23 Dezembro 2020
A cruzada é um dos vetores propagandísticos da comunicação implementada pelo tradicionalismo católico. Ela não só se encontra na convocação de cruzadas de orações para fins políticos (por exemplo, para a reeleição de Trump à presidência dos Estados Unidos), mas também na apresentação da cruzada como resposta necessária – a ser implementada no plano espiritual (cruzada do terço no fronteiras), mas também a ser levada para o plano militar, se necessário – à suposta ameaça de invasão islâmica do Ocidente. A referência à cruzada também constitui o pano de fundo cultural dos soberanistas brancos que periodicamente semeiam a morte com os seus atentados.
Essa é a opinião do historiador italiano Daniele Menozzi, professor emérito da Scuola Normale Superiore de Pisa e ex-professor das universidades de Trieste, Bolonha, Lecce e Florença.
Estudioso das relações entre Igreja e sociedade, é autor do livro “Crociata. Storia di un’ideologia dalla Rivoluzione francese a Bergoglio” [Cruzada. História de uma ideologia, da Revolução Francesa a Bergoglio, em tradução livre] (Ed. Carocci, 244 páginas).
A entrevista foi concedida a Lorenzo Prezzi e publicada por Settimana News, 22-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Imagem: Divulgação
Prof. Menozzi, no livro que dedica à investigação sobre as Cruzadas, você conclui com um paradoxo singular. Embora o papado esteja abandonando todas as justificativas ao apelo à Cruzada, o seu uso absolutamente não se esgotou na política. A sua ideologia sobreviverá sem o consentimento do papado?
O futuro é um assunto particularmente difícil para um estudioso de história. No entanto, pode-se fazer uma consideração. Nos últimos dois séculos, o papado, embora se reservando a faculdade de convocar uma cruzada militar quando julgasse oportuno, nunca a promoveu concretamente no plano bélico. No entanto, fez um amplo uso do léxico da cruzada para mobilizar os fiéis (por exemplo, a “cruzada do terço” de Leão XIII, a “cruzada missionária” de Pio XI, a “cruzada social” de Pio XII). Desse modo, alimentou a circulação na linguagem comum de um termo, ao qual se atribuía – e que efetivamente desempenhava – uma função performática. As religiões seculares da política se aproveitaram disso para prosseguir com a sacralização da violência que pretendiam pôr em ação para alcançar os seus objetivos (por exemplo, a “cruzada antibolchevique” do nazifascismo, à qual alguns setores do mundo católico não se mostraram insensíveis).
O Papa Francisco interrompeu esse circuito entre a linguagem da religião católica e a das religiões políticas, convidando os fiéis a evitarem todo recurso, mesmo para fins espirituais, a um vocábulo que visa ao confronto em vez do diálogo, como espinha dorsal das relações sociais. Desse modo, retirou toda legitimação católica da cruzada. Os homens e mulheres de hoje estão investidos da plena responsabilidade de escolher se querem continuar promovendo cruzadas ou buscar outros caminhos para resolver os problemas da convivência civil. Os próximos anos nos dirão qual direção foi seguida.
Como descrever o uso e o abuso do termo “cruzada” após a destruição das Torres Gêmeas em Nova York em 2001?
Após os atentados às Torres Gêmeas, o presidente Bush indicou na cruzada a resposta que devia ser posta em campo contra o terrorismo islâmico. Depois, ele corrigiu a direção, já que as suas afirmações, com bons resultados, eram usadas pela propaganda fundamentalista, em particular pela comunicação política da Al-Qaeda, como prova de que o Ocidente continuava se relacionando com o mundo muçulmano de acordo com o esquema das cruzadas medievais.
No entanto, o governo estadunidense nunca deixou de recorrer ao léxico da guerra santa, tanto que alguns cientistas políticos qualificam precisamente com o termo “cruzada” a política estadunidense para o Oriente Médio durante o governo Bush. Essa situação levou os estudiosos das Ciências Humanas a se interrogarem sobre a sacralização da violência bélica na era contemporânea. O livro de que estamos falando também se situa dentro desse processo de análise. O seu objetivo é colocar em uma perspectiva histórica o recurso atual ao termo “cruzada”, a fim de fornecer instrumentos interpretativos que ajudem a decifrar os seus usos.
Como você interpreta o ressurgimento do vínculo religião-política em algumas pesquisas como as que se referem ao “choque das civilizações”?
No término da época que havia visto a competição bipolar entre EUA e URSS pelo controle da política internacional, o cientista político estadunidense Samuel Huntington propôs o esquema do choque entre as diversas civilizações – cujas fronteiras coincidem substancialmente com as das grandes religiões distribuídas pelo planeta – como critério de leitura da nova dinâmica histórica do mundo. A substituição do conflito entre religiões pelo entre ideologias responde a uma constatação acerca dos acontecimentos das últimas décadas do século XX: naquele período, verificou-se a crise do paradigma da secularização entendida como desfecho inevitável do caminho humano, e se assistiu ao redespertar do religioso como força capaz de mudar os ordenamentos estatais (basta pensar na revolução iraniana de 1978-1979).
Mas o livro de Huntington também revela que, diante do vazio causado pelo colapso do mundo bipolar, o autor buscou no passado alguns critérios de leitura para a nova situação que havia se criado: a história das cruzadas medievais lhe ofereceu um fácil ponto de referência. O recurso ao esquema do choque de civilizações também representa uma generalização em nível planetário de uma experiência da relação entre religião e política que tem um caráter regional e que é cronologicamente circunscrita.
Quais são as consonâncias e as diferenças entre a “cruzada” cristã e a jihad islâmica?
As duas categorias assumiram conteúdos diferentes ao longo do tempo e nos diversos contextos geoculturais que recorreram a elas (basta pensar que o uso comum atual do termo “cruzada” em âmbito cristão é atribuível a uma construção semântica elaborada pela Cúria Romana no século XV e não sobre a prática linguística contemporânea às iniciativas militares lançadas na Idade Média para a libertação do Santo Sepulcro). Em geral, pode-se dizer, porém, que o elemento mais evidente de convergência entre a cruzada cristã e a jihad islâmica consiste em apresentar a salvação eterna como a recompensa automática que cabe a quem morre para alcançar seus respectivos objetivos. A diferença mais relevante, por sua vez, diz respeito à promoção: a cruzada cristã tem início apenas em virtude de uma convocação pela suprema autoridade da Igreja, o papa; o policentrismo da religião muçulmana faz com que cada autoridade espiritual do Islã tenha a faculdade de proclamar a jihad.
Por que, na sua pesquisa, você escolheu a abordagem linguística, ou seja, o uso do termo, em vez de outros métodos de investigação mais difundidos no trabalho historiográfico?
A escolha de tomar os usos da palavra “cruzada” como fio condutor da reconstrução tem fundamentalmente duas razões. Por um lado, a persuasão de que o recurso a um sintagma como “cruzada” – tão denso de implicações históricas, evocações míticas e sugestões proativas – nunca é “inocente”, mas, pelo contrário, responde a intencionalidades específicas que cabe ao trabalho histórico estabelecer. Por outro lado, a convicção de que é preciso evitar as armadilhas em que a historiografia às vezes caiu, quando conotou com a palavra “cruzada” iniciativas de personagens que nunca empregaram esse vocábulo. Não é irrelevante, por exemplo, notar que, embora o episcopado espanhol tenha feito um recurso bastante amplo (embora não unânime) à definição da guerra civil como cruzada, o papado, apesar das solicitações do governo franquista, nunca seguiu esse caminho, permitindo, entretanto, que a diplomacia vaticana se alinhasse aos bispos ibéricos, mas apenas a partir do pontificado de Pacelli.
O estudo começa na Idade das Luzes. Por que precisamente a partir daí?
A cultura das Luzes marca uma passagem decisiva na avaliação da cruzada: o julgamento histórico duramente negativo sobre as expedições militares à Terra Santa implica o desejo de um confinamento delas em um passado irrepetível na era moderna da razão e do progresso. A Revolução Francesa, com a dispersão da Ordem Soberana de Malta, última herdeira das ordens cavalheirescas engajadas na libertação do Santo Sepulcro, parece marcar o efetivo fechamento da era das cruzadas. Na realidade, precisamente naquele período, a cruzada se torna uma categoria fundamental da modernidade política. Em uma época em que as massas parecem ser um fator determinante da vida pública, o recurso à força evocativa e à capacidade mobilizadora ligada ao termo “cruzada” é um dos instrumentos de luta política do qual não se quer abrir mão. Começa-se, assim, um complexo caminho em que, através de uma multiplicidade de ressemantizações, chega até os nossos dias o entrelaçamento entre o político e o religioso que envolve o emprego de “cruzada”. O caso Bush a que me referi antes certamente não é um caso isolado.
Poderia dar alguns exemplos do uso do sintagma “cruzada” nos confrontos ideológicos e políticos do passado?
Parece-me que um dos resultados mais interessantes da pesquisa realizada no livro consiste na demonstração da ampla circulação da linguagem da cruzada para dar valor religioso e, portanto, absoluto a um confronto. Por exemplo, a apresentação da primeira guerra pela independência italiana como uma cruzada está largamente difundida nos mais diversos registros comunicativos (da propaganda política e militar à escritura privada; das representações visuais em quadros e gravuras às canções populares).
Mas precisamente durante esse caso se verifica uma ruptura significativa. Os chefes do exército pontifício, sublinhando explicitamente o valor propagandístico da operação, decidem qualificar como “cruzada pela nação” a participação na guerra de Carlos Alberto sem qualquer mandato papal a esse respeito. Desse modo, a cruzada se seculariza: a convocação passa do papa para as autoridades laicais. Mas, nesse processo, também se verifica uma transferência de sacralidade: o uso do termo transfere para a nação a legitimação religiosa da violência que deriva do seu emprego para a libertação da Terra Santa. No livro, eu tento reconstruir a longa história de entrelaçamentos entre a sacralização do político e a politização do religioso que se desdobra em torno do uso do sintagma.
E hoje?
A cruzada é um dos vetores propagandísticos da comunicação implementada pelo tradicionalismo católico. Ela não só se encontra na convocação de cruzadas de orações para fins políticos (por exemplo, para a reeleição de Trump à presidência dos Estados Unidos), mas também na apresentação da cruzada como resposta necessária – a ser implementada no plano espiritual (cruzada do terço nas fronteiras), mas também a ser levada para o plano militar, se necessário – à suposta ameaça de invasão islâmica do Ocidente. A referência à cruzada também constitui o pano de fundo cultural dos soberanistas brancos que periodicamente semeiam a morte com os seus atentados.
Por outro lado, a propaganda do terrorismo islamista chama os fiéis à jihad, pois a proclama como a única atitude capaz de enfrentar a cruzada que, desde a Idade Média até hoje, representou o esquema da relação estabelecida pelo Ocidente com os países muçulmanos. Precisamente por essa razão, o esforço de esclarecer as implicações efetivas do emprego do termo na história pode ajudar a restituir o rosto autêntico de todas essas formas de propaganda. Colocadas em perspectiva histórica, aparecem apenas usos manipulatórios de um vocábulo que se acredita que tem valor performativo para condicionar os comportamentos políticos de populações ignaras à ideologia subjacente.
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“Cruzada”, uma palavra que retorna. Artigo de Daniele Menozzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU