22 Julho 2011
No seu último livro, L`enigma del capitale e il prezzo della sua sopravvivenza [O enigma do capital e o preço da sua sobrevivência], o geógrafo David Harvey (foto) explica lucidamente como os fluxos do capital continuam produzindo formas de servidão que estamos acostumados a atribuir a eras remotas.
A análise é de Giacomo Todeschini, professor de história medieval da Universidade de Trieste, na Itália, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 13-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
L`enigma del capitale e il prezzo della sua sopravvivenza (Ed. Feltrinelli, 2011, no original, The Enigma of Capital: And the Crises of Capitalism, Ed. Profile Books, 2010), de David Harvey, atualmente distinguished professor de antropologia no Graduate Center da City University em Nova York, é um livro a ser lido para entender como a fase de extrema decomposição e onipotência do capitalismo ocidental já globalizado determina para as pessoas, a grande maioria das populações dos cinco cantos do globo, condições de vida perfeitamente humilhantes, no limite da escravidão, e muitas vezes bem além desse limite que se imaginaria banido da "modernidade".
Dependência absoluta
Esse livro também é útil de ler para se dar conta do fato de que os marxistas anglo-americanos (Harvey fez o seu doutoramento em Cambridge nos anos 1960 e depois lecionou nas Universidades de Bristol e de Oxford) conseguem escrever sobre capitalismo e desastres relacionados em uma chave nem de adeptos aos trabalhos um pouco arrogantes, nem descuidadamente demagógica, mas concreta, culta e combativa ao mesmo tempo. Sem ter medo de ensinar o que muitas vezes não se sabe.
Já em seu livro anterior (La crisi della modernità. Riflessioni sulle origini del presente [A crise da modernidade. Reflexões sobre as origens do presente], Ed. Il Saggiatore, 1993; Ed. Net, 2002), Harvey havia mostrado que, na fase atual da cultura neoliberal e das lógicas de um desenvolvimento econômico que visa à exploração indiscriminada e selvagem dos mais fracos, reaparece na cena mundial toda a espécie de servidões e de precariedades, ou seja, elas se multiplicam, tornando-se alavancas fundamentais do "desenvolvimento", formas antigas e medievais de dependência absoluta e de destruição dos direitos dos homens e das mulheres de existir como pessoas, tendo sido demolidas há muito tempo as fantasiosas liberdades de indivíduos habitualmente livre apenas – como dizia uma canção dos anos 1960 – "para expor as roupas ao vento".
Da mesma forma, agora, neste livro, o geógrafo e economista norte-americano mostra ao leitor – com uma clareza que os pontífices da esquerda italiana ignoram em sua maior parte – como a realidade superou os mais sombrios presságios do último Marx. O livro conquista o leitor desde a primeira linha, lembrando-lhe que o "fluxo do capital" é um fenômeno orgânico e impessoal, uma forma de fisiologia cultural que ninguém controla na realidade, mesmo que, de uma época a outra, abundem aqueles que se valeram de ricos no comando para enriquecer ainda mais, dirigindo e guiando oportunamente o "fluxo". Harvey, além disso, não usa a palavra "fluxo" de forma vazia: no fundo do seu raciocínio, está uma metáfora muito antiga do dinheiro, a da circulação sanguínea.
Como Bernardino de Siena, no século XV, Bernardo Davanzati no século XVI, e depois John Toland e Ferdinando Galiani, entre os séculos XVII e XVIII, Harvey captura com essa metáfora, dependente de uma representação de castas e depois classista das sociedades humanas representadas como órgãos hierárquicos (mesmo que a divisão em castas e classes, das quais Harvey mostra a perversa desumanização, agradava muito a Bernardino, Davanzati, Toland e Galiani, ao contrário), o quanto de profundo e inexorável existe em um processo de acumulação que, ao longo do tempo, fez do dinheiro circulante não apenas um equivalente universal, mas também um objeto perfeitamente abstrato, manejável e contável com as palavras, aprendível com a mente antes que com as mãos, uma matemática concreta capaz de enumerar o valor e a dignidade das vidas.
Na dura realidade de cada dia, algo mais perto de um Espírito puro. Um Espírito, porém, como todos os Espíritos evocados pelas culturas que têm patrões e senhores, extremamente flexível e serviçal com relação a quem conhece os seus segredos e magias e que, portanto, sabe explicar seus fascínios e promessas a quem não os sabe.
Harvey explica muito bem ao leitor até que ponto o dinheiro como objeto "desmaterializado" funciona ao serviço de quem tem poder social em uma lógica que, enquanto aumenta a riqueza dos mais ricos às custas dos mais fracos e dos mais pobres, coincide com uma vontade de poder e de conquista muito típica de um Ocidente cristão caracterizado pela tensão a se universalizar, ou, como hoje se costuma dizer, a globalizar seus próprios valores e a invadir todo espaço geográfico e mental possível.
Os "espíritos animais"
A questão tem a ver – observa Harvey limpidamente – com uma sistematização econômica que se realiza em termos de conquista masculina do mundo: "A conquista do espaço e do tempo e a supremacia sobre o mundo (seja sobre a "Mãe Terra", seja sobre o mercado mundial) aparecem em muitas fantasias capitalistas, como expressões removidas mas sublimes do desejo sexual masculino e da fé carismática e milenar. É essa a fé obsessiva que incita os "espíritos animais" dos financistas em um crescendo de euforia? É esse o motivo pelo qual tantos magos das finanças e gestores de hedge fund são do sexo masculino? É assim que nos sentimos quando se especula sobre todo o valor da moeda neo-zelandesa em uma única operação? Que poder extraordinário de cavalgar o mundo e de curvá-lo à própria vontade!".
Não é um mistério para Harvey que a questão não é um fogo de artifício dos últimos 30 anos, e que nem toda ela está determinada pela revolução industrial, que, em suma, a megalomania capitalista hoje explosiva e destrutiva ("aquela que hoje chamamos de globalização está desde sempre na mira da classe capitalista", diz-nos Harvey francamente, depois de uma fulminante citação do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels) afunda as suas raízes em antigos e às vezes esquecidos delírios de onipotência religiosa e econômica produzidos naquela que foi a pequena Europa pré-industrial.
Uma cultura econômica que tem como objetivo indiscutível "conquistar a terra inteira como o seu mercado" (como escrevia Marx nos Lineamentos Fundamentais da Economia Política, e que Harvey retoma) não é, talvez, embebida de teologia, embora o negue revestindo-se de estatísticas circundante e de elucubrações sobre a "felicidade" dos consumidores?
Economia iniciática
O nosso economista-geógrafo, no entanto, é consciente do fato de que esse discurso é um pouco tabu, mesmo à esquerda, dado que o dogma historiográfico-econômico ainda hoje imperante recita que tudo começou no máximo anteontem.
Mas justamente a fase final do desenvolvimento capitalista, com os seus enigmas com relação à produtividade infinita eternamente recriável e as suas mitologias de riqueza sem fim, com a multidão de vítimas que ela tritura nas suas engrenagens (vítimas e pobres desde sempre necessários como um reservatório de mão-de-obra, mas hoje cada vez mais indispensáveis para um capital que se reproduz a ritmos vertiginosos e sob o preço de desempregos e subempregos em massa), justamente a fase em que vivemos, de desertificação de continentes, monoculturas devastadoras, fraudes orquestradas por uma finança planetária que os Estados apoiam por meio das instituições bancárias e das quais a massa anônima dos consumidores afogados em dívidas paga o preço: tudo isso, além da economia dos economistas, neoliberais ou não, precisa de história, isto é, de explicações.
Para fazer e para mudar, em definitivo, é preciso entender por que chegamos até aqui. E Harvey, corajosamente – uma vez que o seu objetivo é prospectar um caminho que possa ser percorrido pela maioria, finalmente aliada, "pelos insatisfeitos, pelos aliados, pelos indigentes e pelos expropriados" ("O que fazer? E quem o fará?"), indica chaves e razões que resolvam os enigmas de uma economia iniciática fundada no consenso devoto das suas vítimas e iluminem os mistérios da religião do capital.
"Enquanto se afirmava, o capitalismo trazia em seu interior múltiplos traços das diversas condições em que havia se completado a transformação para a nova ordem. Talvez se atribuiu muita importância ao papel desempenhado pelo protestantismo, pelo catolicismo e pelo confucionismo, com as suas diversas tradições, na determinação das diversas configurações do capitalismo em várias partes do mundo, mas seria temerário sugerir que tais influências são irrelevantes ou mesmo negligenciáveis". O tom é agradavelmente tímido e educado, mas o conceito é claro.
Púlpitos e academias
Para aprofundar o drama das pobrezas mundiais, do endividamento crônico de milhões de pessoas hipnotizadas por uma lógica de consumo cujo objetivo final é fazer com que a multidão dos consumidores-súditos pague o preço das especulações dos senhores das finanças, é preciso começar a se perguntar de qual dimensão do tempo e do espaço chega o moderno modo de viver o dinheiro: e quais férreas ligações conectam o capital pós-moderno e o "conúbio Estado-finanças" que o caracteriza ao longo passado europeu de uma economia senhoril e teológica fundada sobre o direito supremo e divino dos "felizes poucos" de se enriquecerem às custas da maioria dos fiéis/subalternos. Apresentando-se, além disso, como garantia carismática de um "bem comum" descrito pelos púlpitos e pelas academias como a primeira etapa para uma Salvação eterna e luminosa.
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Idade Média contemporânea. O novo livro de David Harvey - Instituto Humanitas Unisinos - IHU