25 Novembro 2020
Imunizante que será produzido pela Fiocruz parece ter 90% de eficácia — além de ser barato e não exigir logística especial. E estão prontos os testes da vacina do Butantã. Mas governo federal cruza os braços e não tem nenhum plano de vacinação.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por Outras Palavras, 24-11-2020.
A notícia de que uma dose menor da vacina de Oxford/AstraZeneca levou a uma eficácia mais alta pegou todo mundo de surpresa – até mesmo pesquisadores que trabalham com o imunizante. A análise preliminar dos resultados observou 131 infecções entre mais de 20 mil voluntários; apareceram 101 infecções entre quem tomou placebo e 30 entre quem tomou vacina. Na média, uma eficácia de 70%. Só que, como dissemos ontem, esse percentual foi de 90% para quem tomou meia dose seguida de uma dose completa, e ficou em apenas 62% nos voluntários que receberam duas doses completas. Por quê?
O cientista Andrew Pollard, diretor do Grupo de Vacinas de Oxford e que lidera os estudos, disse à BBC que o resultado é “intrigante” – um termo repetido por pesquisadores que não fazem parte da equipe. Há algumas possibilidades. A menos desejada é que o ensaio não tenha sido grande o suficiente para avaliar a diferença entre os dois esquemas, que poderia ser achatada com um número maior de infecções. Esse dado da maior eficácia foi baseado em apenas 2.741 voluntários, enquanto a menor eficácia foi encontrada no ‘braço’ do estudo com 8.895 participantes (a Universidade de Oxford e a AstraZeneca não divulgaram quantos dos infectados estavam em cada um desses grupos). Para tirar a prova, a farmacêutica pretende solicitar às agências reguladoras autorização para mudar seu protocolo e estudar melhor o regime que se mostrou mais eficaz.
Se essa primeira hipótese estiver correta, o entusiasmo com a vacina tende a murchar um pouco, porque uma eficácia de 70% parece muito baixa frente aos quase 95% oferecidos pela Pfizer e pela Moderna – embora, é claro, ainda esteja acima dos 50% que agências reguladoras ao redor do mundo consideram aceitar para aprovação. Mas há vantagens que podem cobrir a diferença: um custo muito mais baixo (de US$ 3 a US$ 4 por dose, contra cerca de US$ 30 da Moderna) e a facilidade para a distribuição, já que essa vacina só requer uma refrigeração simples.
Há explicações bem razoáveis que apoiam a possibilidade de uma dose mais baixa levar a uma eficácia maior. Katie Ewer, imunologista que trabalha no desenvolvimento da vacina, tem duas teorias. A primeira é que doses menores tenham um desempenho melhor ao estimular as células T. A outra tem a ver com o fato de que, com essa vacina, o organismo não responde só ao coronavírus, mas também ao adenovírus de chimpanzé usado no imunizante. Esse adenovírus é usado como vetor, ou seja, serve para carregar o gene do coronavírus para dentro das células. “Na primeira dose, nosso sistema imune, que é frenético, vai gerar resposta contra o coronavírus, mas também contra o vetor. Na segunda dose, se essa resposta for muito alta, ela acaba inativando a própria vacina“, porque o vetor é atacado antes da hora, elucida no Estadão Flávio Guimarães da Fonseca, virologista da UFMG. Natalia Pasternak, do Instituto Questão de Ciência, explica no Twitter que talvez uma primeira dose mais baixa tenha evitado o problema.
De todo modo, é curioso que a administração de uma primeira dose mais baixa em certo grupo de voluntários não tenha sido intencional. “O motivo de termos tido uma meia dose no ensaio é a casualidade”, disse à Reuters Mene Pangalos, chefe de pesquisa e desenvolvimento não oncológico da AstraZeneca. Ainda em abril, quando pesquisadores estavam administrando doses a voluntários no Reino Unido, eles perceberam que efeitos colaterais estavam mais brandos do que o esperado. Quando foram checar, viram que haviam dado, por erro, meia dose da vacina em vez da dose inteira. A empresa decidiu continuar com a meia dose nesse grupo e administrar a vacina de reforço no momento programado.
Uma coisa é certa: se ficar confirmada a eficácia mais alta com uma dosagem menor, vai dar para vacinar 30% mais pessoas. Diante dessa possibilidade, nova expectativa da Fiocruz é começar a imunização em março e alcançar 130 milhões de brasileiros ao longo do ano que vem (metade em cada semestre), em vez dos cem milhões anunciados anteriormente. Isso pressupõe que a produção nacional comece em 2021. A AstraZeneca afirma que consegue disponibilizar, ao todo, 200 milhões de doses ainda este ano e mais 700 milhões no próximo.
Não é muito fácil comparar as vacinas que começam a mostrar resultados porque seus protocolos de ensaios variam um bocado. E uma das diferenças é bem importante: enquanto os ensaios da Pfizer e da Moderna só testaram os voluntários que apresentaram sintomas de covid-19, a Universidade de Oxford testou alguns assintomáticos também, e os que tiveram diagnóstico positivo entraram na análise do grupo de infectados.
Os dados completos não foram revelados, mas a AstraZeneca disse que houve menos infecções assintomáticas entre os vacinados. Isso sugere um potencial para evitar a transmissão do vírus, e não só de proteger individualmente quem toma a vacina. Há que se pensar se isso altera a definição dos grupos prioritários para a vacinação, incluindo, além de quem tem mais chances de adoecer, os grupos que têm mais chances de passar o vírus adiante.
O ensaio de fase 3 da CoronaVac ultrapassou o número mínimo de infectados que, segundo o protocolo, vai permitir a análise de sua eficácia. Foram identificadas 74 infecções no total – um número inferior ao estabelecidos pelos protocolos de outros fabricantes, como Pfizer/BioNTech (164), Moderna (161) e Oxford/AstraZeneca (150). Agora é preciso ver quantos desses 75 infectados haviam tomado o placebo e a vacina, para estabelecer a eficácia. Quanto maior o número de infecções, mais estatisticamente significativo é o resultado.
O Instituto Butantan espera que o Comitê Internacional Independente divulgue os resultados até a primeira semana de dezembro. “Essas notícias colocam essa vacina como a vacina mais próxima de utilização aqui no Brasil. É a que está mais próxima de estar disponível para a população”, disse o diretor do instituto, Dimas Covas.
Para isso, é preciso evidentemente que os resultados saiam positivos e que, em seguida, a Anvisa aprove a vacina de forma rápida. Se tudo acontecer assim, em janeiro as 46 milhões de doses podem começar a ser distribuídas. Só não sabemos como nem em que âmbito. Para Covas, “não faria sentido” o imunizante não ser incorporado ao Programa Nacional de Imunizações, mas falta ver com o governo federal.
No dia 12 de agosto – portanto, há mais de três meses –, o plenário do TCU deu um prazo de 15 dias para que a Casa Civil detalhasse as ações de produção e de compra de vacinas contra o novo coronavírus, os preparativos para a campanha de imunização, além dos riscos de tudo isso e ideias para superá-los. De acordo com apuração do Valor, o governo federal está resistindo tanto em cumprir essa decisão que há suspeitas de que “o plano sequer exista e, muito menos, de que será apresentado”.
Pois é. Essa hipótese ficou mais forte quando venceu, na semana passada, um segundo prazo dado pelo Tribunal. Na decisão de agosto, a corte abria uma brecha, recomendando que se o governo não tivesse nenhum plano até aquele momento, deveria se mexer e, em parceria com as secretarias estaduais de saúde, enviá-lo ao TCU em 60 dias. Não aconteceu.
Tem mais: a Advocacia Geral da União justifica a falta de transparência do governo dizendo que o Tribunal pediu as informações para o órgão errado. Ao invés de Casa Civil, deveria ter se dirigido ao Ministério da Saúde – como se a primeira não tivesse a atribuição de acompanhar as atividades das demais pastas. “O TCU recebeu o recurso, mas internamente criticou o caráter ‘meramente procrastinatório’ da apelação”.
Cenas explícitas do bolsonarismo: um apoiador questiona o presidente no Facebook. Pede desculpas pelo desabafo, afirma que os testes para detecção do novo coronavírus não podem vencer e pergunta se a informação apurada pela mídia e confirmada pelo Ministério da Saúde é “verdade mesmo”. É o gancho perfeito para que Jair Bolsonaro minta, afirmando que o governo federal enviou “todo o material” a estados e municípios – e são governadores e prefeitos quem devem explicações à população. Hamilton Mourão, que não vê problemas em dar opiniões sobre uma gama variada de assuntos que incluem até o racismo no Brasil e no resto do mundo, disse que “não estar ciente” do caso que foi estampado na manchete do Estadão de domingo. Segundo o vice-presidente, “tem que ver lá com eles lá” no Ministério da Saúde.
Enquanto isso, os 6,86 milhões de exames do tipo RT-PCR continuam num depósito do governo federal em Guarulhos. De qualquer forma, a notícia repercutiu bastante ontem, gerando mais reações.
O incansável Ministério Público junto ao TCU pediu ontem que a corte investigue o caso. O subprocurador-geral Lucas Furtado pede que o Tribunal cobre do Ministério da Saúde providências para que os testes estocados possam ser aproveitados antes de vencer. E, caso os milhões de exames acabem parando mesmo no lixo, requer a apuração sobre as consequências disso para a prestação dos serviços públicos e sobre os prejuízos financeiros, já que as unidades custaram R$ 290 milhões.
“Como era de se esperar, a causa dessa inércia e desse desperdício não é segredo para ninguém. Trata-se da inépcia do governo federal, sobretudo do Ministério da Saúde – cujo ministro não é da área –, no que diz respeito ao planejamento e logística de distribuição para a rede pública de saúde”, diz Furtado no documento.
Para o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), o fato “toma contornos ainda mais impressionantes” já que Pazuello foi vendido justamente como alguém especializado em logística, mesmo que em outro universo – o Exército.
Já o deputado Ivan Valente (PSOL-SP) entrou ontem com representação na Procuradoria-Geral da República pedindo abertura de ação de improbidade administrativa contra o ministro Eduardo Pazuello. Para o parlamentar, de todo modo o general precisa responder por improbidade, “em razão de sua omissão e negligência na adoção de uma política de testagem em massa da população durante a pandemia de covid-19”.
Mais algumas notícias preocupantes sobre o recrudescimento da pandemia no Brasil pipocaram ontem. Depois de reunião conjunta entre Ministério da Saúde, governo do estado e prefeitura o Rio de Janeiro finalmente tomou alguma atitude em relação ao aumento no número de internações por covid-19. Decidiu-se reabrir 214 leitos e suspender as cirurgias eletivas que seriam realizadas a partir de 7 de dezembro nos hospitais de urgência e emergência. No domingo, a taxa de ocupação de UTIs dedicadas ao tratamento da covid na capital havia chegado a 92% – mesmo índice de maio.
Índices igualmente alarmantes vêm sendo enfrentados por municípios baianos como Itabuna (100%) e Feira de Santana (91%). Ontem, a taxa de ocupação de leitos de UTI chegou a 81% em Santa Catarina, onde quatro cidades atingiram capacidade máxima. São elas: Criciúma, Tubarão, Araranguá e Içara. Já em Fortaleza o número de pacientes atendidos com síndrome gripal nas UPAs atingiu até 22 de novembro o mesmo patamar de agosto. E graças ao aumento da procura por atendimento, os centros de enfrentamento à doença em Natal, que já estavam atendendo em horário ampliado de segunda a quinta-feira desde a semana passada, vão passar a cumprir esse regime também às sextas.
E para o coordenador do Centro de Contingência ao Coronavírus do governo de São Paulo se houver aceleração na curva de infecção, o SUS como um todo corre risco maior de colapso agora do que no início da pandemia. “Agora é um pouquinho diferente. No começo tinha um pequeno número de casos em São Paulo e a doença foi migrando para outras regiões. Agora todas as cidades do estado de São Paulo, como também em todas as cidades do Brasil, têm algum caso ou algum paciente infectado ou infectante. Então, o risco para o sistema hoje é maior do que na primeira onda, quando a doença se estabeleceu aqui, porque hoje o número de pessoas capazes de transmitir a doença é muito maior que aquele número pequeno que tinha no começo”, explicou em entrevista ao UOL. No estado de SP, a ocupação de leitos de UTI está em 48%, um crescimento de 17% em relação à semana anterior. Na capital, o índice é de 51%.
Ontem, a média móvel de mortes apresentou crescimento de 51% em relação aos 14 dias anteriores, ficando em 496. E a média de casos (30.181) apresentou alta um pouco maior, de 57%. O registro das 24 horas anteriores ficou em 344 óbitos e 17.585 infecções. O país está quase alcançando a marca oficial de 170 mil vidas perdidas nesta pandemia.
Diante do apagão promovido pelo Ministério da Saúde no comecinho de junho, o ministro Alexandre de Moraes concedeu naquele mês uma liminar obrigando a pasta a voltar a divulgar as estatísticas da covid-19. Pois sexta-feira essa liminar foi confirmada pelos demais ministros do Supremo, que obrigando a divulgação dos dados epidemiológicos integrais como acontecia no dia 4 de agosto.
A decisão unânime obriga o governo federal a retomar o horário em que essas informações eram repassadas à sociedade. Na gestão Mandetta, isso acontecia às 17h. A partir da ocupação militar no ministério, o horário passou a ser 22h – depois dos principais telejornais. Hoje tem acontecido por volta das 20h.
O caso envolveu o sumiço dos dados por dias e, depois, uma manobra de contar apenas os óbitos ocorridos nas últimas 24 horas ao invés de todas as mortes confirmadas num dado dia. Foi bem na época em que o Brasil começou a ultrapassar a marca das mil mortes contabilizadas diariamente. Na época, apurações da imprensa confirmaram os bastidores da pressão exercida sobre os técnicos para maquiar os dados.
O Supremo estendeu ainda a determinação de divulgação para o Distrito Federal, que aderiu em agosto à contabilidade criativa das mortes.
Em seu voto, Moraes afirmou que as alterações promovidas pelo ministério “obscureceram” os dados que embasavam as análises e projeções necessárias para auxiliar as autoridades públicas na tomada de decisões – e que permitiam à população ter “pleno conhecimento da situação” da covid-19 no Brasil.
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Vacinas: duas notícias excelentes e uma péssima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU