09 Dezembro 2020
"É possível que o cristianismo católico seja um instrumento importante na construção de um novo horizonte cultural que se descortina neste século e não procurar uma volta ao passado sem sentido. Para isso será necessário assumir aquilo que é humanizador na atual situação que vivemos. E elas existem, sem nenhum prejuízo à fé genuinamente vinculada ao Caminho de Jesus Cristo", escreve Celso Pinto Carias, doutor em Teologia pela PUC-Rio, assessor das CEBs do Brasil e do Setor CEBs da Comissão Pastoral Episcopal para o Laicato da CNBB e, nas palavras do autor, "um mendigo de Deus".
Pretensiosamente decidi fazer uma análise de conjuntura eclesial um pouco diferente. Mais do que lançar mão de possíveis embasamentos teológicos, eclesiológicos e sociológicos que pude adquirir em estudos acadêmicos e de informações reportadas da conjuntura mais imediata, resolvi fazer uma narrativa em primeira pessoa como uma espécie de grande desabafo, onde o risco será todo meu, pela qual vou pontuando alguns elementos que considero de fundamental importância para uma instituição que pretende ser continuadora do Caminho de Jesus Cristo neste tempo tão dramático. Assim sendo, poderá ser rotulada de diversas formas, mas será expressão de um católico que está à porta dos 59 anos, avô, e que nunca passou por outra experiência religiosa.
Uma rápida apresentação para quem não me conhece mais de perto. Meu pai, apesar da pouca instrução, foi um católico de grande participação: congregado mariano, preparador para o Sacramento do Batismo, ministro da eucaristia entre tantas outras funções que exerceu até morrer. Lembro que em Realengo, periferia da cidade do Rio, onde praticamente nasci, levava os três filhos mais novos em sua bicicleta para a Igreja. Éramos seis. Mudamos para a Baixada Fluminense (1971), Duque de Caxias, RJ. Eu tinha nove anos na época. Morávamos praticamente ao lado da Matriz Paroquial que tinha três missas dominicais. Quando chegávamos da celebração ele perguntava: “Qual foi o Evangelho de hoje, o que padre falou?” Deste mesmo pai ouvi: “Acabou-se o tempo das fitas largas, estamos no tempo do Vaticano II” (congregados usam uma fita como símbolo de pertença ao movimento). Hoje não concordaria totalmente com o meu falecido pai (1982, com 54) no que tange aos congregados.
Fui coroinha e coordenador de grupo jovem. Aos 18 anos fui para o seminário. Fiz filosofia, e no segundo ano de teologia desisti do presbiterado. Finalmente, para encurtar a conversa, sempre estive metido, de alguma forma, dentro de alguma coisa na Igreja. Tornei-me teólogo leigo, mestrado e doutorado, dei aula em seminário, e hoje continuo buscando servir a Igreja de alguma forma. Já tenho mais de 45 anos de serviços prestado, predominantemente voluntário.
Em uma situação na qual o diálogo tem sido muito difícil, achei importante realizar a apresentação acima, pois se o Papa Francisco é duramente criticado, imagine um “mendigo de Deus” da Baixada Fluminense? Mas modestamente, o sentimento que me vem é aquele do profeta: “Tenho que gritar, tenho que falar, ai de mim se não o faço”. Só para esclarecer, encontrei a expressão “mendigo de Deus” em livro do teólogo Bruno Forte, hoje bispo, que dizia ser o teólogo um pedinte diante do mistério de Deus.
Preparado o caminho, vamos lá. Dividirei esta análise em três momentos: uma rápida descrição da realidade do mundo de hoje; a resposta predominante dada pela Igreja Católica do Vaticano II até o presente momento; e finalmente possíveis perspectivas. Em cada momento não me omitirei de apontar tensões e conflitos que perpassam a vida eclesial. Publico esta análise no Tempo do Advento de 2020. Tempo litúrgico que celebra a esperança no interior de uma pandemia. Que celebra a presença de um Deus que se faz presente na história. Assim, minha narrativa aqui quer ser um grito para celebrar a esperança de novos tempos para Igreja.
Trabalho na PUC-Rio e moro na Baixada. Saio do terceiro mundo para o primeiro quando vou trabalhar. Hoje tenho carro, mas vou predominantemente de trem/ônibus. Escrevi uma crônica certa vez sobre o “mundo” que se pode ver no interior dos trens metropolitanos. Pretendo escrever a partir deste olhar.
Através de um complexo de informações podemos fazer análises mais completas em torno da realidade. Tenho até amigos próximos que me ensinam bastante quanto a isso. E elas são necessárias. Contudo, mais do que demonstrar por meios argumentativos o que se passa com o mundo e com a Igreja, gostaria de perguntar: será que meus olhos não estão vendo o que vejo? Será que os meus ouvidos estão ouvindo o que ouço? O mundo em que estamos vivendo é o mesmo para todos e todas?
A tal crônica citada acima foi motivada por algo que vi. E o que vi poderia ser visto de modo completamente diferente por outras pessoas. Foi dia 02/10/2018. O trem passava pela estação de Vigário Geral, já no município do Rio de Janeiro, aquele lugar que anos atrás houve uma chacina com 21 mortos. Entra no trem um casal jovem, em torno de 17 anos, negros, e um bebê ao colo, uns três meses. Certamente pobres. Cedem lugar para eles. A certa altura a mãe amamenta a pequena criança com um olhar extremamente carinhoso. Para mim o trem é síntese da periferia urbana do Brasil, quiçá de todas as periferias. Um bom observador e escritor, não é o meu caso, poderia escrever muitas crônicas. Drumond escreveu uma sobre o bonde. Acontece de tudo. Mercado informal, pedintes, brigas, assaltos, conversas variadas nas quais todos participam: política, religião, traição, etc. Antigamente havia pregação religiosa, mas a operadora dos trens proibiu, mas continuam dando um jeitinho, como vender um produto em nome de uma “ação social” de uma igreja.
Participando de tantos encontros de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e sobre as CEBs, tenho me perguntado, há muito tempo, para onde vão as comunidades. Para onde está indo a Igreja? Vejo as comunidades, muitas vezes, como aquele jovem casal da estação de Vigário. Abandonados, talvez não tão compreendidos. Contrário ao meu olhar, muitos poderiam dizer: “como pode, um casal tão jovem e pobre e já com uma criança”. O mundo se transforma, a vida passa, pessoas saem de casa de madrugada e voltam bem tarde. Lotam os trens. Como os nossos discursos enxergam esta realidade? Como formular um conceito de família ideal no contexto do mundo de hoje? Onde moro, por trás de muitos muros de alvenaria bem construídos, podem existir três, quatro, cinco casas no mesmo quintal. E casas, evidentemente, extremamente pequenas. Uma família com dois filhos ou mais, pode viver em dois pequenos cômodos. Alias a maioria do povo brasileiro vive em situação parecida. Como se dá as relações humanas, em suas diversas possibilidades, em tal espaço?
Campo e cidade se confundem sob o horizonte de um “deus mercado”, do consumismo, de um desejo de ser feliz conseguindo sobreviver com dignidade. Felicidade colocada muitas vezes em uma aposentadoria que nunca chegará para a maioria. Hospitais com pacientes em corredores, exames marcados com três, quatros meses de antecedência ou mais, e aí, muitas vezes as doenças se agravam. Como estamos lendo os sinais? Fui algumas vezes em emergências de hospitais da região, e o que vi não é nada bom.
O que você está vendo ou não? Estamos vendo a mesma coisa? Estamos vendo aquilo que o Papa Francisco chama de “As sombras de um mundo fechado” na encíclica Fratelli Tutti? O que o Pe. Julio Lancelotti vê é a mesma coisa que o seus críticos veem?
Como estamos vendo a pandemia do Novo Coronavírus em 2020? Apenas um vírus que passará e muitos morrerão, pois assim é a vida, ou um sinal de um mundo que precisa mudar? Mudar para quê? Por quê? Para quem?
Este olhar poderia se ampliado em diversas direções. Poderíamos, por exemplo, também olhar a esperança que tem brotado na juventude para buscar um mundo melhor. Da empatia que a pandemia revelou em muita gente. Mas esta fresta é apenas para chamar a atenção de que não podemos ficar conjecturando como está o ser humano única e exclusivamente através das informações midiáticas. E a Igreja neste mundo?
Reza a lenda que o Papa São João XXIII, quando decidiu convocar o Concílio Vaticano II (1959), disse que era preciso abrir as janelas do Vaticano ao Espírito Santo. Talvez porque houvesse muito mofo. E não há dúvida, ainda que sua chegada tenha demorado, o Concílio foi um impulso do Espírito para o diálogo com o mundo moderno. O Vaticano II foi uma tentativa de sanar um “curto circuito”. E, em certa medida, graças a Deus, conseguiu.
No entanto, está sendo muito difícil interromper a visão de mundo subjacente ao Concílio de Trento, de uma Igreja soberana para uma Igreja dialogal em tão pouco tempo. As resistências são grandes. Não que Trento em si não tenha sido um grande Concílio. A questão é que quando Trento terminava (1563) o mundo moderno começava. E o medo de repetir o trauma da divisão, foi constituindo cada vez mais um centralismo, ou como gosta de falar o Papa Francisco, uma autorreferencialidade enorme. Consequentemente, um forte clericalismo. Ora, por um bom período a resposta de Trento cumpriu o seu papel. Não entraremos no mérito de tal análise. Mas de Leão XIII até hoje, que terminou seu pontificado em 1903, percebe-se nitidamente certo “curto circuito” entre a Igreja e o mundo moderno.
Apesar do Vaticano II, certa “demonização” da modernidade permaneceu. Aquela atitude de diálogo com a cultura como fez um Santo Agostinho e um Santo Tomás não prevaleceu. E aos poucos, aquela lufada do Espírito percebida no Concílio, foi sendo abafada por setores misoneístas, isto é, que temem o novo como temem o diabo.
O bom conselho do Papa Bom (São João XXIII) dado no discurso de abertura do Concílio Vaticano II, de usar o remédio da misericórdia, não foi ouvido por muitos. Cresceu uma postura de condenação, de suspeita. O medo de se pronunciar e ser perseguido por setores da hierarquia foi se constituindo. Como disse o Papa Francisco, a Igreja não pode ser uma alfandega, pronta para fiscalizar. E se não fosse por Francisco certamente eu não estaria escrevendo este tipo de análise. Até gostaria que ela chegasse a ele, pois ele é alguém que não nos causa medo. Sei que se fosse para me chamar a atenção faria com misericórdia. Mas este é só um desejo de um teólogo periférico: abraçar Francisco.
Vivemos um pouco mais de trinta anos sob o medo de aprofundar o diálogo com o mundo moderno conforme a Gaudium et Spes preconizou. E Francisco, com sua intenção de finalmente aprofundar as decisões do Concílio, tem estado muito sozinho, como ele mesmo disse: “Sinto-me só porque quem deveria colaborar não colabora” ) entrevista publicada em 03/11/2020.
Por que tanta resistência a Francisco? Já perto dos sessenta anos estou chegando à conclusão de que existem forças na Igreja que almejam unicamente poder e privilégio, ainda que minoritárias. Até bem pouco tempo atrás achava que era só uma questão de visão de mundo diferente. E pior, este poder faz os bons se calarem.
Ataques perversos, grosseiros, mentirosos, e pior, vindo do próprio seio católico. Induzem muitos leigos e leigas até mesmo agredir ao Papa com verdadeiros despautérios, incluindo palavrões. Nunca vi os que se pautam pela Teologia da Libertação se comportar reservadamente desta forma, muito menos publicamente. Sim, havia críticas, e algumas vezes contundentes, mas sempre com respeito. Nunca vi padres ou bispos que tinham críticas ao Papa tentar induzir comunidades a desrespeitar o Papa, muito menos leigos ou leigas.
Podem dizer que é uma minoria que faz isso. Mas tem havido a omissão de muitos. Suspeito que haja até quem espera com ansiedade por um novo Conclave para ver se outro Papa possa ser menos contundente. Fora a hipocrisia de outros. Confesso que tenho medo. São pessoas que induzem ao ódio e depois, quando acontece uma tragédia, dizem que não são responsáveis.
O novo secretário do Sínodo dos Bispos, o maltês Mario Grech disse uma grande verdade: “Acho curioso que muitos tenham reclamado de não poder receber a comunhão e celebrar os funerais na igreja, mas que nem tantos tenham se preocupado em como se reconciliar com Deus e com o próximo, em como ouvir e celebrar a Palavra de Deus e em como viver o serviço. No que diz respeito à Palavra, portanto, devemos desejar que essa crise, cujos efeitos nos acompanharão por muito tempo, possa ser um momento oportuno para nós, como Igreja, trazer o Evangelho de volta ao centro da nossa vida e do nosso ministério. Muitos ainda são “analfabetos do Evangelho”. “Analfabetos do Evangelho”, que frase.
A Missa vem sendo transformada em uma devoção e não no mistério central da presença pascal do Senhor Jesus. O catolicismo tem uma riqueza litúrgica enorme e tão pouco aproveitada. Agora na pandemia ficou evidente.
De certa forma será um suicídio histórico continuar “vendo a banda passar”. É evidente que a Igreja não acabará. Mas sua relevância histórica será drasticamente abalada. Religiões sobrevivem pelo mundo também de forma desviante. A sociologia da religião já provou isso. Certamente que não se pode generalizar, mas sem dúvida é possível um uso desonesto do simbolismo religioso, pois toda e qualquer religião, incluindo o cristianismo, é feita por pessoas de carne e osso. Não adianta colocar a poeira debaixo do tapete.
Os casos de pedofilia, percentualmente falando, são pequenos. Mas se fossem meio por cento seria grave do mesmo modo. Os desvios econômicos idem. Recentemente no Brasil foi divulgado o caso do Pe. Robson de Oliveira Pereira. Aguardamos o desenrolar do processo na justiça, esperando que sua honestidade seja provada. Porém, um sino de 17 milhões é escandaloso por si, mesmo que não tenha desvio algum.
As TVs de inspiração católica representam um grande problema pastoral. Os chamados padres midiáticos, em certa medida também. Por quê? Porque não representam a diversidade do processo de evangelização católico. Não representam a diversidade das opções pastorais e de espiritualidade. Aqui deveríamos aprofundar a Evangelii Nuntiandi (EN) e Evangelli Gaudium (EG) com insistência. Tomar um show como ato de evangelização é uma compreensão estreita sob o que significa evangelizar. Cobrar somas bastante significativas para realizar shows em nome de uma evangelização questionável, é absurdo. Vender produtos em um frenético mercado religioso não fica longe daquilo que os vendedores do templo faziam e que Jesus se posicionou veementemente contra. Ora, precisamos conversar seriamente sobre isso.
Se colocarmos tal situação em termos de percentuais do número de católicos existentes atualmente, verifica-se que todo apoio a este modelo midiático não fez muita diferença. Já as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que foram duramente perseguidas, sob o pretexto de estarem politizando os católicos em direção à esquerda, fizeram diferença, pois estavam em lugares aonde a mídia não chega. Pelos dados do IBGE se pode verificar que regiões nas quais não havia presença significativa de CEBs, o número de católicos também caiu, tanto quanto, em algumas bem mais, daquelas regiões que havia CEBs. Além disso, o argumento da politização se torna cada vez mais inócuo, se olhamos para a realidade de hoje, onde há até politização de comunidades na direção do fascismo, e de forma escandalosa apoiando inclusive ódio e violência.
Alguns poucos por convicção, e outros não tão bem intencionados conseguiram, através de temas delicados para a sensibilidade popular, como Deus, família e aborto, ou sob a ameaça de um comunismo que nem existe mais, pressionar parte da população em direção a opções nada evangélicas. Um candidato a cargo político, por exemplo, pode fazer propaganda eleitoral contra o aborto e se for eleito não apoiar políticas publicas que podem salvar milhões de vida. Reduzem a gerência de um país inteiro a questões morais. Economia, educação, saúde, tornam-se apenas um detalhe.
Enfim, a nossa lista poderia crescer. Porém, a pretensão é apenas afirmar que, no mínimo, há controvérsias, e que determinados encaminhamentos pastorais devem ser avaliados com honestidade e, evidentemente, com muita misericórdia. As respostas elencadas neste item tentaram demonstrar uma tendência predominante atualmente, mas graças a Deus, não exclusiva.
Depois do Concílio Vaticano II também surgiu muitas iniciativas que apontaram um caminho de diálogo com o mundo moderno e de colocar a Igreja dentro do século XXI (vinte e um). Elas servirão de base para o próximo item, pois certamente a resposta de outros setores da Igreja mostra que é possível fazer um processo de evangelização diferente. E o Papa Francisco representa tal caminho de forma magistral.
Vamos começar por uma questão muito antiga, mas ao mesmo tempo muito atual: sinodalidade. O caminho sinodal não se reduz a reunir pessoas em determinadas instâncias de participação e achar que a reunião em si já é um fator sinodal, caminhar juntos como a palavra significa. Na visita ao Brasil em 2013, reunido com os bispos da Comissão de Coordenação do CELAM, o Papa perguntava aos bispos: “Temos como critério habitual o discernimento pastoral, servindo-nos dos Conselhos Diocesanos?... O bom funcionamento dos Conselhos é determinante. Penso que estamos muito atrasados nisso”.
Na diocese de Duque de Caxias, RJ, onde vivo, foi possível experimentar a graça de fazer uma experiência sinodal por 30 anos. Para mim, falar de sinodalidade não é novidade. A diocese de Nova Iguaçu, Volta Redonda e Barra do Piraí, que também conheci neste tempo, e muitas outras diocese espalhadas pelo Brasil fizeram algum tipo de experiência sinodal que não foi aprofundada nos últimos anos. Todas no século passado. Porém, o clericalismo foi encampando a Igreja, e hoje o Papa precisa explicar e trazer de volta esta experiência fontal. Para muitos representa uma novidade e pode soar inclusive como revolucionária.
Mas não há outro caminho. Pode-se afirmar que a Igreja não é uma democracia, mas também não é uma monarquia absoluta, ou melhor, não deveria ser. Se quisermos contribuir para ajudar na passagem da crise civilizatória que estamos vivendo para um tempo novo onde o Evangelho continue a contribuir para, nas “raízes da cultura”, como diria São Paulo VI na EN, propor os valores do Projeto de Vida de Jesus Cristo, leigos e leigas não podem ser tratados como súditos. Colocados em posição de submissão e infantilizados em sua fé.
As Paróquias precisam ser no mínimo “comunidade de comunidades” como já preconiza o Documento 100 da CNBB. Digo no mínimo porque é difícil, em curto prazo, uma completa reformulação dessa estrutura pastoral que não responde mais aos desafios do mundo urbano faz tempo. E é possível.
A forma de escolher bispos precisa também mudar. Sabemos bem que o Papa não tem condições de escolher cada bispo de uma diocese pessoalmente, somente em alguns casos nos quais ele perceba a necessidade de uma intervenção mais direta. O processo de consulta feito pela nunciatura é viciado. E não digam que não é possível fazer diferente. Não é dogma que bispos devam ser escolhidos desta maneira. As conferências nacionais poderiam ter um papel mais forte neste processo. Enfim, também aqui temos muito que conversar, e em diversas direções, incluindo celibato e maior participação das mulheres.
Outro diálogo que precisa ser travado com profundidade passa pelas questões morais. O teólogo José Comblin dizia que no campo social até que avançamos bem, mas no campo moral estamos muito atrasados. Não se trata de aceitar um relativismo, mas sim de entender processos de transformação cultural que, necessariamente não contradiz a mensagem central do evangelho. O Papa Francisco chegou a ser chamado de herege por conta de uma ressalva quanto à segunda união de casais na “Amoris Laetitia”. Parece que estamos mais preocupados em estabelecer normas do que anunciar o valor fundamental da vida e tudo que se faz necessário para protegê-la em uma sociedade complexa e desigual.
Um exemplo extremamente melindroso: a questão do aborto. Uma discussão feita com pedras nas mãos. Não defendemos o aborto. Agora, chamar uma mulher pobre, oprimida pelo patriarcalismo, excluída de condições dignas de tomar decisões com liberdade, de assassina, é se colocar em posição diametralmente oposta àquela na qual Jesus de Nazaré se colocou. Descriminalizar o aborto para as mulheres é uma questão de justiça e misericórdia. Milhões de crianças não tem o registro do pai em sua certidão de nascimento. Até parece que a mulher é capaz de gerar filhos/as sozinha.
Agora, se queremos que os abortos diminuam sensivelmente precisamos defender políticas publicas na área da saúde, da assistência social, na educação e não cair em uma judicialização insensível. Faz-se necessário promover debates com profundidade e honestidade com todas as áreas do conhecimento que possam ajudar a tomar a melhor decisão ética possível. Usando uma conceituação de Adela Cortina, filosofa espanhola, o Cristianismo é uma Ética de Máximo que precisar dialogar com outras para garantir uma Ética de Mínimo para o conjunto da população. Será que não vamos aprender que não cabe à religião regular a sociedade como um todo? Não se defende a vida como um todo fazendo a defesa de uma única dimensão da própria vida. É uma contradição.
Outro tema extremamente delicado, mais pelo medo de sofrer represália do que, necessariamente, pela questão em si, é a muito mal definida “ideologia de gênero”. Como a acusação de “comunismo” é fácil de rebater, a não ser pelo uso desonesto que setores ultraconservadores fazem do conceito para assustar o povo, criaram um novo inimigo. Juntaram dois conceitos que não estão no domínio da grande maioria da população, ideologia e gênero, e em torno dele apontam para a destruição da família. Alias, há pessoas que se dizem bem informada que também não dominam os conceitos.
Sem entrar no debate acima, o que implicaria muitas páginas, quando alguém me coloca a questão, inicio a resposta sempre por uma pergunta: o que realmente tem afetado as famílias no mundo inteiro? Minha resposta é rápida: Violência Doméstica. Os índices de agressões e assassinatos são alarmantes. Mulheres chegam a ser agredidas durante a gestação. A maioria dos abortos é realizada por pressão dos homens. Há estupros dentro de casamentos que nunca serão denunciados. Inclusive em lares que se afirmam cristão. E isto não é “achismo”. Existe uma fartura de dados quanto a isso, inclusive pesquisa quanto ao caráter autoritário de ministros leigos para com suas esposas. Portanto, se queremos defender a família realmente, faz-se necessário tratar desta questão. E é possível.
Portanto, para entrar no século XXI é fundamental interagir com as questões que estão sendo apresentadas neste século, e não apenas ficar em posição defensiva ou, pior ainda, de um ataque que não conduz ao diálogo, e que pode ser tornar uma discussão agressiva com pedras nas mãos.
É possível que o cristianismo católico seja um instrumento importante na construção de um novo horizonte cultural que se descortina neste século e não procurar uma volta ao passado sem sentido. Para isso será necessário assumir aquilo que é humanizador na atual situação que vivemos. E elas existem, sem nenhum prejuízo à fé genuinamente vinculada ao Caminho de Jesus Cristo.
Uma análise a contendo requereria muitas páginas. Porém, quis chamar atenção para a necessidade de enfrentar a situação de crise em que vivemos. E naturalmente sem pontificar uma solução. É uma crise civilizatória que também atinge a Igreja. Não adianta, como já dito, colocar a poeira debaixo do tapete.
São Francisco percebeu a necessidade de reformar a Igreja em seu tempo. Se a reforma viesse naquele contexto, talvez não existisse a Reforma Protestante. O Concílio de Trento, vindo trezentos anos depois dele conseguiu dá uma arrumada. Mas logo veio uma nova realidade cultural e não se travou um diálogo profundo com tal realidade, isto é, os tempos modernos.
Mas o Espírito soprou o Concílio Vaticano II. E soprou quando a modernidade já entrava em crise. Agora, no século XXI não temos tempo de esperar trezentos anos. Também não precisamos de um novo Concílio, mas sim de aprofundar a dimensão dialogal que ali se inaugurou.
Não podemos mais ficar de escândalo em escândalo, abafando os casos para que a imagem da Igreja não fique abalada. Tem-se pago um preço alto por isso, inclusive não só simbolicamente. E o POVO DE DEUS é a maior vítima.
Não tenhamos medo de nos enlamear, como diz o Papa Francisco. De nos ferir, ou pior, não corramos o risco de agir como “generais de exército derrotados” (EG 96). Por favor, chega. Temos encontrados muitos/as leigos e leigas cansados/as. Pessoas que estão dispostas a servir, mas que querem ser tratadas como adultos.
O pontificado do Papa Francisco tem apresentado muitas pistas. Se ficarmos somente com “A alegria do Evangelho” (EG) já será um ótimo programa. Mas bem que poderíamos realizar o próximo sínodo anunciado pelo Papa como um grande momento de dar mais um passo no aprofundamento do Concílio Vaticano II.
Que olhando para o “Admirável Sinal”, como expressado por Francisco no Advento de 2019, discorrendo sobre o Presépio, possamos ter a humildade que Deus nos ensina ao se fazer criança nascida entre os pobres e assumindo a fragilidade da história humana. Que possamos olhar um para um o outro como irmãos e irmãs que caminham rumo à plenitude, mas no interior de um processo cheio de ambiguidades. Entremos, por favor, no século XXI e enfrentemos os nossos limites de cabeça erguida.
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Análise de conjuntura católica - Advento para o século XXI. Artigo de Celso Pinto Carias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU