17 Novembro 2020
Quando um relatório tão esperado sobre o caso do ex-cardeal Theodore McCarrick foi publicado pelo Vaticano em 10 de novembro, uma ressonância especial ocorreu na Polônia.
O extenso documento destacou erros dos últimos três papas, mas questionou particularmente os julgamentos de João Paulo II, uma figura há muito tempo considerada distante de qualquer crítica em sua terra natal.
A reportagem é de Jonathan Luxmoore, publicada por National Catholic Reporter, 16-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O papel do secretário de longa data do pontífice polonês, o cardeal aposentado Stanislaw Dziwisz, foi examinado um dia antes por um documentário da TV polonesa, citando evidências contundentes de que ele conspirava para encobrir abusos sexuais cometidos pelo clero católico em Roma e na Polônia.
As revelações vêm durante um outono quente para a Igreja Católica, predominante na Polônia, que já enfrenta várias investigações relacionadas a abusos, a desgraça de seu cardeal mais antigo e protestos furiosos por seu apoio a novas restrições ao aborto.
“É claro que esses escândalos dizem respeito à hierarquia e não à comunidade católica, que inclui muitas pessoas devotas e honestas”, explicou Malgorzata Glabisz-Pniewska, apresentadora católica da Rádio Polonesa.
“Mas os católicos comuns estão profundamente afetados, já que [os escândalos] testemunham graves deficiências e refletem a atitude mais ampla da Igreja”, disse ela. “O fato de as pessoas estarem levantando suas vozes e exigindo a verdade foi um choque – especialmente para os líderes da Igreja mais velhos que não conseguem aceitar ou entender o que está acontecendo”.
O relatório do Vaticano detalha como João Paulo II nomeou McCarrick arcebispo de Washington, D.C., em 2000, elevando-o a cardeal um ano depois, após ser advertido contra a nomeação por conselheiros de confiança de ambos os lados do Atlântico.
Contém 45 referências a Dziwisz, que conheceu McCarrick durante uma visita a Nova York com o então cardeal Karol Wojtyla em 1976, e mais tarde trocou correspondências com ele – incluindo uma carta importante de agosto de 2000 do cardeal John O'Connor de Nova York na qual McCarrick negou alegações de comportamento impróprio feitas contra ele.
O papel do ex-secretário papal no caso McCarrick já havia sido examinado pelo canal TVN-24 da Polônia, em “Dom Stanislaw: a outra face do Cardeal Dziwisz”, que detalhou como ele também ignorou reclamações contra padres locais posteriormente condenados após se tornar Arcebispo de Cracóvia em 2005, apesar das cartas de advertência de um importante denunciante, padre Tadeusz Isakowicz-Zaleski.
O cardeal aposentado rejeitou as acusações, citando suas quatro décadas de "serviço à Igreja, ao papa e à Polônia" como um contrapeso evidente.
Respondendo ao documentário em um comunicado, Dziwisz disse que conta com uma "investigação transparente" e "apresentação adequada dos fatos", acrescentando que o cuidado com os feridos agora é de "valor supremo".
Enquanto isso, o presidente da conferência dos bispos poloneses, o arcebispo Stanislaw Gadecki, disse que a Igreja polonesa estava grata a Dziwisz por seu “serviço ao lado de São João Paulo II”. Mas Gadecki também sugeriu que o Vaticano poderia criar uma comissão para investigar as alegações, dizendo que esperava que tal grupo pudesse esclarecer "quaisquer dúvidas" apresentadas no filme.
Blazej Kmieciak, que chefia a Comissão Estadual de Pedofilia da Polônia, criada no verão passado, disse que estaria pronto para investigar as acusações contra Dziwisz.
Os manifestantes desafiaram as restrições do bloqueio e gritaram “covarde” e “hipócrita” fora da cúria e residência do cardeal em Cracóvia, que foram colocadas sob guarda policial, enquanto um grupo de legisladores de esquerda rasgou fotos de Dziwsz no parlamento polonês e pediu aos promotores examine os arquivos da conferência episcopal em busca de mais evidências de encobrimento de abusos.
Marcin Przeciszewski, diretor da Agência de Informação Católica da Igreja Polonesa (KAI), acredita que as últimas revelações revelam a “determinação absoluta” do papa Francisco em “limpar a Igreja de sua sujeira”, garantindo que “nem a idade nem a saúde salvem ninguém da justiça”.
Padre Andrzej Kobylinski, filósofo que chefia o Departamento de Ética da Universidade Católica cardeal Wyszynski de Varsóvia, concorda que chegou a hora de um “ajuste de contas abrangente”.
“Devemos estabelecer o que estava acontecendo na corte papal, especialmente entre a comitiva mais próxima de João Paulo II”, disse Kobylinski à TVN-24 em 10 de novembro.
“Isso é especialmente necessário nos últimos 10 anos do pontificado do papa polonês, quando João Paulo II estava doente e fraco, e muitas decisões estavam realmente sendo tomadas por aqueles ao seu redor”, disse o professor.
Cresce o temor de que a anteriormente venerada imagem de São João Paulo II possa agora ser danificada em seu próprio país, onde seu nome está estampado em ruas e praças por todo o país.
Os bispos católicos da Polônia fizeram forte lobby por sua beatificação e canonização precoce, mas foram rejeitados quando pediram ao Vaticano e aos seus colegas prelados em todo o mundo em outubro de 2019 para que ele fosse promovido ainda mais como Doutor da Igreja e santo padroeiro da Europa.
Embora João Paulo II tenha permanecido em grande parte intocado por controvérsias em torno da Igreja polonesa – sobre sua infiltração por agentes da era comunista, negócios de propriedade obscuros e acusações de abuso – isso agora pode estar mudando.
Em outubro, Francisco aceitou a renúncia do bispo Edward Janiak de Kalisz, após alegações de que ele violou a lei polonesa e as diretrizes do Vaticano ao ignorar as queixas contra padres locais. Até 20 petições legais estão sendo investigadas contra outros bispos, incluindo o arcebispo Slawoj Glodz de Gdansk, que foi publicamente acusado por padres locais um ano atrás de encobrimentos semelhantes.
Isso atingiu o ápice em 6 de novembro, quando um decreto do Vaticano proibiu o cardeal Henryk Gulbinowicz, de 97 anos, o mais velho dos seis cardeais da Polônia, de comparecer a outras aparições públicas e o privou do direito de ser enterrado em sua própria catedral da Breslávia, após ele também ter sido implicado em abuso.
Com um foco corrosivo agora fixado em Dziwisz, de 81 anos, que passou 39 anos ao lado de João Paulo II, até mesmo os apoiadores católicos temem que o histórico do pontífice canonizado possa ser contestado.
A nomeação de Dziwisz como arcebispo de Cracóvia após a morte de João Paulo II foi amplamente vista como um gesto popular para os poloneses pelo então recém-eleito Bento XVI.
Mas isso chocou o clero da arquidiocese do sul, que duvidava da autoridade e estatura pessoal de Dziwisz, e não ficou surpreso quando o novo cardeal se valeu constantemente de seus vínculos anteriores com João Paulo II.
O padre Piotr Studnicki, que chefia o Escritório dos Bispos Poloneses para a Proteção da Criança e Adolescentes, lamenta as respostas de Dziwisz a perguntas sobre McCarrick e outros escândalos e pediu aos líderes da Igreja polonesa que cooperem estreitamente com os investigadores estaduais e do Vaticano.
“Fugir das respostas às perguntas não é uma boa reação - apenas fortalece as suspeitas de que há algo a esconder”, disse Studnicki à agência KAI.
“Tenho certeza de que o fracasso em esclarecer essas questões prejudicará a Igreja, ao mesmo tempo em que lançará uma sombra sobre o pontificado de João Paulo II. Não podemos deixar de perguntar como foi possível que pessoas que permitiram crimes tão terríveis tenham chegado tão longe na hierarquia da Igreja”, disse o padre.
Dziwisz aceitará a responsabilidade pessoal de proteger a herança e o bom nome de São João Paulo II?
Glabisz-Pniewska, o apresentador de rádio católico, duvida disso.
Embora professando constantemente lealdade a João Paulo II, o cardeal mostrou pouca consideração por alguns dos desejos do falecido pontífice, oferecendo às pessoas relíquias e gotas de seu sangue e publicando seus cadernos pessoais em 2014, em flagrante violação de seu testamento e vontade final.
“Se Dziwisz confessasse seus erros, isso significaria perder parte da glória pessoal que ele trabalhou para acumular depois de ficar tanto tempo nos bastidores”, disse Glabisz-Pniewska ao NCR.
“Mas ele claramente tomou muitas decisões à medida que o Papa envelhecia e se enfraquecia, e agora há uma preocupação real sobre por que João Paulo II depositava tanta confiança e confiança nas pessoas ao seu redor”, disse ela.
Quando o Dia da Independência da Polônia foi celebrado em todo o país em 11 de novembro, permitiu aos líderes da Igreja polonesa uma breve pausa dos últimos conflitos e controvérsias em apelos ao patriotismo e à unidade nacional.
Mas os diretores Marek e Tomasz Sekielski, cujos filmes tão assistidos de 2019 e 2020 “Tell No One” e “Hide and Seek” revelaram vários encobrimentos de abusos na igreja polonesa, estão prometendo novas revelações em um seguimento de João Paulo II.
Enquanto isso, a Comissão do Estado sobre Pedofilia disse que planeja incluir “todas as lacunas, transgressões e questões abertas” relacionando à Igreja em seu primeiro relatório.
Com aqueles hostis ao Papa e ao Vaticano agora desfrutando de um clima público receptivo pela primeira vez, e aqueles há muito temerosos de criticar a Igreja agora finalmente se sentindo capacitados para fazê-lo, a Igreja polonesa enfrenta desafios difíceis.
“A Igreja poderia estabelecer uma comissão da verdade – mas não há tradição de especialistas profissionais independentes e confiáveis aqui, então, espera-se que tal comissão apenas defenda a igreja”, disse Glabisz-Pniewska ao NCR.
“Enquanto isso, será fácil para os apoiadores de João Paulo II dizer que ele estava muito cansado e doente em seus últimos anos para exercer controle total, e para Dziwisz e outros insistirem que tinham sua confiança e agiram de boa-fé pelo bem da Igreja”, disse ela. “Distribuir responsabilidade pessoal em tais circunstâncias será difícil”.
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Igreja da Polônia em palpos de aranha com novas alegações contra João Paulo II - Instituto Humanitas Unisinos - IHU