são mulheres? Ainda tem alguém que fala de direito à moradia?
Ashly Babbit, a primeira vítima dos confrontos, era uma ex-militar que se definia como patriota, amante do seu país e da liberdade (e não vinha de um Estado vermelho de caipiras do Sudeste, mas sim da rica, culta, moderna e democrata Califórnia). Paradoxalmente, enquanto agridem aquele que os nossos colunistas chamam de “templo da democracia”, os manifestantes pró-Trump estão convencidos de que eles são os defensores de uma democracia “roubada” pelas fraudes eleitorais – que eles são “we, the people”.
Obviamente, é um erro trágico. Mas como é possível que – apesar de 51 comissões, Estado por Estado, republicanas e democratas, e até expoentes da direita dura do Partido Republicano terem confirmado que as eleições foram justas – eles estão tão obstinados em acreditar no contrário? O fato é que a sensação de se estar jogando um jogo manipulado é uma sensação crescente.
Por outro lado, há quatro anos, não foram os líderes do Partido Democrata que lançaram dúvidas sobre a eleição de Trump, defendendo que ela havia sido manipulada e falseada por interferências indevidas? Essa também foi uma primeira vez na história estadunidense e certamente não contribuiu para fortalecer a confiança no sistema eleitoral e na transparência das instituições.
E deixemos de lado a eleição de 2000, os votos contestados de Bush, a decisão da Suprema Corte que conferira autoridade à vitória de Bush... São coisas que vêm de longe. Trump é mais um efeito do que uma causa (um efeito que retroage e agrava as causas).
Dizer que tudo isso é culpa de Trump, que é um mentiroso corrupto, ou dos “caipiras” ingênuos que vivem na realidade alternativa das notícias falsas é uma forma de dizer que nós não temos nada a ver com isso (não é apenas uma doença estadunidense; Salvini, Brexit, Orbán ensinam isso), para não pôr em discussão a normalidade, como se valesse para o trumpismo aquilo que Benedetto Croce dizia sobre o fascismo, uma invasão dos hicsos, uma interrupção temporária depois da qual voltamos ao “business as usual”, ao “heri dicebamus”.
Em vez disso, foi justamente a normalidade de ontem que preparou o desastre de hoje. O trumpismo é o resultado de meio século de demolição do sentido do bem comum e das instituições: quando Reagan dizia que o Estado é o problema e não a solução, ele abria as portas para uma antipolítica qualquer, legitimada por uma ideologia neoliberal à qual a esquerda não soube opor uma resistência significativa (às vezes, permanecendo enfeitiçada por ela, veja-se Clinton).
Mas, antes ainda, as raízes também estão no lado obscuro da mais luminosa tradição estadunidense: por exemplo, em uma visão da liberdade conjugada desde o início em termos individuais (sem fraternidade, sem igualdade) e, portanto, disponível para ser lida em termos antiestatais. E certamente não foi Trump quem inventou a guerra civil e o seu infinito pós-guerra, as bandeiras sulistas desfraldadas nessa semana em Washington pelos manifestantes, o escravismo, a segregação, a “southern strategy” de Nixon, a supremacia branca – ainda celebrada por inúmeras estátuas e monumentos corajosamente defendidos dos inimigos do politicamente correto...
Uma tradição literária de mais de um século prefigurou riscos de involução autoritária nos EUA – “Caesar’s Column”, de Ignatius Donnelly (1890), “O salto de ferro”, de Jack London (1907), “Um milhão conta redonda”, de Nathanael West (1934), “Não vai acontecer aqui”, de Sinclair Lewis (1935), até “A parábola dos talentos”, de Octavia Butler (1998), e “Plot Against America”, de Philip Roth (2004 e a relativa série de TV), e meia ficção científica distópica. O inimaginável já havia sido imaginado; lá não havia acontecido isso (na Itália sim), mas podia acontecer e pode acontecer. As provas gerais já haviam ocorridos.
Em 2016, uma milícia armada ocupou um parque nacional no Oregon por 41 dias para contestar o uso federal das terras públicas; no dia 1º de maio de 2020, uma multidão armada invadiu o parlamento de Wisconsin para protestar contra o confinamento, e a polícia (como nessa semana em Washington) os deixou entrar. Ninguém reconheceu, então, esses fatos de armas como sintomas de algo mais amplo, mais profundo e grave - “você sabe como são os estadunidenses…”.
Hoje, encontramos alívio na civil tranquilidade de Biden. O novo presidente fala de reconciliação e de recuperação, mas me vem à mente “Dos Passos vs. Sacco e Vanzetti”, há quase um século: “Bem, somos duas nações”. Foram necessárias gerações para dividir assim os EUA. Colocá-los novamente juntos será um processo longo e difícil, e de resultado incerto.
Eu não espero tanto em Biden, mas sim na possibilidade de que alguém entre as pessoas que estão ao seu redor tenha aquela imaginação e radicalidade necessárias para apontar um caminho novo. Não por acaso, muitos dos textos distópicos que eu mencionei acima foram escritos nos anos 1930 ou fazem referência a eles: a época de outra crise, na qual não faltaram pulsões de extrema direita, mas à qual Roosevelt soube responder com uma reviravolta, uma mudança de paradigma, um New Deal centrado na construção do Estado social, na força do movimento operário, na orientação à esquerda de grande parte dos artistas e dos intelectuais.
As condições mudaram (e nós também contribuímos para desmontá-las), mas é preciso um salto de imaginação do mesmo tipo e da mesma amplitude, um New Deal diferente, capaz de começar a recompor o país não a partir da mediação a partir de baixo, mas reconhecendo a principal lição do “Black Lives Matter”: o coração da democracia é o conflito, e a democracia não consiste em zerá-lo, mas em fazer com que ele possa ocorrer sem que uns atirem nos outros.
A reconciliação começa com o restabelecimento das regras, mas, acima de tudo, com a reinvenção delas, para que sejam verdadeiramente compartilhadas.
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EUA: por dentro do coração de treva. Artigo de Alessandro Portelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU