03 Dezembro 2020
"O cotidiano é rotineiro, cinzento e com raras novidades. A maioria da humanidade vive restrita ao cotidiano com o anonimato que ele envolve. Alguns são conhecidos pela primeira vez quando morrem, pois o anúncio pode aparecer no jornal, se aparecer. É o percurso normal das pessoas", escreve Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo e escritor brasileiro, e autor de A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana (Vozes, 2005).
Nós viemos do útero comum donde vieram todas as coisas, da Energia de Fundo, daquele oceano sem margens, do Big Bang, do Bóson de Higgs que originou o top-quark, o tijolinho de matéria mais primordial do edifício cósmico, passando por todas as fases da evolução até chegarmos a ao computador atual e à inteligência artificial. E somos filhos e filhas da Terra. Melhor, somos a Terra que anda e dança, que freme de emoção e pensa, que quer e ama, que se extasia e adora o Ser que faz ser todos os seres.
Todas estas coisas primeiro estiveram seminalmente no universo, se condensaram em nossa galáxia, ganharam forma em nosso sistema solar e irromperam concretas na nossa Terra, grande mãe, geradora de vida.
O princípio cosmogênico, vale dizer, aquelas energias diretoras que comandam, cheias de propósito, todo o processo evolucionário, obedecem à seguinte dinâmica tão bem estudada por Ilya Prigogine e Edgar Morin: ordem, desordem, relação, nova ordem, nova desordem, novamente relação e assim sempre de novo.
Mediante essa lógica, criam-se sempre mais complexidades e diferenciações; na mesma proporção vão se criando interioridade e subjetividade em todos os seres até alcançar a sua expressão lúcida e consciente na mente humana. Só pode estar em nós o que antes estava no universo, mesmo em gestação.
Simultaneamente e também na mesma proporção vai se gestando a teia de relações, de trocas e de interdependências de todos com todos (tese básica da física quântica de Bohr/Heisenberg) que funciona como um ritornello nas encíclicas ecológicas do Papa Francisco Laudato si (2015) e Fratelli tutti (2020). Tudo está relacionado com tudo em todos os momentos e em todas as situações. Diferenciação/interioridade/relação: eis a trindade cósmica que preside o funcionamento do universo. O normal do universo não é a permanência mas a mudança.
Como fruto da teia de relações, reciprocidades e simbioses existentes em tudo, na Terra e em nós mesmos, emerge uma nova ordem que, por sua vez, vai seguir a mesma trajetória de desordem, relação e nova ordem. Enquanto estivermos vivos estamos sempre numa situação de não-equilíbrio em busca contínua de adaptações que geram um novo equilíbrio. Quanto mais próximos estivermos do equilíbrio total mais próximos estamos da morte. A morte é a fixação do equilíbrio e o fim do processo cosmogênico. Ou a sua passagem para um outro nível que demanda um novo tipo de reflexão.
Como se manifesta esta estrutura concretamente em nossa vida? Primeiramente no cotidiano e no prosaico. Cada qual os vive à sua maneira, que começa com a toillete pessoal, como se veste, como toma o seu café, como dá uma olhada no jornal ou escuta as primeiras notícias pela TV ou pelo rádio, como busca sua felicidade e como enfrenta a labuta da vida pelo trabalho.
O cotidiano é rotineiro, cinzento e com raras novidades. A maioria da humanidade vive restrita ao cotidiano com o anonimato que ele envolve. Alguns são conhecidos pela primeira vez quando morrem, pois o anúncio pode aparecer no jornal, se aparecer. É o percurso normal das pessoas.
Mas os seres humanos são também habitados pela imaginação, chamada por alguns “a louca da casa”. Ela rompe as barreiras do cotidiano, permite o poético e dá saltos. A imaginação é, por essência, inventiva; é o reino das probrabilidades e possibilidades, de si infinitas. Imaginamos nova vida, nova casa, novo trabalho, novos prazeres, novos relacionamentos, novo amor.
É da sabedoria de cada um articular o cotidiano com o imaginário e construir certo equilíbrio na vida. Se alguém se entrega só ao imaginário, pode estar fazendo uma viagem, voa como uma águia pelas nuvens esquecido da Terra e, no limite, pode acabar numa clínica psiquiátrica.
Pode também se sepultar na rotina do cotidiano e do prosaico e ficar como uma galinha com voo rasteiro. Então se mostra pesado, desinteressante e aborrecido.
Quando alguém, entretanto, sabe abrir-se ao dinamismo do imaginário e às chances escondidas no cotidiano, vivificando-o com um toque do imaginário, sua vida se faz uma construção contínua e se torna interessante. O efeito se faz logo notar: começa, sem se dar conta, a irradiar uma rara energia interior. Dele sai uma misteriosa força que se comunica aos outros.
A esta força chamamos de carisma. Ela significa a energia cósmica que tudo vitaliza e rejuvenesce, força que faz atrair as pessoas e fascinar os espíritos.
Quem são os carismáticos? Todos. A ninguém é negada a força cosmogênica que movimenta, na palavra de Dante, o céu e todas as estrelas. Por isso a vida de cada um é chamada para brilhar e não permanecer apagado. Cada é desafiado a despertar o carisma escondido nele.
Mas há carismáticos e carismáticos. Há alguns nos quais esta força de irradiação implode e explode. É como uma luz na noite escura. Pode ser fraca mas basta para mostrar o caminho.
Pode-se fazer desfilar todos os bispos e cardeais diante dos fiéis reunidos num salão. Pode haver figuras impressionantes em várias expressões da vida. Mas o olhar de todos se fixa sobre Dom Helder Câmara. Porque ele é carismático. A figura é minúscula. Parece o servo sofredor sem beleza e ornamento. Mas dele sai uma força de ternura unida ao vigor que se impõe a todos.
Muitos podem falar. E há bons oradores que atraem a atenção. Mas deixem Dom Helder falar. A voz começa baixinha. De repente é tomado por uma força maior que ele. Há tanta energia e tanto convencimento que as pessoas ficam boquiabertas. Ele, de pequeno, frágil e fraco comparece como um gigante.
Algo semelhante ocorre com Lula. Deixem-no subir ao palanque, diante das multidões. Começa baixinho, assume um tom narrativo, vai buscando a trilha melhor para a comunicação. E lentamente adquire força, as conexões surpreendentes irrompem, a argumentação ganha seu travejamento certo, o volume de voz se alça, os olhos se incendeiam, os gestos ondulam a fala, num momento, o corpo inteiro se faz comunicação e comunhão com a multidão que de barulhenta passa a silenciosa e num momento culminante, irrompe em gritos e aplausos de aprovação.
É o carisma fazendo seu advento no político Luiz Inácio Lula da Silva, o retirante nordestino, o líder sindical, o fundador do Partido dos Trabalhadores, o presidente que inseriu milhões na sociedade e fez com que muitos que estiveram sempre alijados há 500 anos, se sentirem o gosto de serem considerados gente. As oligarquias jamais admitiram, nem ontem nem hoje, que alguém do andar de baixo se alce ao andar de cima. De tudo fizeram até, põe razões ridículas, o lançarem na prisão por mais de 500 dias. O carisma lhe deu forças para tudo suportar e sair maior do que entrou. Não se consegue apagar uma estrela que o universo, um dia, fez irromper.
Não sem razão Max Weber, o grande estudioso do carisma, chamou-o de estado nascente. O carisma está sempre em estado de nascença e suscita energia nas pessoas que o cercam. A função do carismático é de ser parteiro do carisma presente nas pessoas. Sua missão não é dominá-las com seu brilho, nem seduzi-las para que o sigam cegamente. Mas despertá-las da letargia do cotidiano e descobrir a força criadora da fantasia. E, despertas, perceberem que o cotidiano em sua platitude guarda segredos, novidades, energias ocultas que sempre podem irromper e conferir um renovado sentido e brilho à vida à nossa curta passagem por esse planeta.
Somos tudo isso, seres complexos e contraditórios, históricos e utópicos, prosaicos e poéticos, enfim, expressão da Energia Criadora (Bergson) que em nós se faz consciente a ponto de identificar até Aquele Ser que subjaz a todas as coisas e que sustenta o inteiro universo e a nós mesmos.
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O cotidiano, a fantasia e o carisma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU