24 Dezembro 2020
Nomeação de quadro da agência de espionagem para posto-chave no ministério da Saúde é a ponta do iceberg. Investigação sugere que Bolsonaro usa arapongas para interferir sobre vacinas, privatizar sistema e monitorar sociedade civil.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por OutrasPalavras, 23-12-2020.
Na semana seguinte aos julgamentos sobre vacinas, o Supremo mostra que talvez não tenha entendido o Programa Nacional de Imunizações, o papel das instituições públicas, e também seus limites. Isso porque a Corte mais importante do Estado brasileiro enviou a Fiocruz um ofício perguntando se a fundação poderia reservar sete mil vacinas para seus ministros, servidores e ‘colaboradores’. A justificativa segue uma lógica muito semelhante à das empresas de planos de saúde quando querem benefícios: o STF argumenta que fazer uma campanha de vacinação própria desafogaria o SUS, permitindo a “destinação de equipamentos públicos de saúde para outras pessoas”. Acontece que essas ‘outras pessoas’ são todos os brasileiros. Cidadãos de segunda classe, talvez?
O Supremo carrega mais nas tintas. No oficio enviado à fundação no dia 30 de novembro, diz que a campanha paralela seria “uma forma de contribuir com o país nesse momento tão crítico da nossa história” e colaborar “com a Política Nacional de Imunização”.
A notícia piora porque o ofício do STF não foi o único. Também o Superior Tribunal de Justiça procurou a Fiocruz querendo garantir imunizantes para os seus. É de se perguntar se não passa na cabeça dos magistrados que se cada órgão seguisse esse exemplo, no fim, a vacinação acabaria por criar um outro público prioritário: o funcionalismo. Em um cenário de escassez de vacinas nos primeiros meses de 2021, passariam na frente de profissionais de saúde que estão atendendo na ponta, idosos em geral, indígenas, etc. quando se provou que o trabalho pode ser tocado a distância no caso do Judiciário. Também parece pouco coerente cobrar tanto um plano de imunização do Ministério da Saúde e remendá-lo por fora, sem debate público. Felizmente a Fiocruz já negou o pedido do STJ e deve fazer o mesmo com o do Supremo.
Também chama atenção o fato de as cortes superiores informarem que fazem campanhas de vacinação paralelas há tempos – no caso do STF, desde 1999. Questionado, o STJ inclusive fala que sua intenção era a “compra de vacinas”. Um braço do Estado brasileiro sustentado pelo Tesouro comprando de outro. Será que a discricionaridade no uso de recursos públicos se aplica nesse caso?
Segundo o Estadão, o pedido não foi unanimidade entre os integrantes do STJ. Houve quem percebesse que a reserva acabaria atendendo também gente jovem e saudável que compõem o quadro de funcionários e que poderia soar como privilégio, num caso semelhante ao pedido de um grupo do Ministério Público de São Paulo para furar a fila de vacinação naquele estado. Mas também houve quem não achasse nada demais.
A notícia de que o general Eduardo Pazuello nomeou um quadro da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para comandar a área responsável pelo complexo industrial da saúde, responsável por negociar a compra de vacinas, assusta, mas não surpreende. Os militares parecem não sentir nenhum constrangimento em avançar sobre tarefas que requerem conhecimentos técnicos robustos – e nisso não estão distantes dos políticos do centrão, mesmo que sua motivação seja não apenas a busca do DAS, mas a desconfiança em relação aos civis.
Myron Moraes Pires foi alçado a essa coordenação no dia 10 de agosto – e a “nomeação do agente da Abin, sem a devida formação técnica para um cargo estratégico do ministério, gerou um ‘clima de terror’ entre os funcionários da pasta”, segundo apurou o UOL.
Acontece que embaixo deste achado do site existe um iceberg. E, esse sim, não só dá muito medo como causa alguma surpresa. Haveria outros quadros da agência na pasta, dedicados a arapongagem (previsível), mas também metidos no desmonte de políticas públicas. “Os agentes da Abin atuam no ministério [da Saúde] em assuntos de interesse direto do presidente Jair Bolsonaro, a exemplo da vacina contra covid-19, projetos de privatização de unidades de atenção básica e de saúde mental, além do monitoramento de entidades da sociedade civil que integram o Conselho Nacional de Saúde, informa uma dessas fontes com acesso direto a diversos servidores da pasta”, conta o repórter Igor Mello, que também ouviu interlocutores de pessoas próximas ao gabinete de Pazuello. A Secretaria de Comunicação da Presidência nega que existam outros agentes da Abin no ministério e afirma que Myron Moraes Pires não lida com a compra de vacinas. Faz o que, então?
Na semana passada, a Agência Pública descobriu que quadros da Abin estão espalhados por outros órgãos: Secretaria de Governo, Casa Civil, Controladoria Geral da União, Economia, Infraestrutura e Cidadania. O repórter Vasconcelo Quadros batizou a manobra de “revoada de arapongas”: “Fontes ouvidas pela Pública estimaram que há mais de uma centena de agentes espalhados em diversos ministérios, boa parte remanescentes de governos anteriores. Uma autoridade que participou da reunião, ouvida por Pública com o compromisso de não ter o nome citado, contou que há cerca de um mês, em visita ao Conselho Superior do Ministério Público Federal, o diretor da Abin, Alexandre Ramagem, afirmou a interlocutores, que esse número deve aumentar: ele teria dito que a intenção seria reforçar a estrutura de inteligência em todos os órgãos, criando nos ministérios e empresas e autarquias estatais relevantes, assessorias semelhantes ao que foi a Comissão Geral de Investigação (CGI), uma megaestrutura de inteligência que alimentavam o extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), usada para espionar adversários do regime militar. Procurado por telefone, Ramagem não retornou a ligação”.
A Fiocruz tem data para começar a entregar as vacinas de Oxford/AstraZeneca ao Ministério da Saúde: 8 de fevereiro. A informação foi dada pela presidente da instituição, Nísia Trindade, em audiência da comissão externa da Câmara que acompanha as ações contra a covid-19. De acordo com ela, até o dia 19 serão entregues dois milhões de doses e, a partir daí, 700 mil doses diariamente.
Eduardo Pazuello, que cada hora anuncia uma diferente data provável para o início da vacinação, disse ontem que os primeiros brasileiros devem ser imunizados ainda no fim de janeiro – mas não disse com qual vacina. Como a da AstraZeneca não estaria disponível, restam, entre as opções aventadas pelo governo hoje, a CoronaVac e a da Pfizer/BioNTech. Caso o acordo para a compra desta última seja enfim destravado, haverá oito milhões de doses no primeiro semestre de 2021.
Quanto à CoronaVac, o Ministério da Saúde decidiu negociar com o Instituto Butantan uma expansão do contrato de compra de doses: em vez de 46 milhões, seriam 100 milhões ao longo do primeiro semestre. Hoje devem ser divulgados os resultados de segurança e eficácia dessa vacina, com base nos dados da fase 3 dos ensaios. A Anvisa criou uma comissão para agilizar a aprovação e tem reunião com o Butantan hoje, às 16h.
Importante: o contrato do governo federal para a compra de 330 milhões de seringas ainda não foi feito. Um pregão eletrônico está aberto até o dia 29 de dezembro – mas, a previsão de chegada do material é só para fevereiro.
O Conselho Nacional de Saúde publicou ontem uma recomendação para que o plano nacional de imunização seja ampliado. O texto indica que mais gente seja incluída nos grupos prioritários (como a população indígena não aldeada e as pessoas inseridas em comunidades terapêuticas) e que se vacine a população inteira em 2021. Pelo cronograma do governo federal, levará 16 meses até isso acontecer.
O México deve se tornar o primeiro país da América Latina a iniciar uma campanha de imunização contra a covid-19. O país, que comprou a vacina da Pfizer, planeja começar a aplicar doses amanhã. Chile, que também tem contrato com a Pfizer, e Argentina, que apostou na Sputnik V, programam o início das suas campanhas para a semana que vem. Em todos os casos, porém, esse começo de vacinação acontecerá com poucas doses. Na Argentina, por exemplo, são 300 mil.
A notícia de que camelôs já vendem vacinas falsas contra a covid-19 no Rio se espalhou mais rápido que o vírus. Tanto sites menos conhecidos até grandes veículos, como Folha e UOL, publicaram manchetes sobre o caso tragicômico. Mas, em grupos de jornalistas, o que mais chamou a atenção foi o fato de essas reportagens terem esquecido a regra zero da profissão: não apuraram o fato noticiado.
Os repórteres se basearam no relato do produtor cultural Jonas MFJay, que publicou uma foto da suposta vacina falsa em sua conta do Facebook na quinta-feira. De acordo com ele, em Madureira, um vendedor ambulante anunciava a plenos pulmões a venda da caixinha de vacina a R$ 50, dizendo ainda que havia um esquema com a farmácia ao lado para aplicá-la por R$ 10 extras. A Folha chegou a procurar a Guarda Municipal do Rio, que respondeu não ter constatado a venda do produto em seu patrulhamento. Mas, com a história de MFJay sendo o foco da notícia, teria sido necessário ir a campo buscar outras evidências que a sustentassem. Ninguém fez isso.
Marco Faustino, colaborador do site e-Farsas, afirmou no Twitter que é um caso de fake news. “Desde o começo essa história tinha uma ‘red flag’ gigantesca: uma única foto. Só uma foto? Sem vídeo? E a aplicação? E a foto do certificado? Se isso fosse tão comum, dada a ‘crença cega’ (para não dizer outra coisa) das pessoas, centenas já teriam comprado e diversas fotos e vídeos estariam pipocando por aí, mas não há absolutamente NADA. Uma parte da imprensa deu voz a uma mera evidência anedótica“, critica. De acordo com ele, a foto que ilustra todas as matérias é idêntica a outra tirada em Abu Dhabi. E, ainda por cima, mostra a caixa de uma vacina da estatal chinesa Sinopharm, que não tem nenhum contrato com o Brasil.
A Anvisa e a Polícia Federal estão apurando o caso. Mas, diante de tanta repercussão, o próprio MFJay já amenizou a história, dizendo que fez o post para brincar com algo inusitado que teria testemunhado.
Não é nada improvável que vacinas falsas comecem a circular (a falsificação na indústria farmacêutica é um problema de longa data). Mas, por ora, não temos informações suficientes para dizer que isso já esteja acontecendo no Brasil.
Pesquisadores da UFRJ e do Laboratório Nacional de Computação Científica publicaram esta semana um estudo (ainda sem revisão de pares) indicando a descoberta de uma nova linhagem do SARS-CoV-2 no estado do Rio. De acordo com eles, ela surgiu a partir de cinco mutações na B.1.1.28, linhagem que já estava em circulação no Brasil desde o começo da pandemia. Mas ainda não há nenhum indício de que ela seja mais transmissível ou agressiva, nem de que reduziria a eficácia das vacinas.
O Brasil tem apresentado recordes sucessivos de registros de novos casos (embora estes números nunca sejam confiáveis) e mortes que aumentam sem parar. A média móvel, que leva em conta os registros diários dos sete dias anteriores, ficou ontem em 776, com 963 novos óbitos nas últimas 24 horas. Essa é uma média 60% maior que a de 22 de novembro, quando o número era 483. E ainda não passamos o Natal e o Ano Novo.
Os estados do Sul concentram um quarto de todas as mortes registradas na semana de 13 a 19 de dezembro. Essa foi justo a região em que o coronavírus demorou mais a chegar e, como lembra o El País, por um momento pareceu que poderia ser controlado. Mas não aconteceu dessa maneira. Por toda parte, a ocupação das UTIs está girando em torno de 90%. A matéria da Piauí explica que uma das causas pode ter sido um descompasso no enfrentamento: em março, quando mal havia casos, houve restrições mais duras à mobilidade. Depois de alguns meses, justo quando as infecções se espalhavam, tudo foi reabrindo – e mesmo as medidas em vigor deixaram de ser respeitadas.
Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) decidiu que todo o estado vai ficar na fase vermelha (só serviços essenciais estão autorizados a funcionar) de 25 a 27 de dezembro e de 1 a 3 de janeiro… quando a população já não costuma lotar o comércio. Às vésperas do Natal, quando as ruas e shoppings ficam realmente cheios, continua tudo liberado. As cenas de aglomeração na rodoviária e aeroportos da capital paulista viralizaram e são mesmo impressionantes.
Paulo Capel Narvai, professor da USP, também está examinando de perto o papel do bolsonarismo nos indicadores de mortalidade da covid-19. Estudos do tipo estão sendo divulgados desde maio (aqui e aqui), mas a novidade do artigo publicado anteontem no A Terra é Redonda é o olhar com lupa dirigido a 19 cidades paulistas. O que explica os índices de mortalidade pela doença nesses municípios? Duas variáveis são testadas: cobertura da atenção básica e o voto em Jair Bolsonaro no primeiro turno das eleições presidenciais de 2018. Segundo Narvai, a segunda variável explica melhor o desfecho trágico, provavelmente porque “ao seguir o líder, seus eleitores adotaram atitudes e práticas que contribuíram para agravar a disseminação da pandemia nos seus territórios e que estão na origem das mortes”.
A pressão das operadoras de planos de saúde sobre a ANS é o foco do recém-lançado ‘Saúde em Jogo‘ (Editora Fiocruz). O livro dá cara ao lobby na Agência Nacional de Saúde Suplementar, mostrando personagens e grupos envolvidos nas principais disputas políticas no período que vai desde a criação do órgão, em 2000, até 2017. O autor da obra, Marcello Fragano Baird, acompanha de perto os bastidores das agências reguladoras faz tempo e prepara para o ano que vem outro lançamento, desta vez sobre a queda de braço que se deu na Anvisa na época da regulação da publicidade de alimentos.
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ABIN envolvida na estratégia de desmonte do SUS - Instituto Humanitas Unisinos - IHU