17 Novembro 2020
Proposta vem de Temer. Sob Bolsonaro, Mandetta deu-lhe disfarce “técnico” e o general Pazzuelo tentou impô-la por decreto. Mas base é a mesma: estrangular a Saúde pública e alegar que é preciso “apoio” privado — com dinheiro do Estado…
A reportagem é de Maíra Mathias, publicada por Outra Saúde, 16-11-2020.
A Secretaria de Atenção Primária à Saúde foi criada por Luiz Henrique Mandetta, tendo no comando Erno Harzheim. Logo no início da sua gestão, Mandetta disse em entrevista ao Roda Viva que mandaria uma “mensagem” ao Congresso para que parlamentares discutissem se o SUS deveria ser 100% gratuito para todos, contrapondo dois princípios do sistema público brasileiro: a equidade e a universalidade. Já Harzheim falando a um público restrito – os médicos de família – foi bem mais direto: “Estamos aqui para implementar um sistema de saúde liberal. O SUS não tem que ser para todos, mas apenas para aqueles que não conseguem proteger a si próprios. Quem quiser discutir universalidade volte para o século 20”.
Ironicamente, o governo Bolsonaro trouxe um verniz técnico a um projeto que já vinha sendo apresentado de forma direta no próprio Ministério da Saúde: o fim do SUS constitucional. A diferença é que Ricardo Barros, um engenheiro de formação que já era prócer do Centrão antes de se tornar ministro (com Temer), não dominava a gramática da área – e, por isso, articulava o projeto de privatização do SUS de uma forma mais grosseira. Defendia a criação de planos de saúde “populares” sob o argumento de que mais participação do setor privado reduziria custos. Queria um SUS menor.
Mandetta – também membro do Centrão, porém médico – levou consigo para o ministério uma equipe mais qualificada, mas não menos privatista. Ao invés de defender os interesses empresariais de forma direta, o argumento passou a ser o de que só a participação do setor privado alavancaria o atendimento gratuito aos mais pobres. Sabiam que transferir fundos públicos para o setor privado pode ser feito com um “SUS maior”.
Por isso não surpreende em nada o achado da Folha. O jornal pediu, via lei de acesso à informação, documentos do Ministério da Saúde que sustentaram a edição do decreto 10.530, que incluía as unidades básicas de saúde no PPI, o programa federal de concessões de serviços públicos à iniciativa privada. Descobriu que partiu da secretária comandada por Erno Herezzhein uma nota técnica defendendo a inclusão da atenção primária à saúde no portfólio do programa. Esse documento foi enviado em novembro de 2019 pelo então secretário-executivo da pasta, João Gabbardo, à Casa Civil.
O documento alega num jargão tecnocrático que tal inclusão teria como objetivo “oportunizar um redesenho e promover a eficiência na execução da atenção primária à saúde e expansão dos seus serviços no território nacional”. A meta era chegar a 50 mil equipes da Estratégia Saúde da Família em 2023, partindo de um número nada desprezível de 42.893 espalhadas em 5.475 municípios.
Também não é surpresa que a nota técnica cite o relatório do Banco Mundial voltado para o SUS que havia sido divulgado em agosto de 2018 e concluiu que o problema do sistema de saúde brasileiro é a ineficiência do gasto público – e não o desfinanciamento inaugurado naquele ano para a saúde pela emenda do teto de gastos, depois de anos de subfinanciamento crônico.
“O Ministério da Saúde destaca um trecho do relatório, segundo o qual, apesar dos serviços eficientes, há desperdício anual de R$ 9,3 bilhões na atenção primária à saúde. A conta inclui verbas dos três entes federados — União, estados e municípios. A pasta ressalta também que, das 32.892 obras de construção, reforma e ampliação de unidades básicas de saúde, 6.230 foram canceladas e 3.027 estão com indicativo de paralisação”, apurou a repórter Constança Rezende. A solução para tudo isso seriam as parcerias público-privadas, as PPPs.
Outro documento obtido pelo jornal por meio da LAI é um parecer da consultoria jurídica do Ministério da Saúde, que conclui não haver impedimento legal para que unidades básicas fossem concedidas à iniciativa privada.
“Quem pagaria a conta do investimento privado na operação dos serviços no contexto de restrição fiscal? Seria uma abertura para cobrança por serviços no SUS?”, questiona Adriano Massuda, da FGV, em entrevista à Folha. E lembra: “A operação privada da atenção primária enfraquece o papel de autoridade sanitária e de coordenação de saúde pública, uma das principais forças do modelo saúde da família brasileiro.” É o famoso sistema com nariz, boca e orelha de SUS, sem ser SUS.
Mandetta, que nos últimos tempos dá opinião sobre tudo e está sempre disposto a conversar diretamente com jornalistas quando é para bancar o mocinho, resolveu responder aos questionamentos da reportagem via assessoria de imprensa. Criticou o método, não o mérito: “O Ministério da Saúde não assinou [o decreto] nem explicou. Daí a rejeição de todos nós da saúde sobre o que quiseram dizer. Nem a economia nem o presidente soube dizer do que se tratava”.
Candidatos e parlamentares aliados de Jair Bolsonaro começaram ontem uma campanha para espalhar o boato de que uma fraude eleitoral estava em andamento no país. O conspiracionismo se valeu de uma falha em um supercomputador do Tribunal Superior Eleitoral que atrasou a totalização dos votos de diversas cidades e também de um ataque hacker malsucedido que tentou derrubar o sistema interno do TSE durante a manhã. Os deputados federais Eduardo Bolsonaro, Bia Kicis e Carla Zambelli foram às redes colocar em dúvida a lisura do pleito e defender o voto impresso, bandeira do presidente – ele próprio um disseminador contumaz de dúvidas sobre as eleições até quando o resultado o beneficia, como em 2018. As investigações sobre a tentativa de ataque hacker mostram que a operação foi planejada com o fim de “desacreditar a Justiça Eleitoral e eventualmente alegar fraude no resultado desfavorável a certos candidatos”, segundo Thiago Tavares, presidente da SaferNet, que trabalha em parceria com o Ministério Público Federal no monitoramento de fraudes eleitorais.
O nível de abstenção do pleito foi o maior em 20 anos, chegando a uma média de 23% no país. No primeiro turno das eleições municipais de 2016, a abstenção foi de 17,6%. “As abstenções são as protagonistas destas eleições e vêm acontecendo como a gente vê no resto do mundo, principalmente nas faixas etárias acima dos 55 anos. A tendência das abstenções pode ter mexido no peso de cada grupo de eleitores. Isso deu mais peso para os votos dos jovens de até 30 anos” analisa Mauricio Moura, do Ideia Big Data, no site da Piauí.
Haverá segundo turno em 57 cidades; sendo 18 delas capitais. Em São Paulo, o PSOL conseguiu um resultado inédito levando seu candidato Guilherme Boulos para a disputa contra o atual prefeito, Bruno Covas (PSDB). No Rio, a esquerda não conseguiu emplacar candidato e a disputa ficará entre Eduardo Paes (DEM) e Marcello Crivella. Em Recife, os eleitores vão decidir entre os primos João Campos (PSB) e Marília Arraes (PT). O G1 tem a lista completa das cidades e disputas do segundo turno.
Chama atenção que o filho do presidente, Carlos Bolsonaro (Republicanos), candidato à reeleição para vereador no Rio, tenha encolhido cerca de 35 mil votos em relação a 2016. Com cerca 71 mil votos, ficou em segundo lugar como o mais votado, atrás de perdendo Tarcisio Motta (PSOL), que teve cerca de 86 mil votos. Rogéria Bolsonaro (Republicanos), que também se candidatou à Câmara de Vereadores do Rio, ficou em 226º lugar, com pouco mais de dois mil votos. Outros candidatos apoiados pelo presidente naufragaram, caso de Celso Russomano em SP e delegada Patrícia, em Recife. Ambos ficaram na quarta posição.
Segundo levantamento da Folha, o presidente apoiou 59 candidatos: 44 a vereador, 14 a prefeito e um ao senado (na eleição suplementar de Mato Grosso). Além de usar o Palácio da Alvorada para fazer campanha nas últimas semanas, Bolsonaro chegou a postar ontem nas redes sociais um texto de apoio a candidatos, que acabou apagando.
Aconteceu na sexta-feira a audiência do Congresso Nacional que colocou Anvisa e Instituto Butantan lado a lado para darem explicações sobre o episódio de paralisação dos testes da CoronaVac. A agência reguladora negou sofrer interferência do presidente Jair Bolsonaro, que comemorou a decisão nas redes sociais. E o Butantan negou sofrer interferência do governador João Doria (PSDB) que já anunciou algumas vezes o início da imunização sem a vacina sequer ter chegado ao estágio dos testes em que dá para pedir autorização de uso emergencial.
Segundo o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, o Butantan recebeu ofício da agência reguladora 40 minutos antes de a decisão sobre a paralisação do estudo clínico ser divulgada. O diretor do instituto, Dimas Covas, confirmou, mas questionou: “Só que eu pergunto: quem é que vai acessar a caixa postal do estudo às 21h04 da noite?”
Para ele, o episódio teve efeitos políticos. “Isso aí obviamente não é positivo, obviamente não é positivo; é negativo e tem implicações, sim. Há implicações, inclusive, na compreensão da importância da vacina. Estamos vivendo um problema muito grave de vacinação. Termina agora a vacinação da poliomielite e do sarampo com a menor adesão dos últimos anos: a adesão está em torno de 40%, 45%, sendo que o esperado seria acima de 85%. Então, todas as questões relativas à vacina – se toma vacina, se é obrigatória a vacina, se a vacina é segura, se a vacina é chinesa – obviamente têm impacto na população”, considerou.
Barra Torres falou que “o que pode gerar resistência na população é não tratar a rotina como rotina” e voltou a repetir que a decisão partiu da área técnica. “Se tivesse sido tratado desde o princípio como um fato do desenvolvimento vacinal, portanto um fato rotineiro e ligado exclusivamente à área técnica, não estaríamos tendo essa conversa com os senadores e a população não estaria preocupada com o que está acontecendo”.
Em tempo: a Academia Brasileira de Ciências, a Academia de Ciências Farmacêuticas do Brasil e a Academia Nacional de Medicina condenaram, em nota conjunta divulgada no sábado, a politização dos ensaios clínicos de vacinas contra a covid-19. “Essa questão não pode continuar a ser tratada como briga de torcida e busca de holofotes na mídia. Mais do que nunca, é necessária uma agenda comum, onde evidências científicas possam ajudar a nortear as decisões. A Anvisa, como agência máxima de saúde, necessita ser respeitada e blindada contra interesses mesquinhos e ignorantes para conseguir manter sua credibilidade”, diz o texto.
O Ministério da Saúde parece ter desistido de liderar a confecção do plano para a futura campanha de imunização contra a covid-19. Segundo o Estadão, a pasta deu sinal verde para que o Congresso defina quais serão os grupos prioritários e os critérios de distribuição de recursos para os demais entes – embora não se posicione oficialmente sobre a discussão passar para a mão dos parlamentares. Um projeto de lei do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que deve ser colocado em votação essa semana na Casa. No PL, idosos, doentes crônicos, profissionais de saúde e outros grupos de risco vão para a frente da fila. Como já falamos por aqui, existem outros critérios epidemiológicos possíveis, como a imunização dos trabalhadores que estão em contato com muita gente e podem ser espalhadores assintomáticos do vírus, caso de caixas de supermercado, gente que trabalha no transporte público, etc.
O PL estabelece que a distribuição de doses para estados seja feita de acordo o tamanho da população, o número de infectados, a capacidade da rede de saúde local e o potencial de disseminação da covid-19 na região. “É preciso regulamentar a forma como a distribuição de vacinas contra a covid-19 deve ser feita à população, quando adquirida com recursos públicos federais, principalmente para que os benefícios sanitários não sejam indevidamente sobrepostos por forças e interesses meramente econômicos ou por conveniências e alianças políticas”, afirmou Vieira ao jornal. O PL será relatada pelo senador Nelsinho Trad (PSD-MS).
A Covax, principal iniciativa internacional para garantir o fornecimento equitativo de vacinas contra o coronavírus, superou a meta de arrecadação de mais de US$ 2 bilhões para comprar e distribuir os imunizantes aos países mais pobres. A Gavi, entidade privada que coordena o projeto junto com a OMS, afirmou que o dinheiro será suficiente para comprar 1 bilhão de doses para 92 países elegíveis que não teriam como custeá-las de outra forma. Mas, como dá para notar, a conta ainda não fecha, e por isso o projeto seguirá tentando articular mais doações. Já falamos por aqui sobre as implicações da estratégia – que é basicamente uma saída de mercado para o problema da proteção das pessoas, já que não questiona a lógica das patentes farmacêuticas. A proposta que tenta flexibilizar as patentes no contexto da pandemia segue sem definição na Organização Mundial do Comércio.
A Assembleia Mundial da Saúde acabou na sexta-feira. Principal fórum de decisões da OMS, a assembleia aprovou um plano para reduzir a carga de doenças tropicais negligenciadas em 90% até 2030. O documento considera 18 enfermidades parasitárias e transmitidas por vetores que afetam mais de um bilhão de pessoas no planeta, principalmente em nações pobres. Os países também se comprometeram a eliminar a meningite até 2030. A doença pode ser prevenida por vacina, e o documento centra esforços no aumento da cobertura vacinal e também na vigilância para evitar surtos e epidemias. Em meio à pandemia, o diretor-geral da OMS Tedros Ghebreyesus propôs a criação de um banco mundial com amostras de patógenos – vírus, bactérias, fungos, entre outros – para acelerar a resposta a crises sanitárias globais. A proposta é que o repositório seja instalado na Suíça, sob a guarda da Organização.
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Os meandros da trama para privatizar o SUS - Instituto Humanitas Unisinos - IHU