11 Janeiro 2021
Com a certificação da vitória eleitoral por parte do Congresso dos Estados Unidos, nessa quinta-feira, 7, após o insano ataque da quarta-feira, 6, por parte das “brigadas” trumpianas ao Capitólio, não há mais obstáculos para Joe Biden em relação à presidência dos EUA. O presidente eleito fará seu juramento, junto com a vice-presidente, Kamala Harris, no próximo dia 20 de janeiro, em Washington.
Os confrontos dessa quarta-feira no Capitólio, instigados por Donald Trump, provocaram uma ferida sem precedentes na democracia estadunidense. Um país dividido e enraivecido pela propaganda extremista dos círculos soberanistas.
A extrema direita católica também tem a sua responsabilidade (veja-se, por exemplo, Steve Bannon e o ex-núncio Carlo Maria Viganò). Não será simples para Biden fazer uma obra de pacificação. Ele certamente encontrará um apoio importante no Papa Francisco. A eleição do católico Biden significa, de fato, a derrota dos inimigos soberanistas do papa.
O Vaticano também está vivendo um momento importante: a reforma das suas finanças por obra do Papa Francisco. Mas ainda há episódios a serem esclarecidos, como as notícias provenientes da Austrália.
Sobre esses temas, Pierluigi Mele dialogou com a jornalista italiana Maria Antonietta Calabrò, que trabalhou por 30 anos no jornal Corriere della Sera e atua hoje no L’Huffington Post. A entrevista foi publicada em Confini, 07-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nessa semana, o Congresso ratificou a eleição de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos. Sabemos como é profunda a ferida infligida à democracia estadunidense pelo ataque ao Congresso por parte dos fanáticos trumpianos. Para Biden, a primeira tarefa é pacificar o país. E, sobre isso, acho que um apoio importante poderá vir do Papa Francisco. Haverá uma nova temporada na relação com o Vaticano?
Certamente. Biden é o segundo católico a ser eleito presidente dos EUA depois de John Fitzgerald Kennedy, há 60 anos. Biden falou abertamente sobre a sua fé durante seu discurso de investidura na Convenção Democrata de Milwaukee e explicou como isso foi importante para ajudá-lo a superar os graves lutos que ele sofreu ao longo da sua vida. No início da campanha eleitoral, a sua equipe preparou um vídeo mostrando um breve encontro em uma audiência geral com o Papa Francisco como uma “bênção” papal à sua escalada à Casa Branca.
Ao longo das semanas, a questão “católica” para os democratas permaneceu em segundo plano. Mas não é apenas pela sua fé pessoal que a vitória de Biden “liberta” o Papa Francisco de um possível xeque-mate, que poderia ser hipotetizado em caso de uma vitória de Trump. Por motivos geopolíticos e por motivos “internos” à Igreja Católica, isso coloca novamente o Trono do mundo de alguma forma em sincronia com o Altar. E, portanto, de alguma forma, evitará as fortes tensões que surgiram no fim do pontificado de Ratzinger com a eleição de Obama e nos anos da presidência Trump para Francisco.
Quem não se lembra das iniciativas soberanistas de Steve Bannon, da aliança com os cardeais “conservadores” (começando pelo cardeal Burke), gradualmente contida após a sua saída da Casa Branca até a sua recente prisão em relação a crimes financeiros relacionados com a construção do muro anti-imigrantes com o México? Da aliança na Itália com Matteo Salvini, o político com a camiseta “Meu papa é Bento”? O voto católico (26% da população) foi decisivo para as vitórias de Obama, mas nos últimos anos os EUA estão cada vez mais polarizados: porque “mover-se” para a direita para um católico estadunidense também significou se distanciar do pontificado de Francisco.
A propaganda do ex-núncio Dom Carlo Maria Viganò martela há mais de dois anos, desde agosto de 2018, contra o papa, cuja renúncia ele pediu várias vezes. Viganò convocou orações pela reeleição de Trump e ganhou o apoio público do próprio Trump. Enquanto isso, com um movimento sem precedentes, o secretário de Estado, Mike Pompeo, no fim de setembro, acusou o Vaticano de imoralidade pelos seus acordos diplomáticos com a China em matéria de escolha dos bispos. Esse processo agora, com o próximo início da presidência de Biden, vai se interromper.
O ex-núncio Viganò “patrocinou” ações em favor de Trump e contra Biden até poucos dias atrás.
Sim. Três dias antes do ataque ao Congresso dos EUA para “bloquear” a proclamação da vitória de Joe Biden, o ex-núncio Carlo Maria Viganò concedeu uma entrevista (no dia 1º de janeiro, festa de Maria, Mãe de Jesus) a Steve Bannon, publicada no dia 3 de janeiro no LifeSiteNews (na Itália, Stilum Curiae), na qual exortou os “filhos da luz” a agirem “agora”. Diante do que aconteceu no Capitólio, pode-se muito bem dizer que os conspiradores receberam uma bênção “católica” do polêmico arcebispo, cujo pupilo é Donald Trump, pelo menos desde 2018, e cujo inimigo número um é o Papa Francisco, que, segundo ele, seria cúmplice do Grand Reset, da sujeição à China (se há, porém, um político que enfraqueceu os EUA em favor da China negando a pandemia, é Trump). Com o grito “Deus o quer”, grito de guerra medieval para alistar os cruzados a serem enviados à Terra Santa para libertar o Santo Sepulcro.
De fato, uma das perguntas de Bannon a Viganò dizia assim: “O senhor se mostrou confiante de que Deus deseja uma vitória de Trump para derrotar as forças do mal?”. Note-se o verbo no presente. Mas Viganò não foi apenas um protagonista contra Francisco. Hoje, ele se inscreve entre os partidários de Bento XVI, mas, na realidade, foi ele quem alimentou o vazamento de documentos confidenciais durante o primeiro Vatileaks e quem escreveu falsidades para Bento XVI a fim de não deixar o seu cargo de poder na Cúria. Ele é um personagem central não só da geopolítica vaticana, mas também do jogo financeiro. Na entrevista, ele quase exigiu a publicação de provas de corrupção da “deep church” [Igreja profunda], nas mãos dos serviços secretos.
O papa acaba de aprovar uma reforma financeira muito importante para a Santa Sé, e ventos de tempestade estão vindo da Austrália. Refiro-me à notícia, divulgada pela mídia australiana, de que uma soma enorme de 1,8 bilhão de euros [11,9 bilhões de reais] teria sido transferida do Vaticano para a Austrália. O Vaticano, por meio de uma autoridade, comentou a notícia como “ficção científica”. E a Igreja australiana também negou ter sabido algo sobre isso. O que tudo isso pode ser, na sua opinião? É mais uma tempestade pela frente?
Desde o dia 1º de janeiro deste ano, entrou em vigor a reforma do Papa Francisco sobre a centralização dos cofres vaticanos. Refiro-me, em particular, à transferência de fundos (o chamado terceiro banco) da Secretaria de Estado à APSA. Tudo isso é uma verdadeira revolução, que foi desencadeada pelo chamado “caso Becciu”, com a obscura história da aquisição do prédio em Londres. A questão é que o papa teve que chegar a isso em três movimentos sucessivos: uma carta ao cardeal secretário de Estado, Parolin, em agosto, depois a nomeação da comissão para a gestão da transferência de fundos em outubro, finalmente o motu proprio com força de lei em dezembro.
Voltando à Austrália, porém, é preciso compreender que esse processo relativo aos fundos da Secretaria de Estado ainda não terminou e só se implementará definitivamente, salvo imprevistos, no dia 4 de fevereiro. Ainda falta um mês. A agência de combate à lavagem de dinheiro australiana, Austrac, constatou 47.000 transações em seis anos (2014-2020) do Vaticano à Austrália. Se não é dinheiro vaticano, mas “apenas” passaram por entidades vaticanas, de que dinheiro se trata? E, acima de tudo, de quem? As notícias da imprensa australiana falam de contas cifradas de expoentes leigos.
É preciso lembrar que, em 2014, o cardeal Pell denunciou publicamente a existência de fundos extraorçamentários no Vaticano de um montante próximo ao número monstruoso de que estamos falando agora (mais de 1,4 bilhão de euros [9,3 bilhão de reais]). E que, desde 2014, começou a limpeza das contas do IOR, que também é um processo muito longo que durou anos. A uma pergunta específica que eu fiz hoje, a Austrac respondeu que está em curso uma revisão completa de todas as transferências que foram realizadas, em colaboração com a ASIF vaticana, ou seja, a agência de combate à lavagem de dinheiro liderada por Carmelo Barbagallo. Na verdade, existe um protocolo de colaboração bilateral entre a Austrac e a ASIF. É preciso verificar quem são os remetentes e quem são os beneficiários. E se dentro desse rio de dinheiro também houve pagamentos para condicionar o processo penal por pedofilia contra Pell, como declarou aos magistrados vaticanos um dos investigados no caso do edifício de Londres, que depois se “arrependeu”.
Chegamos ao chamado “caso Becciu”. Em que ponto estamos na investigação?
Em andamento, como se diz.
Quais são os contramovimentos de Becciu?
O arcebispo Becciu sempre negou ter cometido crimes e, em particular, sempre negou ter interferido no processo penal contra Pell.
Que reações existem na Cúria?
O enxugamento institucional da Secretaria de Estado (um dicastério já sem “carteira”) certamente é uma mudança, eu diria, maior, que também exigirá que se reescreva o rascunho quase pronto da Praedicate Evangelium, a constituição apostólica que deverá substituir a Pastor bonus, de João Paulo II. Ao mesmo tempo, a figura do cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, será inevitavelmente redimensionada, e com ele, o chamado “partido italiano”.
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“Biden na Casa Branca significa a derrota dos soberanistas católicos.” Entrevista com Maria Antonietta Calabrò - Instituto Humanitas Unisinos - IHU