01 Dezembro 2020
"Desejo uma libertação das Escrituras das ortodoxias eclesiais, mas também, paradoxalmente, uma libertação (parcial) de Jesus de Nazaré das Escrituras. Para restituir tanto Jesus quanto as Escrituras, meio privilegiado para compreendê-lo, às próprias Igrejas e ao mundo. Para restituir a quem quer que esteja em busca de sentido e de esperança algum fundamento sólido, embora elusivo", escreve Riccardo Larini, teólogo e ex-monge da Comunidade de Bose, da qual fez parte durante 11 anos, em artigo publicado por Riprendere Altrimenti, 29-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Sempre me intrigou a célebre frase atribuída a Woody Allen (mas provavelmente furtivamente roubada de Eugen Ionescu pelo conhecido diretor estadunidense): “Deus está morto, Marx está morto, e eu mesmo não me sinto muito bem”. Parece-me que ela representa bem a condição atual, “pós-moderna”, em que vivemos.
“Deus está morto” não significa que as religiões e as fés estão mortas, que fique bem claro. Também não acho que jamais poderão morrer, dada a necessidade humaníssima de acreditar em algo importante, que dê sentido à vida, mesmo que por pouco tempo.
Mas não há dúvida de que o ser humano moderno gradualmente deixou de lado as explicações sobrenaturais, o recurso a um ser superior e supremo para tapar os buracos e dissipar as sombras da existência. E é uma morte que também foi vivida pelos fiéis (exceto por uma minoria de irredutíveis, não necessariamente iluminados, embora vociferantes), que foram chamados pela modernidade a repensar profundamente a sua religiosidade e as suas convicções sobre o divino, saindo disso mais livres e liberados.
“Marx está morto” por muitas razões. Provavelmente, está morta a maior utopia da história, a de poder realizar um mundo em que cada um tenha de acordo com as suas necessidades, no qual, em vez do domínio da posse, haverá o da justiça e da partilha. Ela morreu devido ao fracasso humano e histórico dos seus promotores. Está morta, como Karl Popper bem entendeu, porque toda tentativa de fechar a sociedade, de lhe impor modelos “decisivos”, no fim, é totalitária, não dá espaço para a diversidade, para as diferenças, para a pluralidade dos deuses e das racionalidades humanas; mas morreu também porque, como compreendeu Lévinas, um pensamento monológico, totalizante, no fim, é violento e nega o outro, mesmo quando afirma com profunda sinceridade que quer promovê-lo.
“… e eu mesmo não me sinto muito bem.” A aposta na capacidade da liberdade humana de dar origem a valores compartilhados e compartilháveis não baseados em qualquer verdade prévia, como sonhavam os existencialistas, Sartre em primeiro lugar, na realidade nos deixou confusos, sem bússola, fascinados pelo abismo da liberdade (talvez o elemento mais próximo do divino), mas também intimidados pela arbitrariedade, pela falta de algo mais que nos inspire.
Portanto, temos muita dificuldade em encontrar razões comuns, pensamentos comuns, esperanças comuns. E, quando encontramos modestos projetos comuns, quase desesperadamente os sobrecarregamos de significado. Temos uma enorme necessidade de sabedoria. E é para aí, no início do Advento (pelo menos de acordo com o calendário da Igreja Católica de rito latino), que se dirigem os meus pensamentos, mesmo que, na realidade, eles se dirigem para aí há uma vida inteira. A pergunta fundamental é: onde encontrar sabedoria, em qual pensamento, inspiração, cultura?
Pessoalmente, acho frágeis as definições do pós-moderno, de Jean-François Lyotard em diante. No entanto, sinto-me embebido de pós-modernidade, no sentido do aforismo de Woody Allen/Eugen Ionescu. E ei passei toda a minha vida buscando, com paixão, a sabedoria, onde quer que ela se escondesse. Por isso, gosto de figuras como Hipácia, que exploraram tudo com uma paixão devoradora, das religiões às ciências, para encontrar um sentido, uma direção que as ajudasse a viver. E que também pudesse permitir que elas morressem de maneira “sensata”.
Sempre busquei a companhia dos sábios. Não tanto dos doutos, dos especialistas (embora muitas vezes seja das suas fileiras que surgem os sábios), mas sim daqueles que, de acordo com a raiz latina do verbo saber, fossem capazes de degustar, intuir, entrever o fio dourado que nos torna humanos. Aqueles que, em poucas palavras, soubessem viver e comunicar a capacidade de viver. Porque viver é difícil, não é algo evidente, e também nem sei se é um dom.
Portanto, amo os sábios de todos os tempos, sem criar ídolos para mim. Vivi o suficiente para saber que todo ser humano, mesmo o mais aparentemente santo, luminoso, extraordinário, tem lados problemáticos, tenebrosos.
Por nascimento e formação cultural, descobri-me desde menino atraído por um “sábio” de nome Jesus de Nazaré, através da Igreja (as Igrejas) e da cultura, mas também apesar das Igrejas e da cultura. Em torno da sua figura, a única à qual eu acredito que é aplicável a categoria de “perfeição”, desenvolveu-se a minha vida e a minha relação com a religião, que conheceu fases muito diversas, algumas de natureza mais íntima e pessoal (e, portanto, menos significativas para quem lê), outras, sinal de um caminho crítico em relação às ideias religiosas.
São estas últimas que me levaram a compartilhar reflexões e itinerários, consciente das possíveis ressonâncias com as necessidades e as buscas das mulheres e dos homens, meus contemporâneos.
Tornei-me profundamente cristão (e, portanto, monge, como modalidade radical de viver o cristianismo, e, depois, teólogo, como modalidade douta de estudar cada aspecto dele com rigor), seguindo a leitura da Teologia dos Três Dias, de Hans Urs von Balthasar. Mais tarde, o meu apreço por esse renomado teólogo católico diminuiu consideravelmente, mas, graças a ele, descobri o fascínio da “teologia da cruz”: Deus, em Jesus Cristo, mostrou a sua própria presença onde, humanamente, nós veríamos apenas ausência. “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Deus nos abraçou naquele homem, que nós rejeitamos. Parafraseando Paulo de Tarso, Deus mostrou o seu amor por nós morrendo por nós “enquanto éramos seus inimigos”.
Nunca encontrei nada mais sensato na minha vida, independente da fé ou não na existência de um deus. Deixe-me explicar. De maneira muito pragmática, acho que a mensagem contada pela vida e pela morte de Jesus de Nazaré é portadora de tal sabedoria humana, de tal possibilidade de transformação e de renovação das nossas vidas nos seus momentos mais sombrios que é capaz de fazer com que a eventual não existência de deus seja um problema substancialmente secundário.
E vou mais longe: tanto a fé em um ser supremo quanto a fé na ressurreição de Jesus não me parecem ser os elementos mais fundamentais e decisivos, no que diz respeito à sabedoria humana, humaníssima, que é possível aprender na escola do Nazareno.
Daí a pergunta fundamental: como haurir de tal sabedoria? E aqui começam os problemas (ou talvez venha a beleza...).
Jesus não deixou nenhum escrito, e isso, à luz daquilo que estou prestes a dizer, é provavelmente uma grande coisa. As fontes das origens a seu respeito são muito escassas e são todas, rigorosamente falando, “de parte”. De fato, são quase unicamente o produto de algumas das primeiras comunidades de discípulos que se formaram após a sua morte, ocorrida presumivelmente no ano 30.
As mais antigas, as epístolas paulinas, têm como autor um homem que nunca se encontrou com Jesus, enquanto os Evangelhos, que narram os seus gestos e palavras, provavelmente foram escritos várias décadas após a sua morte, recorrendo a testemunhos de segunda ou terceira mão.
Não só isso, trata-se também de fontes que interpretam a sua figura de forma discordante, a tal ponto que um dos teólogos mais conhecidos do século XX, Ernst Käsemann, inaugurou um importante simpósio ecumênico realizado em 1951 em Göttingen com estas famosíssimas palavras: “O cânone do Novo Testamento não constitui em si o fundamento da unidade da Igreja, mas é, pelo contrário, em si mesmo, a base da multiplicidade das suas confissões”.
Nos meus estudos sobre o nascimento da identidade cristã, no rastro do falecido mestre James Dunn, na realidade, eu acredito ter detectado que o Novo Testamento contém pelo menos duas afirmações fundamentais às quais todos os seus escritos convergem: a unicidade da mediação entre Deus e os seres humanos ocorrida em Jesus Cristo, e a confiança recíproca dos fiéis em estruturas de koinonia (comunhão/partilha/responsabilidade recíproca) sob a orientação do espírito de Deus.
Em outras palavras, as Escrituras cristãs convergem em torno da ideia da unicidade de Jesus para os propósitos dos planos de Deus, plenamente realizados nele, e do papel da comunidade dos seus discípulos como receptáculo da inspiração divina. Na realidade, porém, já no que diz respeito ao conteúdo preciso da mediação do Nazareno, assim como às estruturas e às modalidades de partilha da inspiração divina no seio da comunidade cristã, é quase impossível encontrar indicações precisas e unívocas.
Estudando o cristianismo das origens, além disso, descobre-se que a mensagem de Jesus também teve outros ecos nas culturas da época. Temos vestígios disso nas coleções oficiais de livros “sagrados” em Igrejas cristãs além da grega e latina, que apresentam variações nada secundárias, além de escritos como o Evangelho de Tomé, que testemunham a diversidade de ênfases em relação à interpretação do Nazareno no maravilhoso e variado ambiente alexandrino.
Além disso, para além dos tempos das origens, não é possível deixar de se surpreender com a miríade de releituras, interpretações e representações, na literatura e nas artes, e em todos os campos do saber, que o fundador do cristianismo conheceu, incluindo aquelas hostis ou extremamente fantasiosas.
As Igrejas, por muitas razões, se apoderaram, desde os primeiros séculos, embora um pouco de cada vez, das Escrituras, e cada uma delas enquadrou a sua interpretação em estruturas de “ortodoxia”, dando origem efetivamente a um caminho de divisões que, a partir do século II, não conheceu trégua.
Por que digo essas coisas? Não me interessa muito evocar uma “libertação das Escrituras das Igrejas”, até porque toda interpretação eclesial de Jesus contém elementos de sabedoria vivida e é o instrumento concreto com que homens e mulheres de todos os tempos e lugares entram em contato, embora imperfeito, com a sua sabedoria, e também porque considero, mesmo assim, que as Escrituras são apenas uma peça do acesso possível a essa sabedoria.
Se aquele homem verdadeiramente nos narrou alguma verdade universal e decisiva para as nossas vidas e as nossas sabedorias, de fato, a escuta de todas as outras verdadeiras sabedorias humanas deve conter não apenas ressonâncias com o Evangelho, mas também deve ser um instrumento útil para compreender mais a fundo a mensagem daquele que anunciou tal Evangelho com a própria vida e as próprias palavras há 2.000 anos. E o mesmo vale para a escuta de qualquer interpretação da figura de Jesus, em qualquer âmbito e época.
Os atalhos que não podemos mais tomar são os do fundamentalismo, da ortodoxia, do eclesiocentrismo. Por outro lado, precisamos continuar haurindo na origem, mediante as fontes que temos, com muita liberdade e senso crítico.
O fundamentalismo, em nome de supostos literalismos, na realidade aplica suas próprias pré-compreensões às fontes nas quais diz se inspirar, acabando por encontrar lá sempre e apenas aquilo que já sabe ou acha que sabe. A ortodoxia impõe rédeas à inteligência e ao espírito humanos que, embora conferindo seguranças aparentes, na realidade impedem de fazer escolhas existenciais livres, profundas e ponderadas. E muitas vezes humilha a inteligência...
O eclesiocentrismo faz com que o Nazareno seja substituído pela Igreja e as suas interpretações, confundindo perigosamente os planos e acabando por equiparar os testemunhos imperfeitos de Jesus à sua figura única e irrepetível.
A recusa das fontes ou a escuta do passado, por outro lado, entrega-nos uma pobreza espiritual e uma arbitrariedade que nunca poderão ser suficientes para nos inserir em um caminho de sentido no qual possamos nos sentir sustentados e transportados.
Por isso, gostaria de concluir desejando uma libertação das Escrituras das ortodoxias eclesiais, mas também, paradoxalmente, uma libertação (parcial) de Jesus de Nazaré das Escrituras. Para restituir tanto Jesus quanto as Escrituras, meio privilegiado para compreendê-lo, às próprias Igrejas e ao mundo. Para restituir a quem quer que esteja em busca de sentido e de esperança algum fundamento sólido, embora elusivo.
Mas precisamente aí é que reside a beleza: precisamente porque a interpretação de Jesus não nega a nossa liberdade, mas, pelo contrário, precisa dela e a envolve, a sabedoria que poderemos descobrir sobre a sua figura será real, nossa. Será humana.
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Advento: devolvamos o Nazareno ao mundo. Artigo de Riccardo Larini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU