19 Novembro 2020
Aplicar o pensamento crítico requer uma cintura mental digna de Neymar, e mais ainda nestes tempos ‘bunkerizados’ de certezas partidaristas. Tentar ser imparcial talvez seja impossível, mas escutar a quem com o afã de rigor nos avisa das nuvens escuras à vista parece sensato ou, ao menos, não deveria ser relegado. Pablo Servigne é um engenheiro agrícola e doutor em biologia que se tornou colapsólogo, ou seja, o senhor das más notícias climáticas, ambientais, econômicas, energéticas, sociais, democráticas e sanitárias. Tudo ao mesmo tempo. Um agoureiro.
A entrevista é de Javier Villuendas, publicada pelo jornal espanhol ABC, 17-11-2020. A tradução é do Cepat.
Junto com o pesquisador Raphaël Stevens, em 2015, este ativista escreveu Colapsologia, ressonante ensaio na França e recém-publicado na Espanha pela editora Arpa. Nele fala do ponto de não retorno climático e do final do conto da forma como o conhecemos: “Quando a maioria da população não conta com água, alimentação, alojamento, luz, vestimenta... É como o fim do mundo, mas sem ser o fim”. Tentar fazer com que reajamos, mas sabe como é difícil encontrar compreensão: “Como podemos acreditar na emergência, se há mais de quarenta anos anunciam catástrofes? Desde Malthus, de fato!”. Embora agora, claro, tem a Covid...
A pandemia é um sinal do futuro colapso?
Depende do que se entende por “colapso”. Não é o mesmo prever o possível colapso da biosfera, da espécie humana ou da civilização industrial, mas os três estão dentro do reino do possível. Quando se fala de um possível colapso de nossa civilização, o paradoxo está em que é um assunto que só os historiadores ou arqueólogos do futuro poderão decidir. Porque até mesmo se estamos vivendo uma série de desastres globais, não podemos saber com certeza o que o futuro nos trará.
A verdade é que os colapsos já começaram: ecossistemas, espécies, dinâmicas climáticas, povos, culturas, idiomas, etc., e que estamos vivendo em uma era de desastres globais e sistêmicos que serão cada vez mais frequentes e intensos. Tudo isto pode desestabilizar a nossa sociedade, e mais ainda a biosfera. Uma pandemia está na lista de possíveis desastres sistêmicos que podem alimentar uma dinâmica de colapso, e certamente não é a última.
Seu livro é de cinco anos atrás, e agora vemos o mundo ao vivo enfrentar uma pandemia. Há vacinas e a população vulnerável está mais protegida do que em março. Economicamente, na Europa, mudou-se a estratégia em relação à crise anterior.
Nossa postura não muda em nada. Dissemos que entramos em uma época de desastres, e é o que acontece. A colapsologia tenta compreender o que acontece, porque os desastres são mais graves do que o previsto. Não se trata de dizer que não existe nada a se fazer, pelo contrário: quanto mais soubermos, mais poderemos agir de forma inteligente e coordenada para abrandar os golpes. Encontrar uma vacina contra o coronavírus não irá resolver o problema das espécies extintas, a fragilidade das finanças mundiais e o fato de que devemos abandonar os combustíveis fósseis.
A população urbana deveria aprender a plantar?
Claro, é a base. Os anciãos que viveram uma guerra podem testemunhar. Mas não é o suficiente. Nós não queremos sobreviver a este século de desastres, queremos vivê-lo. Qual é a diferença entre sobreviver e viver? É a pergunta mais importante. Pois uma parte da resposta é trabalhar a autonomia e a ajuda mútua. Sem isso, não há possibilidade de manter uma sociedade decente.
Em tempos de escassez energética, “os primeiros a morrer serão os individualistas”.
A estratégia individualista é uma pista falsa. Claro, é possível sobreviver alguns dias, algumas semanas, mas e depois? A única maneira de atravessar os desastres deste século é nos unir, ajudar uns aos outros e cooperar, pois assim somos mais fortes, resistentes, resilientes... E porque é a única maneira de viver (e não sobreviver).
Se o mundo, como disse o Príncipe Charles, em 2012, está cometendo “um ato suicida em grande escala” ao ignorar o ecologismo, como explica psicologicamente que vivamos tão tranquilos?
Os psicólogos sabem, há mais de 60 anos, que as pessoas não abandonam facilmente suas crenças. Preferem renunciar aos fatos, à realidade, do que renunciar à história que contam a si mesmos para viver. Hoje em dia, as grandes histórias são o crescimento econômico, a dominação humana sobre a natureza, a dominação do homem sobre a mulher, o progresso material infinito, etc. Renunciar a isso é muito difícil e são efetivadas muitas estratégias de negação, em nível individual e coletivo.
Mas há cientistas que abrandam a gravidade de sua visão.
Sim, existem alguns raros cientistas que negam o aquecimento global, mas não são climatólogos. Ninguém nega o colapso da biodiversidade. Nosso livro é uma síntese do trabalho científico que prevê fugas catastróficas. Tornou-se muito difícil negar estes grandes riscos, e temos muito a perder para ignorá-los. O que estamos dizendo é que precisamos estar preparados.
Qual é a sua alternativa ao crescimento econômico?
O que ganhamos em eficiência, perdemos em resistência. O que é preciso trabalhar é a autonomia local (sem renunciar em certa medida os intercâmbios, como também a democracia), a capacidade de reconstruir os laços sociais e a ajuda mútua e, sobretudo, aprender a regenerar os seres vivos. Deixar de provocar danos.
“Se a sociedade de Bangladesh tomar consciência e decidir procurar os responsáveis por este genocídio climático, sua amargura será infinita”, afirma o climatólogo Atiq Rahman.
Os desastres que afetam a biosfera atingem principalmente os países pobres, sendo que são os menos responsáveis por eles! Isto é profundamente injusto, e eles estão conscientes. Isto cria um grande ressentimento em relação aos responsáveis, ou seja, os ricos do mundo e os países ricos que não fazem nada para melhorar a situação. Portanto, sugere conflitos armados.
Nos últimos anos, com Greta Thunberg como imagem desta nova onda ecologista, a Europa se reorientou ao verde. Como avalia a questão?
Os esforços que os países estão fazendo para frear o aquecimento global ou para se adaptar a ele são lamentavelmente inadequados. É inclusive ridículo! Pior ainda, desde os acordos de Paris, nenhum país cumpriu seus compromissos e as emissões seguem aumentando. A situação piorou, a partir de 2015, apesar da incrível mobilização pelo clima. Os jovens estão se levantando, e isso é algo bom, porque é uma questão de vida ou morte.
Assistiu a série francesa “O Colapso”?
Sim, é uma série impressionante. Muito realista. Mas o tema principal é o medo. O objetivo da colapsologia é superar os medos, aprender a viver com eles e transformá-los em ação coletiva. Não sei se podemos fazer isso, mas não temos outra opção.
O perfil típico dos colapsólogos costuma ser o de homens engenheiros e suas mulheres pedem que não toquem no assunto com suas amigas ou em reuniões familiares. Disse que muitos casais inclusive rompem por causa disto.
Esses foram os primeiros anos, há uns dez anos, quando dávamos conferências. Hoje, acredito que isso mudou. As mulheres, especialmente as jovens, estão muito envolvidas. É maravilhoso.
Antes eram os loucos, agora, estão na moda?
Sim, simplesmente porque os desastres são mais intensos e mais frequentes. Mas isto não é uma moda passageira, é um fato, e continuará por muito tempo. Hoje, somos os realistas.
Não há saída?
Ninguém pode saber. Mas o que significa “sair” do colapso? Evitá-lo ou atravessá-lo rapidamente? Se evitar significa continuar crescendo economicamente, isto implica continuar queimando energias fósseis... Se renunciarmos ao crescimento econômico (o que seria lógico para evitar mais desastres ecológicos), o mais provável é que signifique um colapso econômico, social e político.
Como poderia animar os leitores desta entrevista?
Em todo o mundo, as pessoas já estão experimentando desastres, colapsos. A primeira coisa é ter empatia por eles. A segunda coisa é imaginar que seremos os seguintes a sofrê-los. Precisaremos ter muita coragem para passar este século sem nos matar uns aos outros. Esperança e coragem. E isso acontecerá assim que assumirmos uma ação coletiva, assim que encontrarmos uma narrativa comum. Esse é o caso atual, estão acontecendo muitas coisas em todo o mundo. Devemos abrir os olhos, não os fechar, é disso que se trata o nosso trabalho.
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“A única maneira de atravessar os desastres deste século é nos unir”. Entrevista com Pablo Servigne - Instituto Humanitas Unisinos - IHU